"Há muita gente que acredita que as crianças não se lembram das coisas. Eu lembro-me. Quando for mãe, a primeira coisa que vou fazer é garantir que o meu filho é protegido, porque os traumas de infância não se apagam." Mariama Camara, 36 anos, nasceu e cresceu na República da Guiné (conhecida como Guiné-Conacri), onde sofreu mutilação genital com apenas 4 anos..Aos 12 anos foi estudar para o Senegal e aos 18 mudou-se para Nova Iorque, nos Estados Unidos, para concretizar o sonho de trabalhar no mundo da moda. Da infância, lembra-se especialmente das mulheres - da mãe, das duas irmãs, de vizinhas. "As mulheres não tinham voz, não podiam tomar decisões. Os maridos batiam-lhes e não havia muitas mulheres de negócios, como a minha mãe, mas recordo quão fortes eram", conta ao DN, durante uma visita de dois dias a Portugal para falar no TEDxLisboa..Mas o momento mais marcante foi quando se tornou mulher à luz da sua cultura, quando sofreu mutilação genital. Tinha 4 anos. "Em África isto é normal. As pessoas falavam abertamente sobre o assunto e quando és criança vives com medo do momento em que as mulheres se juntam e te vêm buscar.".Mariama recorda o dia em que a mãe a levou, durante umas férias de verão, a uma enfermeira no bairro onde viviam, de ter entrado numa divisão na casa em que havia apenas uma cama e uma mesa com tesouras. "Passei-me, tinha muito medo de sangue, e a minha mãe pediu à enfermeira que cortasse apenas um bocadinho. Penso que estava a tentar proteger-me, porque achava que eu iria ser a sua última filha. Foi como se ela não me quisesse cortar, mas tinha de o fazer. Era a nossa cultura.".Dos quatro tipos de mutilação genital feminina existentes, Mariama foi sujeita ao primeiro, tendo-lhe sido removido parcialmente o clítoris. "A pior parte é a primeira vez que tens de urinar depois de seres cortada: a dor é insuportável." Depois, as dores vão diminuindo, se não houver outras complicações, como hemorragias, infeções, ulceras, febre. Mas há "coisas em que serei sempre diferente", como na vida sexual.."Eu nem sequer sabia que era suposto ter orgasmos quando tinha relações sexuais. Mas quando falava com outras mulheres percebi que havia coisas que eu não tinha. Tive de apreender a satisfazer-me sexualmente, tive comprar brinquedos para treinar o meu corpo. E há mulheres que nunca vão ter orgasmos, independentemente do que façam", diz..Nas suas relações sentia que os homens a olhavam de maneira diferente depois de saberem que tinha sido cortada. "Houve um que estava interessado em mim, mas depois de lhe contar não aconteceu nada entre nós.".As reações adversas não a impediram de contar a sua história. Em 2017, Mariama e a irmã mais nova, Aissata Camara, também vítima de mutilação, lançaram uma campanha Break the Silence (Quebra o Silêncio) com o objetivo de consciencializar as pessoas para a necessidade de acabar com a mutilação genital feminina no mundo, apoiando a meta definida pela Organização das Nações Unidas que quer erradicar a prática até 2030.."O nosso país é o segundo do mundo onde mais mulheres são mutiladas todos os anos", indica a ativista pelos direitos das mulheres. Por isso, Mariama e Aissata voltaram a casa para tentar persuadir as mulheres que realizam esta prática. Oferecer-lhes dinheiro não ia resultaram porque voltariam a fazê-lo. Por isso, ofereceram-lhes trabalho. "Perguntámos quanto ganhavam por ano e propusemos-lhes outro trabalho em vez de cortarem raparigas que ficam com uma deficiência para a vida. Fizemos uma troca. No final, as mulheres deram as facas à minha irmã."."Todas as mulheres do mundo têm a mesma história".O trabalho de sensibilização sobre a mutilação genital feminina é apenas um dos objetivos das duas irmãs, que em 2008 criaram a Fundação There Is no Limit (Não Há limites). Ajudam mulheres a criar o seu próprio negócio, dão bolsas escolares a crianças, construíram bibliotecas, distribuem kits de higiene a populações sem acesso a saneamento básico e, desde o ano passado, estão também a investir em equipamento hospitalar.."Perdemos a minha cunhada, 25 anos, porque estava grávida de gémeos, mas o hospital não tinha tudo o que era preciso para a receber. Ela e um dos bebés morreram durante o parto. No mesmo ano, o surto de ébola chegou à Guiné, combinámos as duas coisas e demos início a um programa - com o nome da minha cunhada - para comprar camas e equipamento médico para cinco hospitais.".Até agora o trabalho tem sido direcionado para a República da Guiné, mas o objetivo das irmãs é que este se torne cada vez mais global. "Eu acredito que todas as mulheres do mundo têm a mesma história. No meu país, enquanto crescia, vi mulheres a serem muito maltratadas, mas também há abusos em Portugal, nos Estados Unidos. Eu própria já sofri abusos por ser mulher na América."."Já ouvir que sou bem-sucedida por causa de um homem, quando trabalho tanto... No sítio onde vivo há um restaurante e perguntam-me se sou empregada de mesa, e na minha empresa já ouvi pessoas a perguntar se eu era a secretária.".Uma mulher negra no mundo dos negócios.Mariama Camara teve acesso a uma educação diferenciada das outras raparigas da sua idade, apesar de não ter terminado o ensino secundário. O pai era político e a mãe, uma mulher de negócios, que "fazia dinheiro, tomava conta da casa e da família". Foi também em casa que nasceu a paixão de Mariama pelos tecidos, pela costura, pela moda..Depois de sair do emprego, a mãe continuava a trabalhar, costurava com a ajuda da irmã mais velha e com a da avó para ganharem dinheiro extra. Em casa havia tecidos espalhados de todas as cores. "Eu ficava a olhar para elas - não estava autorizada a costurar - e com os tecidos que sobravam da roupa dos clientes fazia as minhas próprias bonecas.".Depois quis vestir mais do que bonecas. Chegou a Nova Iorque cheia de ambições no mundo da moda e com apenas cem dólares (cerca de 90 euros) na conta. Trabalhou como maquilhadora e foi despedida, o que lhe deu o incentivo de que precisava para começar a dedicar-se ao que era importante para si - desenhar roupa..Hoje, é diretora de duas das maiores empresas africanas de têxteis e acessórios artesanais - Mariama Fashion Production -, que exportam para grandes marcas internacionais. "No ano passado fizemos [tecidos] para vestir o cantor Bono [vocalista dos U2] e para a Louis Vuitton." Também já desenhou tecidos para vestir a ex-primeira-dama dos Estado Unidos, Michelle Obama.."Para mim, a moda é muito importante porque a maneira como nos vestimos é a primeira impressão que as pessoas têm de nós. É uma forma de nos apresentarmos ao mundo e de nos expressarmos", diz a designer e modelo..Os tecidos criados e produzidos pelas empresas de Mariama são feitos em África, contam com a ajuda de 500 designers e, só na Guiné-Conacri, dão emprego a mais de três mil mulheres - um dos seus principais objetivos. ."Acho que nunca me descrevi como feminista, mas acredito no feminismo segundo o qual cada mulher se expressa da sua forma, sou pró-mulheres e envolvo-me em tudo o que seja para ajudar as mulheres a serem bem-sucedidas. A única coisa que tenho contra o feminismo é que há algumas mulheres que pensam que têm de ser homens para ser fortes. Eu sou forte como mulher e sei fazer-me respeitar e ouvir junto dos homens."