Uma mensagem presidencial de Ano Novo conciliatória, que agrada à esquerda e à direita porque tanto manda recados para uns como para outros; uma mensagem que não traz nada de novo porque agrega tudo o que o Presidente da República vem dizendo... Mas será um discurso brando a apostar no apoio dos dois espetros políticos para uma eventual recandidatura? As opiniões dividem-se: se há quem entenda que Marcelo Rebelo de Sousa piscou "os dois olhos" à esquerda, leia-se ao PS, também há quem lembre que o seu nível de popularidade é tão grande que não precisa de usar um discurso oficial para isso. O que é dado como garantido é que irá recandidatar-se - a história da democracia assim o diz - e que António Costa, mesmo que não lhe declare o apoio oficial do partido, dificilmente avançará com um candidato próprio..A baralhar as contas, mas não a alterar o resultado da soma de uma recandidatura de Marcelo, poderá estar o Chega. Todos os interlocutores ouvidos pelo DN - Francisco Louçã, António Costa Pinto, Paulo Otero e Pedro Marques Lopes - dão como certo que André Ventura não perderá a oportunidade das presidenciais de janeiro de 2021 para fazer passar a sua mensagem..O Presidente quis garantir apoio à esquerda e à direita?.Marcelo Rebelo de Sousa proferiu a última mensagem de Ano Novo antes da campanha para as presidenciais no Corvo, desta vez em direto. Podia ter aproveitado para proferir um discurso político mais duro, tendo em vista uma recandidatura? Quis garantir os apoios da esquerda e da direita?."É uma questão supérflua. Com a aceitação popular que o Presidente tem, é um resultado que já está adquirido. Marcelo não está a lutar pela reeleição, lê as sondagens e sabe a vantagem que tem neste contexto eleitoral. Não creio que os termos do discurso sejam motivados por um cálculo eleitoral", afirma Francisco Louçã, para quem uma recandidatura do atual chefe do Estado "é das poucas coisas" sobre as quais tem uma certeza.."É uma tradição absoluta em Portugal. Não há nenhuma razão para não se recandidatar. Marcelo não quer que o ano seja marcado como sendo um candidato em campanha, quer preservar o espaço institucional da presidência e não submeter qualquer das suas ações a uma grelha eleitoralista", adianta o professor universitário, antigo líder do Bloco de Esquerda..Marcelo já fez declarações algo contraditórias sobre a sua recandidatura. Na ilha açoriana onde comemorou a passagem de ano, voltou a dizer que a decisão está "longe" de ser tomada, mesmo com as "previsões e vontades" de comentadores e alguma população. Mas já deu sinais de que pode avançar. Uma delas foi há cerca de um ano, nas Jornadas Mundiais da Juventude, no Panamá. "Saio daqui com uma grande vontade, se Deus me der saúde e se eu achar que sou a melhor hipótese para Portugal, de me recandidatar.".eleições presidenciais desde 1976 Infogram.Nessa altura, fez questão de sublinhar que a decisão só será tomada no decorrer de 2020 e questionado sobre o porquê das dúvidas afirmou: "Tenho de ter saúde e tenho de ver se não há ninguém em melhores condições para receber o Papa [que estará presente nas Jornadas da Juventude a realizarem-se em Portugal em 2022].".O politólogo António Costa Pinto refere que se não tiver problemas de saúde, não há qualquer dúvida de que Marcelo vai recandidatar-se. "O Presidente da República é a única instituição unipessoal da democracia e o seu estilo político, de grande intervenção discursiva, é muito importante, por isso não tem necessidade de aproveitar as datas para falar.".Além disso, acrescenta Costa Pinto, há uma norma nunca interrompida em democracia, que é a reeleição de um Presidente da República para um segundo mandato. "Marcelo é o Presidente mais popular. É presidente com governos minoritários e o seu papel ganha maior relevância, sobretudo com este novo governo que não tem sequer acordos que o sustentem.".Paulo Otero, constitucionalista, começa por dizer que a mensagem proferida por Marcelo no Corvo "é uma mensagem equilibrada de quem já tomou a decisão de se recandidatar". E faz questão de recordar as palavras proferidas pelo chefe do Estado nas Jornadas Mundiais da Juventude, quando mostrou abertura para concorrer a um segundo mandato. "O tom conciliatório é para agradar à esquerda e à direita, no sentido em que o próprio já se definiu como sendo 'da esquerda da direita' e também revela o receio de que possam aparecer outros candidatos."."A coisa mais desastrosa seria Marcelo ter de ir disputar uma segunda volta", refere o constitucionalista, apontando uma mais que certa candidatura de André Ventura, líder do Chega, e a possibilidade de surgir ainda um segundo candidato do espetro da direita conservadora: "Para o CDS será suicida não ir a jogo, não pode permitir a diluição do seu eleitorado nem que este seja conquistado pelo Chega."."O Presidente da República está a equacionar a possibilidade de surgirem dois candidatos à direita. É uma pessoa realista na análise política", sublinha Otero..Para Pedro Marques Lopes, a existência de outros candidatos presidenciais moldará o discurso de candidatura de Marcelo Rebelo de Sousa, em que, aí sim, sustenta que serão abordados "grandes temas". Ao contrário da mensagem de Ano Novo que "é anódina" e "um discurso generalista sem grande novidade e bastante alinhado como o proferido por António Costa no Natal"..No entanto, o comentador está longe de considerar que o conteúdo da mensagem de Marcelo pretendeu juntar à sua volta a esquerda e a direita com vista a um segundo mandato. "Quando se dedicar à tarefa de fazer um discurso de candidatura, escolherá grandes temas. Mas isso dependerá sobretudo de quem são os seus apoios e quem são os outros candidatos. E num cenário em que o PS não o apoie, o discurso será muito diferente.".O apoio do PS é um dado adquirido?.António Costa Pinto afirma que os dados disponíveis sobre a popularidade do Presidente indicam que Marcelo não precisa de nenhum partido nem de apoio privilegiado à esquerda ou à direita para ser reeleito. Embora acredite que este queira o apoio dos dois lados porque, num segundo mandato, os chefes de Estado tendem a afastar-se do eleitorado que inicialmente os elegeu..As incertezas dos apoios a Marcelo jogam-se à direita, diz, num ano em que o PSD e o CDS vão escolher os líderes, mas também com a existência de dois novos partidos neste espetro político - o Chega e a Iniciativa Liberal.."O mais interessante será observar como os partidos de direita vão entrar ou não na competição presidencial, não como alternativa de vitória a Marcelo, porque isso é, em princípio, impossível", afirma Costa Pinto..De resto, não tem dúvidas de que André Ventura irá candidatar-se. Até porque "as presidenciais sempre foram uma janela de oportunidade para personalidades carismáticas e para os partidos extremistas capitalizarem um sentimento anticlasse política".."A dificuldade sempre foi transferir das eleições presidenciais para um modelo mais estável de desenvolvimento de um partido parlamentar. Veja-se o que aconteceu com António Nobre ou até mesmo com o socialista Manuel Alegre que tantos apelos recebeu para estruturar a base de apoio que alcançou nas presidenciais", diz o politólogo..Em 2006, recorde-se, o socialista Manuel Alegre alcançou mais de um milhão de votos (20,74%) mesmo sem o apoio do PS, que optou por Mário Soares (14,31%)..Francisco Louçã acha provável que o PS não apresente um candidatoa Belém. "Não sei se apresentará o seu apoio claro a Marcelo, ou se o apoiará com uma não tomada de posição ou com um 'temos muito gosto na colaboração com o senhor Presidente'.".Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República, disse em entrevista ao Observador, em abril, que se as eleições "fossem amanhã" votaria em Marcelo..Já Paulo Otero considera que "o PS está numa situação complicada". "Se apresentar em 2021 um candidato forte pode comprometer dali a cinco anos a candidatura de António Costa. Tem todo o interesse em apoiar Marcelo. Se tivesse tido maioria absoluta, o PS não precisaria da maioria presidencial, o Presidente perderia em impacto e protagonismo.".Ainda assim, entende que há candidatos possíveis na área socialista: Jaime Gama, Carlos César e Guilherme d'Oliveira Martins. Na hipótese de o PS apoiar Marcelo e não apresentar um nome próprio, Paulo Otero não descarta a hipótese de ressurgir do passado um candidato para reivindicar o espaço do socialismo democrático - José Sócrates. "Para lançar a confusão no partido, no processo judicial e nas presidenciais. Não está morto e tem feito provas de vida por excelência, fora e dentro do partido.".Para o constitucionalista, já o PSD não pode fazer outra coisa que não apoiar Marcelo. "Trata-se de um ex-presidente do partido, impõe-se, e o partido não tem liberdade de escolha.".O PS não terá coragem para apresentar um candidato, acredita Pedro Marques Lopes, embora possa optar por não dar um apoio explícito ou dar uma indicação de voto vaga. "Ia ser constrangedor para Costa fazer um discurso contra Marcelo. Tem sido só amor...".E o CDS faz frente ao Chega ou fica com Marcelo?.Além do PS, Marques Lopes considera que também o PSD e o CDS darão o seu aval a Marcelo. "Até porque se o CDS apresentasse um candidato não conseguiria sobreviver a um cenário em que a extrema-direita tivesse um resultado superior, era enterrado. O PSD anda a esforçar-se em cometer suicídio, mas não haveria qualquer solução para um desastre de não apoiar Marcelo.".Opinião diferente tem Francisco Louçã. "É natural que haja candidatos à direita e que o CDS esteja muito atrapalhado. Dentro da sua lógica de recuperação, colar-se a um candidato que é mais ao centro não afirma a lógica guerreiraque o partido acha que precisa para fazer concorrência com o Chega.".Se não há dúvidas de que o Chega irá disputar as presidenciais, o mesmo se pensa do PCP e do Bloco de Esquerda. Para o PCP será fundamental apresentar-se nas urnas "para não desaparecer do mapa político", refere Otero, para quem a esquerda terá de recuperar da "humilhação das legislativas"..Mítica fasquia dos 70% é alcançável?.Enquanto Marcelo não anuncia que se recandidata - o que dificilmente acontecerá antes de outubro - vão sendo conhecidas sondagens que lhe dão excelentes expectativas eleitorais. O estudo da Aximage, publicado no Jornal de Negócios, indica que Marcelo pode ser reeleito com cerca de 70% dos votos - ou seja, alcançaria a mítica fasquia de Mário Soares em 1991 (70,35%)..Na deslocação ao Corvo, Marcelo Rebelo de Sousa fez questão de comentar o assunto e afirmou que os jornalistas entendem que terá de conseguir 70% dos votos para bater o recorde de Soares. E, sublinhando que ainda não tomou a decisão sobre um segundo mandato, lá foi dizendo que para ganhar "bastam 50% dos votos mais um"..Para Louçã, Marcelo pretende com esta declaração baixar as expectativas. "Não quer, ao recandidatar-se, mesmo que ganhe as eleições, que os jornalistas venham dizer que foi derrotado."..A leitura de António Costa Pinto é que, "enquanto político e observador da cena política portuguesa com grande clarividência", Marcelo sabe que o reverso da medalha se chegar aos 70% será uma fraquíssima participação política.