A nação está em bom estado? A geringonça, com algumas peças soltas e muita afinação, aguentou os quatro anos. A oposição à direita saiu fragilizada das eleições europeias, mas fez-se ouvir. O CDS até censurou o governo duas vezes no Parlamento. A degradação dos serviços públicos foi sempre o mote, com o foco nas convulsões na saúde, que irão dominar o debate parlamentar na quarta-feira, no último diagnóstico da legislatura. Mas as guerras com os professores também foram intensas. As tragédias dos incêndios, essas, chocaram o país. E provocaram o primeiro sobressalto entre Belém e São Bento..Belém, ou antes, Marcelo Rebelo de Sousa foi um eixo central no Estado da Nação. "O Presidente da República é um homem de descompressões psicológicas. Fez-nos um tratamento psiquiátrico todos os dias", diz o politólogo José Adelino Maltez, ao lembrar o que se seguiu aos traumas provocados pela crise e pela vinda da troika..Nestes quatro anos de governo socialista, a economia portuguesa aguentou-se, numa versão dourada para o governo, que aponta para um crescimento de 1,9%, e mais azeda para a oposição, que insistiu sempre na tecla do ritmo mais acelerado de crescimento na Europa..O executivo voltou a fazer um brilharete quando o Instituto Nacional de Estatística revelou em junho que Portugal registou um excedente orçamental de 0,4% do PIB no primeiro trimestre, sendo certo que a meta de défice é de 0,2 do PIB, inscrita no Programa de Estabilidade para 2019-2023. Mário Centeno, ministro das Finanças e presidente do Eurogrupo, vangloriou-se do feito. A oposição voltou à carga com a ideia de que todos os ganhos foram feitos à custa de cativações, que produziram uma degradação progressiva dos serviços públicos e que sustentaram também uma catadupa de greves marcadas ou ainda prometidas para vários setores: médicos, enfermeiros, professores e magistrados. Novos sindicatos, desalinhados com a CGTP, como o dos camionistas de matérias perigosas, quase conseguiram fazer parar o país..Pelo meio surgiram o roubo de armas em Tancos e as dívidas de Joe Berardo. Os grandes casos de justiça, como a Operação Marquês, que envolve José Sócrates, ou o BES, que atinge o "dono disto tudo", de nome Ricardo Salgado, continuam à espera de chegar a julgamento. Estabilidade política."A geringonça funcionou. Sabíamos que iria ter quezílias, recuos, pressões, sobretudo com duas peças, PCP e BE, que não se ajustam perfeitamente ao programa do PS. Mas foi um êxito a navegação", afirma o politólogo José Adelino Maltez. Esta solução provocou um "realinhamento dos governos em Portugal e representou a bipolarização esquerda/direita dominada pelo setor mais moderado do PS", acrescenta António Costa Pinto..O investigador do Instituto de Ciências Sociais sublinha que "ao contrário das expectativas" o acordo do PS com PCP e BE representou "uma grande estabilidade governativa". O PS, "aproveitando a conjuntura económica favorável", manteve-se como o "polo dominante" na política portuguesa. Este caldo, segundo António Costa Pinto, reforçou o sistema partidário nacional, porque o tornou "resiliente" a dinâmicas populistas que marcaram os sistemas políticos europeus..A estabilidade política da geringonça - e porque não veio o "diabo" profetizado pelo antecessor de António Costa - somada a um mau resultado nas eleições autárquicas de 2017 afastaram Pedro Passos Coelho da liderança do PSD..O senhor que se seguiu, Rui Rio, quis e quer ser um fiel da balança do sistema político e estendeu a mão ao PS em duas reformas: descentralização e fundos europeus. O CDS foi mais combativo contra o governo, de tal forma que por duas vezes tentou "derrubá-lo" (sabendo que era impossível) no Parlamento com moções de censura..Seja pela proximidade do PSD ao governo ou pelo lado muito agreste do CDS, o facto é que o eleitorado penalizou os dois partidos nas eleições europeias. Marcelo Rebelo de Sousa até veio dizer que "há uma crise à direita", o que os dois partidos contestaram, como é óbvio.."Não era expectável em 2015 que a crise viesse a abater-se sobre a direita, que agora também se confronta com a emergência de novos partidos e com uma novidade no sistema político partidário, que é o PAN, que tem capitalizado algum descontentamento do eleitorado.".Sindicatos desalinhados.José Adelino Maltez chama a atenção para outra novidade destes últimos anos. A emergência de sindicatos não disciplinados pelas grandes centrais como a CGTP e a UGT, que deram corpo a revoltas corporativas. Os casos mais flagrantes foram o dos motoristas, mas também os enfermeiros, que deram água pela barba ao governo.."O país é uma panela de pressão, mas estas novas realidades mostram que é uma sociedade adulta e pluralista que dá sempre sinais de que não está morta", garante José Adelino Maltez..O politólogo António Costa Pinto assinala que há uma espécie de "consenso" entre os grupos de interesse e os partidos políticos, incluindo os que dão apoio ao governo no Parlamento, contra a "ortodoxia orçamental" de Mário Centeno, que tem mantido baixo o investimento público, sobretudo em setores fundamentais como o Serviço Nacional de Saúde, os transportes e a máquina do Estado..Qual é então o estado deste país?.As contas de Centeno.O governo, e em particular o primeiro-ministro, neste período de pré-campanha eleitoral, esforça-se por mostrar que conseguiu mesmo cumprir as metas a que estava obrigado por Bruxelas, sem sacrificar os portugueses. A reposição de rendimentos é uma das suas bandeiras, que vai usar até à exaustão rumo às eleições de 26 de outubro. O seu ministro das Finanças, Mário Centeno, é acusado pela oposição de ter conseguido o equilíbrio orçamental à custa de cativações, o que originou um fraco investimento público..No que toca à carga fiscal, a realidade foi um pouco mais madrasta do que as previsões de Mário Centeno em 2015. O peso da receita de impostos e das contribuições para a Segurança Social subiu para valores históricos e deverá manter-se ainda no patamar dos 35% do PIB neste ano..A economia também teve um comportamento mais modesto do que o previsto, não ultrapassando os 2,8% em 2017, quando o então líder do grupo de trabalho do PS apontava para um crescimento de 3,1%. Mas Centeno tem razões para festejar com a descida da taxa de desemprego (acima dos 12% em 2015, nos 6,6% hoje) e com a dívida pública que quase bateu certo com as previsões à décima..O PSD de Rui Rio vem agora acenar com a promessa da baixa de impostos nos próximos quatro anos, fruto da projeção de um crescimento superior ao inscrito no Programa de Estabilidade do governo. Os sociais-democratas dizem que querem um maior investimento público e o governo do PS continua a querer aumentar a despesa do Estado..Saúde a soro?.O setor da Saúde foi, segundo a oposição e em particular o CDS, dos mais penalizados pela falta de investimento. Greves de enfermeiros e de médicos sucederam-se, algumas estão ainda agendadas, para forçar novas contratações e revisões de carreira. A pasta conheceu dois ministros, Adalberto Campos Fernandes e agora Marta Temido, que tomou posse com um caderno de encargos pesado. PSD e CDS insistiram com os números dos tempos de espera para mostrar a debilidade das condições do Serviço Nacional de Saúde, a titular da pasta garante que diminuiu em dez mil o número de utentes em espera há mais de um ano..Mas o governo falhou, entre outras coisas, a promessa eleitoral de ter médico de família para todos os portugueses. Há mais de 60 mil que continuam a não o ter..O governo também entrou em colisão com os parceiros por causa da Lei de Bases da Saúde, que ainda está em discussão na Assembleia da República. O Bloco garantiu que existia um compromisso para pôr fim à possibilidade de parcerias público-privadas (PPP) na saúde, mas o governo rejeitou e a hipótese manteve-se. Ainda não há luz ao fundo do túnel para a lei passar, tanto mais que o Presidente da República também já disse que vetará uma lei que feche a porta a acordos com os privados da saúde..Guerra dos professores.A Educação é outra das áreas que costumam dar dores de cabeça aos governos. E não foi exceção. O ministro Tiago Brandão Rodrigues acabou respaldado pelo próprio primeiro-ministro na guerra dos professores para a reposição do tempo de carreira congelado durante o consolado da troika. Além dos dois anos, nove meses e 18 dias que o governo lhes quis dar, a resposta foi sempre "não" a todo o restante tempo. No Parlamento gerou-se uma espécie de "coligação negativa", entre PSD, CDS, PCP e BE, para contrariar o governo e dar razão aos professores. Mas perante a ameaça de António Costa de que atiraria a toalha ao chão, os sociais-democratas e centristas recuaram. Este ziguezague e o apoio a este setor, que não é dos que colhem mais simpatia nos respetivos eleitorados, foram vistos fatores de penalização nas eleições europeias, que deram um péssimo resultado aos dois partidos..Habitação consensual?.Se há matéria em que a geringonça se entendeu foi na habitação. Do Parlamento saíram quase uma dezena de leis com a chancela da esquerda, que vão da proibição de despejos de inquilinos com mais de 65 anos, e pelo menos 20 na habitação, à penalização do assédio sobre os arrendatários, passando pela regulamentação do alojamento local e, terminando, já nesta semana, na aprovação da Lei de Bases da Habitação. Em paralelo, o governo foi lançando medidas e programas de promoção de rendas acessíveis, num contexto em que o arrendamento nas grandes cidades, sobretudo Porto e Lisboa, atingiu preços proibitivos para a classe média portuguesa. Mesmo dando apoio às várias medidas, BE e PCP não se cansaram de repetir que é preciso ir mais longe, enquanto, do outro lado, PSD e CDS se demarcavam destas medidas. Em março deste ano, o próprio primeiro-ministro admitia que é preciso fazer mais para permitir que a classe média e as novas gerações consigam aceder à habitação no centro das cidades..Incêndios e Tancos.De todas as áreas de governação, com as suas idiossincrasias e os seus problemas, há duas que ficaram muito expostas, a da Administração Interna, por causa da tragédia dos incêndios, em que morreram mais de cem pessoas; e a Defesa, com o caso do roubo de armas em Tancos. Dois ministros caíram: Constança Urbano de Sousa e Azeredo Lopes, agora constituído arguido..Em particular a tragédia dos incêndios, primeiro os de Pedrógão e depois os de outubro de 2017, marcou o país e as próprias relações entre o governo e o Presidente da República..Marcelo Rebelo de Sousa já era o Presidente dos afetos, mas foi no apoio às vítimas e aos familiares que mostrou claramente que se fosse preciso se colocava do outro lado da barricada se o governo voltasse a falhar na segurança dos portugueses..O ministro da Administração Interna (considerado um superministro), Eduardo Cabrita - que também teve de lidar com as crises e as exigências nas polícias -, tem andado a apagar os fogos dos vários setores envolvidos, entre os quais bombeiros e Proteção Civil, que reestruturou. Uma das últimas decisões é a aprovação da compra da rede de emergência nacional SIRESP por 5,5 milhões de euros para que a empresa passe a ser 100% pública..O Estado da abstenção.Os eleitores descontentes e que desmobilizaram nas eleições europeias não entram na contabilidade do Estado da Nação, mas deviam entrar. Nas europeias, que já tinham taxas elevadas de abstencionistas, o recorde foi batido, a chegar perto dos 70%..Este é um tema que até pode andar arredado do debate da próxima quarta-feira no Parlamento, mas é provável que entre em força na campanha eleitoral após as férias de verão. Os partidos sabem (mesmo se praticam poucas ideias para contrariar a abstenção) que uma boa fatia do país alheado de quem o representa é um mau sintoma do Estado da Nação, mesmo que tudo o resto estivesse bem..Saúde. Médicos de família e obras adiadas.Na saúde, ficou por cumprir a promessa de médicos de família para todos os portugueses, feita pelo governo em 2016. Os últimos dados do Ministério da Saúde falam em 692 mil cidadãos ainda sem médico atribuído. Também adiada foi a construção dos cinco hospitais anunciados pelo ministro das Finanças, Mário Centeno, no início da legislatura: o Centro Hospitalar Lisboa Oriental, os hospitais de Sintra, do Seixal, de Évora e da Madeira. Nenhuma destas obras começou.Por Rita Rato Nunes.Educação. Professores foram o grupo de maior pressão.O atual ministro Tiago Brandão Rodrigues tinha acabado de assumir a pasta da Educação e já quase não restavam marcas da anterior governação. Começou com a revogação das provas de avaliação a professores e dos exames de 4.º e 6.º anos. As escolas públicas ganharam autonomia curricular, mas cerca de 50 colégios perderam os seus contratos de associação, ficando em risco de fechar. A segunda metade da legislatura é marcada pelo debate e pelas greves sobre a recuperação do tempo de serviço dos professores, aprovada em dois anos, nove meses e 18 dias.Por Catarina Reis.Economia. O cenário macro de Centeno.Em abril de 2015, o PS inaugurou uma nova forma de apresentar o programa eleitoral às eleições legislativas. A direção socialista de António Costa escolheu um grupo de "sábios" encabeçado por Mário Centeno para desenhar o cenário macroeconómico para a legislatura. A receita é agora copiada pelo PSD para lançar a base do programa eleitoral às eleições de outubro próximo. Em alguns casos, a realidade foi mais generosa do que as previsões do atual ministro das Finanças, noutros um pouco mais amarga. E começando por este último, logo o investimento público, que ficou a níveis anémicos ao longo da legislatura. No ano passado ficou nos 2%, na cauda da Europa.Por Paulo Pinto/Dinheiro Vivo.Defesa. A demissão do ministro e de dois chefes do Exército.A legislatura continuou sem solução para problemas como a falta de efetivos (face às vagas aprovadas) e a saúde militar. Mas o tema dominante foi o do furto nos paióis de Tancos, no verão de 2017, que fez cair Azeredo Lopes no outono de 2018 - e decapitou a cúpula do Exército, que em 2016 já tinha visto demitir-se o general chefe. No outro prato da balança, aprovaram-se medidas para atrair mais candidatos (como o aumento do salário-base dos contratados e contratos de década e meia) e foi revista a lei de reequipamento militar, que aproximará a despesa dos 2% do PIB acordados com a NATO.Por Manuel Carlos Freire.Segurança Social. Continua a dar a ganhar.Mais receitas da Segurança Social, à boleia do emprego, foram ingrediente na mistura do défice mais baixo em democracia, em 2017, que o governo levou ao último debate do Estado da Nação. Os números continuam a favorecer o governo. Até maio, um quarto da subida das receitas do Estado resultava de mais contribuições (+6,8%). Mas a Segurança Social também tem estado debaixo de fogo, com centenas de queixas por demoras nas novas pensões e um debate sobre a sustentabilidade do regime.Por Maria Caetano.Proteção Civil. Fogos devastaram e obrigaram a reestruturação.Dois anos após Pedrógão e os fogos que se seguiram em outubro de 2017, muita coisa mudou na prevenção e no combate aos incêndios e obrigou a uma profunda reestruturação da Proteção Civil. Há mais 1752 homens e 12 helicópteros para combater as chamas. E a partir de outubro entram em vigor as novas leis orgânicas da Autoridade Nacional de Emergência da Proteção Civil, a somar ao novo Estatuto da Força Especial de Bombeiros.Por Paula Sá.Habitação. Um problema que chegou à classe média.Com os preços a disparar nas grandes cidades, o tema surgiu em força na segunda metade da legislaturas, com António Costa a anunciar um plano a longo prazo, com o objetivo de acabar com as carências de habitação até 2024. Foi lançado o programa 1.º Direito, para famílias carenciadas, e programas de arrendamento acessível para a classe média, que só agora começam a dar os primeiros passos. No Parlamento, este foi um dos assuntos que uniram a geringonça. Mas não sem críticas de que é preciso fazer mais para enfrentar um problema que ganhou grandes dimensões.Por Susete Francisco.Transportes. Plano para a CP e desconfiança na TAP.Um plano de investimento de 45 milhões na CP e muita desconfiança com a administração da TAP. É desta forma que chega ao debate o ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, que pegou na pasta há menos de cinco meses. Apesar dos esforços de fim de governo, o desinvestimento das últimas décadas na ferrovia não vai ficar resolvido de um momento para o outro. E "vai demorar a recuperar a confiança" na administração da TAP depois dos polémicos prémios de 1,17 milhões de euros a 180 trabalhadores sem a consulta do governo.Por Diogo Ferreira Nunes/Dinheiro Vivo.Ambiente. Dos sacos de plástico à exploração de lítio.A taxa ambiental aplicada aos sacos de plástico em 2015 permitiu reduzir a sua utilização, embora os ambientalistas defendam que a medida ainda é insuficiente. Houve uma aposta na redução do carbono, com o aumento do imposto sobre os combustíveis, e a promessa de acabar com os plásticos descartáveis até 2020 - antecipando a norma da UE. Já a exploração de petróleo no Algarve, a construção da barragem do Pisão e a exploração de lítio em Montalegre, que foram medidas defendidas pelo governo, ficaram marcadas por uma forte contestação social durante esta legislatura.Por Joana Capucho.Justiça. Até Marcelo entrou na luta dos estatutos.A discussão sobre a autonomia dos magistrados marcou o final da legislatura e até levou o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a telefonar à procuradora-geral da República, Lucília Tiago, para garantir o seu apoio à autonomia do Ministério Público. Uma "guerra" sobre os estatutos dos magistrados judiciais que estes ganharam, tal como a dos vencimentos: passam a poder ganhar mais do que o primeiro-ministro. Já a falta de recursos humanos e de melhores salários levou os oficiais de justiça a várias greves. Pela positiva fica, por exemplo, o aumento do uso de pulseiras eletrónicas - tirou presos das cadeiras -, a abertura de alguns tribunais de proximidade e o aumento de competências de outros.Por Carlos Ferro.Texto publicado originalmente na edição impressa do DN de 6 de julho