Nem o politólogo António Costa Pinto nem o sociólogo Paulo Pedroso (ex-ministro da Solidariedade no tempo de António Guterres) têm dúvidas: o discurso que o Presidente da República fez, nesta quarta-feira (10 de junho), nos Jerónimos, para assinalar o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, é enquadrável na campanha presidencial que irá marcar o último trimestre deste ano e o início de 2021 (as eleições serão em janeiro). Este foi, note-se, o último discurso de Marcelo num 10 de Junho neste mandato presidencial..Pedroso afirma-o quase como um lamento: "O discurso do Presidente não se elevou acima da conjuntura e do clima de pré-eleições presidenciais." E isto porque Marcelo "não se pôs no papel que eu atribuo a um Presidente da República, que é um papel inspirador, moderador e distante do jogo político"..Para Pedroso - há muito totalmente afastado de funções político-partidárias e recentemente até, por decisão própria, da militância do PS, partido de que chegou a ser o número dois, no tempo de Ferro Rodrigues -, o Presidente "não pôs as questões que um verdadeiro provedor dos cidadãos teria de pôr" em face dos tempos que se vivem - e sobretudo em face dos que se aproximam..Marcelo - prossegue o ex-ministro, em declarações ao DN - "fez o discurso de que é preciso aproveitar bem" os fundos comunitários que irão ser despejados na economia portuguesa quando a União Europeia (UE) aprovar o Fundo de Recuperação (os primeiros números apontam para mais de 25 mil milhões de euros).."Só que - acrescenta - esse discurso em si não tem nada de novo. Já o oiço desde 1986, quando Portugal começou a receber os primeiros fundos. É preciso uma proposta de sociedade que permita a Portugal não repetir os erros do passado e, por exemplo, não insistir na dependência excessiva do turismo.".Falando ao DN, o politólogo António Costa Pinto também afirmou a ideia de que a campanha presidencial esteve no subtexto da intervenção presidencial. "O discurso sobre como a pandemia e os fundos da UE podem oferecer uma estrutura de oportunidade para mudar o curso da economia será quase certamente o tónus da campanha eleitoral de Marcelo, caso ele queira recandidatar-se.".Dito de outra forma: "Marcelo fez um discurso a dizer que temos de mudar de vida" e poderá aproveitar a campanha eleitoral das presidenciais para insistir nesse discurso..Além do mais, recorda, dar-se-á uma "coincidência no tempo" entre os prazos da campanha presidencial e da eleição e os prazos da discussão na UE do conteúdo (e dos montantes) do Plano de Recuperação, o qual deverá entrar em vigor no início de 2021..De resto, Marcelo procurou, ainda segundo Costa Pinto, "acalmar um certo triunfalismo". E isto porque "os bons resultados no combate à pandemia, do ponto de vista da saúde pública, não terão sequência na parte económica". O Presidente "fez uma declaração firme e serena sobre o que aí vem"..Na sua intervenção, na manhã de sábado, o Presidente sublinhou que "Portugal não pode fingir que não existiu e existe pandemia, como não pode fingir que não existiu e existe brutal crise económica e financeira." E, além disso, também não pode "esperar que as soluções de ontem sejam as soluções de amanhã"..Assim - acrescentou - "este 10 de Junho de 2020 é o exato momento para acordarmos todos para essa realidade": a de que se está perante uma "oportunidade única" para "pensar diferente".."Temos nos meses e nos anos próximos uma oportunidade única para mudar o que é preciso mudar." E se há cem anos, com a pneumónica, "desperdiçámos uma oportunidade única para fazer uma democracia moderna", agora o país não se pode dar ao luxo de "cometer o mesmo erro"..Assim, é preciso "pensar diferente". "Não perderemos a oportunidade singular de começar de novo", é preciso "não perder o instante irrepetível", impõe-se "converter o medo em esperança" e sobretudo "pensar diferente", insistiu..Para Marcelo, "não podemos entender que nada ou quase nada se passou, como não podemos admitir que algo de grave ou muito grave ocorreu e esperar que as soluções de ontem sejam as soluções de amanhã". E, além do mais, importa não alinhar no pensamento de que há uma "inevitabilidade da mudança" e depois "nada fazer por ela.".O Presidente criticou também que se pense que "é já chegada a hora de fazer cálculos pessoais ou de grupo, de preferir o acessório àquilo que durante meses considerámos essencial, de fazer de conta de que o essencial já está adquirido, já passou, já cansou, já é um mero álibi para apagar a liberdade e controlar a democracia"..É que "temos nos meses e nos anos próximos uma oportunidade única para mudar o que é preciso mudar." E há que fazê-lo evitando "remendar, retocar, regressar ao habitual, ao já visto, como se os portugueses se esquecessem do que lhes foi, é e vai ser pedido de sacrifício, e se satisfizessem por revisitar um passado que a pandemia submergiu"..Devido à pandemia, a cerimónia fez-se apenas com sete convidados: além do presidente das comemorações, o cardeal Tolentino Mendonça (que discursou antes do PR), o presidente do Tribunal Constitucional, Manuel da Costa Andrade, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, António Piçarra, o presidente do Tribunal de Contas, Vítor Caldeira, a presidente do Supremo Tribunal Administrativo, Dulce Neto, e ainda o primeiro-ministro, António Costa, e o presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues.