"Mapas dissecados", um quebra-cabeças com três séculos

Com o século XVIII, a Europa rendia-se a uma nova forma de entretenimento, também considerada como suporte à aprendizagem das crianças de então. De mãos hábeis nasciam os "mapas dissecados", antepassados dos atuais puzzles.
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A história resume-se em poucas palavras: no reino de Anglia, um casal de monarcas entristecia face à ausência de prole após sete anos de casamento. Eis que a visita de três fadas anunciou à rainha a boa nova. A soberana daria à luz um filho, nascido sob a forma de porco. Volvidos três casamentos e aceite na sua condição suína pela esposa, o jovem ascenderia à condição humana. Assim aconteceu no conto de fadas O Rei Porco, obra assinada em 1550 pelo italiano Giovanni Francesco. Dois séculos volvidos, em 1740, a novelista francesa Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve, inspirada na obra de Francesco, mas também no mito da Grécia Antiga, de Cupido e Psiquê, corporizou uma fábula sob título que atravessaria os séculos vindouros. A narrativa, A Bela e o Monstro, beneficiou de nova versão em 1756, pelo punho da francesa Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, que ampliou o conto inicial, projetando-o para a posteridade.

Jeanne-Marie granjearia notabilidade, para além da escrita, ao lhe ser atribuída a autoria dos primeiros quebra-cabeças ou, preferindo-se, na sua versão moderna, os puzzles. A autora poria as suas peças encaixáveis ao serviço da pedagogia. Num mundo governado por impérios, a cartografia do século XVIII passou a servir como repertório visual e base para a criação dos primeiros quebra-cabeças, destinados a educar as crianças das classes mais favorecidas, a quem, desta forma, era apresentada uma organização do mundo político.

Neste particular, um homem destacar-se-ia em meados de Setecentos. John Spilsbury, cartógrafo e gravador britânico, disputa com Jeanne-Marie Leprince a paternidade daqueles que na época ficariam conhecidos como "mapas dissecados". Expressão cunhada no método de produção destes quebra-cabeças geográficos. Um mapa em papel era colado sobre uma tábua de madeira de mogno. Com recurso a uma ferramenta de corte, a peça de madeira era contornada, tendo como limites as fronteiras físicas entre países, territórios, condados, entre outros marcos geográficos.

Em 1766, John Spilsbury apresentou o seu primeiro "mapa dissecado", ao fixar o mapa-múndi numa prancha. Seguiram-se-lhe quebra-cabeças temáticos. Europa, Ásia, África, América e País de Gales davam mote, sob a forma de puzzles, a um negócio que prosperou nas mãos do homem que recebera ensinamento de Thomas Jefferyes, geógrafo real do rei Jorge III. Também junto da corte Spilsbury angariou a simpatia da governanta real, Charlotte Finch, que serviu o monarca e a rainha Carlota por mais de 30 anos. A par de matérias como inglês, gramática, música, bordado, dança e arte, os príncipes aprendiam geografia e, com esta, os largos domínios do Império Britânico. Charlotte Finch contava para este fim com um gabinete de quebra-cabeças, onde organizava um pequeno mundo de "mapas dissecados", muitos com a autoria de Spilsbury. Ao construtor de mapas suceder-lhe-ia, após a sua morte, a mulher, Hary Ashby, garantindo a prosperidade do negócio.

Um comércio de "mapas dissecados" que, na época, colhia procura crescente e correlativa oferta. Jean Palairet, francês radicado em Inglaterra, para além de cuidar do ensino da língua do seu país de origem aos filhos do rei Jorge II, assinou inúmeros "mapas dissecados". Oito, datando da década de 1750, detalhados a partir de um atlas, permanecem no londrino Victoria and Albert Museum. Entre eles um quebra-cabeças em 20 peças com a representação de Portugal e Espanha. Por seu turno, 30 peças encaixavam os países asiáticos, 39 peças os Países Baixos e 25 peças davam forma à Europa.

Ainda no século XVIII, diversificavam-se os temas dos quebra-cabeças. Aos "mapas dissecados" acrescentavam-se abordagens visuais a episódios religiosos e temas morais. Charles Dilly, editor londrino, apresentou, em 1787, as suas Gravações para o Ensino dos Elementos da História e Cronologia Inglesas. Com o quebra-cabeças de Charles Dilly as crianças juntavam cronologicamente a sequência de monarcas ingleses.

"Mapas dissecados" e sua corte, que subsistiriam aos avanços dos quebra-cabeças de cartão que chegavam com a segunda metade do século XIX. Estes últimos tidos como de inferior qualidade e com a desvantagem de garantirem margens de lucro robustas para os editores. Não tardaria, porém, ao maleável cartão destronar a madeira como material. O início do século XX cunharia para o futuro o termo puzzle, substantivo que designa um problema desconcertante.

Longe no tempo do século XVIII, a Wikipédia, enciclopédia global digital, apresenta como logótipo uma esfera em construção. Peças de puzzle que mimetizam um "mapa dissecado" virtual talhado à medida do século XXI.

Os puzzles apaixonaram os Estados Unidos da América no período da Grande Depressão, na década de 1930. Longe dos "mapas dissecados" do século XVIII, os quebra-cabeças proliferavam entre o público adulto e infantil que procurava passatempos de baixo custo. Todas as semanas, uma América devastada pela crise adquiria dez milhões de puzzles de cartão como sublinha Anne D. Williams, autora do livro The Jigsaw Puzzle: Piecing Together a History. Entre os temas preferidos, encontramos os cenários românticos e meios de transporte, preponderando a ferrovia e a navegação.

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