Mais um vírus da China. Porquê? População ainda tem muito contacto com animais selvagens

Nos últimos 20 anos, o mundo foi surpreendido com três situações de novos vírus vindos da China - a SARS em 2002, a gripe das aves em 2009 (H1N1) e agora um novo coronavírus, o 2019-nCOV. Infecciologistas garantem que novos vírus irão aparecer sempre. "É a natureza a funcionar." E virem da China também não é surpresa.
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Desde o início deste século é a terceira vez que um novo vírus, que se manifesta como doença respiratória, com sintomas idênticos aos da gripe ou da pneumonia, emerge na China. Para os especialistas a explicação é simples e até normal. "Trata-se de uma zona do globo onde as populações ainda têm um contacto muito próximo com determinados animais selvagens, que vão sendo hospedeiros de vírus e que a certa altura, pelas mutações que sofrem, tornam-se capazes de infetar os seres humanos", explicou ao DN o diretor do serviço de infecciologia do Hospital São João, no Porto. Um contacto que surge porque, muitas vezes, alguns destes animais são adquiridos para entrarem nos hábitos alimentares.

Foi isso que aconteceu com a SARS (síndrome respiratória aguda grave), doença respiratória identificada em 2002, provocada por um coronavírus e cuja origem está ligada aos gatos civetas, um mamífero carnívoro, vendido nos mercados chineses para fazer parte da alimentação. Foi isso que aconteceu com a gripe das aves, identificada em 2009, causada por uma variedade do vírus influenza (H5N1) que se hospedou em aves, também vendidas em mercados na China. E muito provavelmente foi o que aconteceu agora com a doença respiratória coronavírus - 2019-nCOV - provocada por um novo agente da família do coronavírus, muito semelhante ao que provocou a SARS.

Neste momento, ainda não se sabe a sua origem, mas nos laboratórios chineses os cientistas trabalham a contrarrelógio para conseguirem identificar o animal hospedeiro e o ADN do vírus. O objetivo é alcançar uma vacina que o possa combater e travar a sua propagação. Mas, de acordo com a história das crises virais, estes novos vírus também podem vir, como já aconteceu, do Médio Oriente, onde os dromedários são os hospedeiros habituais e depois transmitem ao homem - caso da MERS (síndrome respiratória do Médio Oriente), nova variante da SARS identificada em 2012, na Arábia Saudita - ou de África, como aconteceu há mais de 30 anos com a passagem do vírus da sida (VIH) do macaco para o homem.

"Há vírus que só infetam animais, outros que só infetam seres humanos, mas há determinados vírus que estão nos animais e que, pelas diversas mutações que vão tendo, conseguem passar para os humanos. Foi o que aconteceu com este vírus. Inicialmente pensou-se que só passava do animal para o homem, mas agora já se percebeu que passou mais uma barreira e que também já é transmissível entre os seres humanos", sublinha Carlos Lima Alves ao DN. Ou seja, numa altura específica, este novo vírus, que já existia num animal - provavelmente num morcego, ainda não está garantido -, modificou-se e foi capaz de passar para o ser humano, entrando nas suas células, sendo capaz agora de se transmitir de ser humano para ser humano. "Neste caso, a novidade é a sua capacidade de se replicar", acrescenta o médico.

Situações de novos vírus existem e existirão sempre, porque não é possível impedir as mutações. "Os vírus sofrem muitas mutações ao longo dos tempos, replicam-se e reproduzem-se. Mas este ciclo de mutação e de replicação não é exatamente igual para todos. A maioria das alterações até os prejudicam, mas há algumas que acabam por lhes ser favoráveis, tornando-os capazes de infetar uma outra espécie.

Na semana passada, um estudo genético feito em laboratório por cientistas chineses e australianos conseguiu estabelecer uma grande compatibilidade genética deste coronavírus com um outro normalmente hospedado em serpentes, mas ainda não há certezas. Aliás, se tal acontecer, "será uma novidade mundial", porque "a transmissão foi sempre através de macacos, como aconteceu com o VIH há muitos anos, de gatos, doninhas, aves, morcegos, etc.", explicou ao DN Jaime Nina, do Hospital Egas Moniz.

Os dados divulgados este domingo pelas autoridades chinesas apontam para 304 mortes na China e mais de 14 mil infetados pelo 2019-nCOV - as Filipinas registaram a primeira morte fora do território chinês. Apesar de tudo, alerta o infecciologista do Egas Moniz, "uma mortalidade muito inferior à da SARS e o receio inicial com esta situação teve que ver com o facto de o vírus ser muito semelhante ao da SARS".

Os primeiros casos da misteriosa pneumonia surgiram na cidade de Wuhan, na província de Hubei, que tem cerca de 11 milhões de habitantes e é a sétima maior da China. Os primeiros doentes diagnosticados tinham em comum o facto de terem estado num mercado de peixe e de frutos do mar da cidade.

A primeira medida tomada pelas autoridades chinesas foi o encerramento do mercado, por acharem que assim conseguiam travar o foco de transmissão. Só que percebeu-se que o vírus se propagava a uma velocidade estonteante, e não só do animal para o homem, mas também entre humanos. Novos casos começaram a surgir fora da China.

A cidade foi colocada de quarentena, foram impedidas viagens para fora desta e o mundo exterior começava a desaconselhar a entrada na China. Mas os números continuam a aumentar. Há já centenas de casos fora da China, espalhados por vários países que vão dos EUA à Austrália, do Vietname ao Brasil.

Carlos Lima Alves argumentou ao DN: "O primeiro passo é reconhecer a existência de um novo vírus e a sua capacidade de se transmitir, se é muito eficaz ou não. Neste caso, provavelmente o que as autoridades chinesas interpretaram é que seria um vírus que estaria pontualmente a passar de animais para seres humanos, mas não de ser humano para ser humano. Portanto, a contenção poderia ser feita a nível local, o que aconteceu. O mercado foi encerrado de imediato, pensando que a fonte de contaminação estaria eliminada e que não haveria novos casos."

Mas sabe-se agora que não foi isso que aconteceu. O vírus propagou-se. "Soube-se depois que o vírus já estava a passar entre os humanos, ultrapassando a primeira barreira - o encerramento do mercado -, medida que até foi eficaz em situações de viroses anteriores." Para o infecciologista português, pode "ter havido um erro de julgamento sobre a capacidade de transmissão do vírus, mas até se chegar a esta noção é preciso algum conhecimento sobre o vírus, e isso não é imediato". Acrescentando: "Uma doença com sintomas muito parecidos a de outras pneumonias, numa altura em que se está na época deste tipo de doença, é natural que possa levar algum tempo até se reconhecer que se está perante um novo vírus. Havia uma agregação comum, que era o mercado, mas fazer o cruzamento de todos os casos, por muito bons que sejam os sistemas de vigilância, por vezes, nem sempre é fácil." Carlos Lima Alves diz que "ainda é cedo para julgar. Há muita informação desconhecida. Se foram ou não tomados todos os cuidados atempadamente, terá de ser a história a dizer".

Mas o secretário do Partido Comunista de Wuhan, Ma Guoqiang, já admitiu que reagiram tarde à crise viral, dizendo estar "dominado por um sentimento de culpa e de remorso". "Se eu tivesse adotado fortes restrições mais cedo, o resultado teria sido melhor do que é hoje", frisou.

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