Joanna Hogg, uma espécie de grande esperança do cinema britânico, manda às urtigas as regras que dizem que o cinema de arte e ensaio não se compadece com sequelas. Qual quê! O seu filme cartão de visita, The Souvenir, também nunca estreado nos ecrãs nacionais, foi causa célebre de um certo cinema novo em folha do Reino Unido, a tal luz ao fundo do túnel de uma cinematografia que precisa de uma outra energia, uma renovação. Era um objeto que apaixonava por simbolizar uma espécie de angst jovem que ainda diz muito a quem cresceu nos Anos 1980, era também um avatar da própria juventude da realizadora, ou seja, de forma muito própria, um ato romântico de ilustrar um fulgor de juventude de quem escolhe o cinema como modo de vida. Pegou de estaca internacionalmente e na Quinzena dos Realizadores, em Cannes. Agora, a Parte II, verdadeira conclusão de uma história, muito mais do que essa designação de sequela. The Souvenir sempre foi pensado para ser dois filmes, desta vez temos mais escola de cinema da protagonista e menos iniciação e tragédia, mas não deixa de ser um prolongamento lógico e inevitável. Mais do que tudo, é um convite para ficarmos mais perto de um desejo de cinema e de um modo de o pensar..Se na primeira parte víamos Julie a entrar para a escola de cinema e a ser mudada por uma relação com um homem mais velho, um namorado toxicodependente, com final trágico, agora temos essa ressaca..Julie decide dedicar-se mais à vida académica e à pulsão de fazer cinema, tudo isto enquanto é amparada pelos pais, figuras entre a frieza e um amor incondicional. Desse luto é óbvio que sai a história do seu filme de escola, um enredo que narra o que acontece quando uma cineasta é arrastada para os dramas provocados por um namorado mais velho e preso ao vício da heroína. Um projeto cinematográfico que atrai e afasta várias figuras da escola, desde os atores que escolhe aos seus professores. Acima de tudo, a personagem do namorado pretende ser uma fantasia cinematográfica do ideal de um homem..Durante as filmagens, a fina linha que separa realidade e ficção marca indelevelmente a alma da jovem aspirante a cineasta. Estes são os momentos em que Julie deixa de ser uma rapariga e se torna uma mulher. São tempos em que a sua vida amorosa e sexual entra numa espécie de desgoverno, embora talvez seja assim que aos poucos encontre um caminho para um equilíbrio de formação de uma personalidade, quer enquanto mulher quer como cineasta. A certa altura, talvez seja num plateau que esta jovem descubra a sua verdadeira voz, nem que seja a lidar com os egos dos seus atores..A narrativa do filme também explora o ambiente da escola, dos projetos dos colegas à maneira como o cinema é gerido pelo corpo docente. E, em fundo, a presença da mãe, protetora que vai percebendo como a filha pode encontrar um desabrochar feliz..The Souvenir, o primeiro ou este, é daqueles casos de cinema dentro do cinema, mas sem esquecer a dimensão íntima e verdadeira das personagens. Por mais ajuste de contas autobiográfico que reclame, este olhar de Joanna Hogg é eminentemente narrativo. Coisa pessoal que não dispensa um aparato de melodrama, algures a reivindicar uma sofisticação gentil, muitas vezes imposta pelo charme dos atores certos, em especial a protagonista, Honor Swinton-Byrne, atriz que não força nada e que já era ótima na primeira recordação..Depois há também Tilda Swinton, que parece um boneco de mãe britânica reprimida, mas que debaixo da maquilhagem pesada é de uma verdade assustadora. Nos mais secundários, um prazer ver Joel Alwyn como sedutor editor ou um divertido Richard Ayoade como realizador de musical..E é ainda dessa dimensão de confissão pessoal que o filme arranca um engenho de coerência sobre os legados da burguesia artística. Joanna Hogg não tem medo de convocar essa nuance posh, sobretudo ao abrigo desse imaginário de recordação dos 80, a década que em Inglaterra trouxe uma juventude que foi mais moderna que a geração precedente, mesmo quando a afetação de classe era notória e caso de estudo..Se este díptico pode surgir como lição de vida, a isso se deve essa tal carga de identificação. Não é preciso termos memórias de namorados perdidos ou aspirado a uma carreira de elevação artística para não ficarmos tocados por estas notas. As personagens, desta vez, estão mais próximas de nós. Talvez isso torne este segundo tomo mais tocante. Isso e a reflexão sobre aquilo que o cinema nos tira e nos dá. Só é menos edificante quando muitas vezes parece exibir uma certa vaidade teórica no seu discurso algo elitista, mesmo quando o charme pseudointelectual british seja bem eficaz..Mas se The Souvenir era já filme de culto, por que persiste invisível entre nós? Boa pergunta, a reposta esteja no atual beco sem saída do estado do lançamento comercial de cinema de qualidade. O número II no título também não ajuda, mas é pena que estas duas obras com uma liberdade artística tão expressiva apenas possam ser vistas cá no mercado dos videoclubes das operadoras, quanto mais não seja porque esta semana Hogg está em competição em Veneza com The Eternal Daughter....dnot@dn.pt