O título é inesperado, O Deus das Moscas Tem fome, tal como a narrativa passada no século XIX e que recolhe impressões de várias partes do mundo. Portugal está bem presente nesta aventura de um novo herói, Benjamim, Tormenta, idealizado pelo autor Luís Corte Real que, confessa, inspira-se em nomes principais do género literário do fantástico e do horror. Estranho é afirmar que a obra de Eça de Queiroz está tanto em destaque como em pano de fundo, nada que não se perceba rapidamente..É impossível não se perguntar o porquê deste seu aparecimento literário acontecer após muitos anos de atividade editorial. O que atrasou essa entrada na literatura? "Alguém disse que todo o português tem um livro dentro de si, e que o melhor era deixá-lo lá ficar. Sou editor [editora Saída de Emergência] há quase dezoito anos e sei, em primeira mão, que se publica demais e muita mediocridade. Como tal, só me senti confortável em avançar quando senti que tinha algo original e com qualidade para oferecer. Precisei de quarenta anos de leituras para isso, mas só os leitores do Benjamim Tormenta dirão se valeu a pena ou se devo deixar o segundo volume dentro de mim", responde..Este é o seu primeiro livro. Só poderia ser do género fantástico-terror? Não me vejo a escrever noutro género. Mesmo quando imagino tramas que parecem romance histórico ou policial, há sempre vestígios do género fantástico. E, no entanto, leio e gosto quase de todos os géneros..Situa-o em muito numa Lisboa negra, misteriosa e cheia de segredos. É um cenário muito distante do atual? O Chiado e a Baixa oitocentista não seriam tão diferentes das de hoje em termos de malha urbana, mas a moldura humana era outra, o chiar das rodas das carroças preenchia o ar, o macadame encontrava-se armadilhado do esterco que os cavalos largavam, as lojas vendiam fundamentalmente produtos franceses, os galegos atropelavam-se nos passeios para levar recados e trazer encomendas. E saindo das zonas históricas, o que rodeava Lisboa eram quintas, moinhos e animais a pastar - Lisboa era a capital de um império mas não passava de uma aldeia na grande Europa. Como uma das cidades mais antigas e fascinantes do Velho Continente, Lisboa sempre teve os seus segredos; eu apenas os tornei mais tenebrosos, mais medonhos, e coloquei Benjamim Tormenta a desvendá-los..Citaçãocitacao"Eu escrevo o que gosto, e o que eu gosto é a soma de tudo o que li, em proporções e percentagens que me são exclusivas. Se não tivesse sido eu a escrever este livro, então eu seria um seu leitor e iria a correr a uma livraria comprá-lo.".Qual foi a razão para criar um submundo lisboeta tão tenebroso para o seu herói? Sempre invejei a literatura que se passava em Londres. E quando digo literatura, digo banda desenhada, cinema ou televisão. Essa cidade, por ser uma imensa metrópole humana, económica, tecnológica e militar, e também pela língua que fala, há muito que atrai as atenções dos autores e dos leitores. As centenas - ou milhares - de livros que fazem de Londres o seu cenário acabaram por atribuir a essa cidade uma aura épica, quase mística, no nosso imaginário. Quis fazer o mesmo com Lisboa em O Deus das Moscas Tem Fome. No século XIX, Lisboa era a capital de um império decadente mas que estendia a sua influência por cinco continentes. Poderia ser menor do que Londres em tudo, mas não nos segredos, nos mistérios e nos perigos que se escondiam nos seus becos..Uma história que começa em Macau em 1873 e que dá o tom à narrativa que se segue. O Oriente é o melhor caminho para se entender o Ocidente? O livro começa em Macau para nos relembrar que o império português, apesar de decadente, ainda era global. Tal como no tempo das Descobertas, Lisboa continuava a ser um epicentro de gentes, produtos, tradições e segredos provenientes dos quatro cantos do mundo. Quando um navio proveniente de África, Ásia ou Américas lançava âncora no Tejo, o que poderia vir escondido no seu porão? Que personagens se preparavam para desembarcar? E com que intenções?.A ação continua em 1873, mas desta vez em Lisboa. Como foi a investigação para recriar estes cenários? Investigar a Lisboa oitocentista, remexer nos seus fantasmas e nos seus ossos, tornou-se tão fascinante quanto escrever sobre ela. Benjamim Tormenta pode ser o herói mas Lisboa é a personagem principal. Muitos leitores dizem-me que se sentiram transportados no tempo ao ler o livro; que viajaram para aquela Lisboa que já não existe. Esse é o melhor elogio que me podem fazer. Emily Dickinson disse que não havia melhor fragata do que um livro para nos levar a terras distantes. Para esses leitores, este livro terá sido uma fragata que chegou a bom porto..Como é resvalar para o passado sem cair nas armadilhas da História e noutros erros quando se pretende retratar esse tempo de uma forma correta? Fiz tudo para retratar a Lisboa oitocentista da forma mais correta e fiel. Procurei-lhe as vistas da altura, os odores, os perigos, os podres, os nomes das ruas - tantas vezes diferentes dos atuais -, as curiosidades nos passeios: dos circos de pulgas às costureiras de cesto no braço, dos artistas diante da Havaneza às vendedoras de flores; dos ardinas aos pregões aos dandies afetados, das peixeiras no Aterro aos cantores do São Carlos, dos aristocratas falidos aos policias civis com o número na gola..Define O Deus das Moscas Tem Fome como "uma espécie de X-Files na Lisboa de Eça de Queiroz, Com influências que vão desde H.P. Lovecraft e Conan Doyle a Mike Mignola". É impossível o autor fugir às suas leituras preferidas? Para mim é impossível fugir. E nem quero. Eu escrevo o que gosto, e o que eu gosto é a soma de tudo o que li, em proporções e percentagens que me são exclusivas. Se não tivesse sido eu a escrever este livro, então eu seria um seu leitor e iria a correr a uma livraria comprá-lo. Escrevi para mim, mas desejando que outros sintam que escrevi para eles..Escolhe um protagonista, Benjamim Tormenta, que é um detetive do oculto. Um ser habitado por demónios como todos nós ou mais do que o normal? Ao longo do último século o detetive do oculto tornou-se presença assídua no fantástico de horror, tal como o detetive badass no policial noir. Benjamim Tormenta tem a particularidade de estar possuído por uma entidade suméria com quem tem uma relação de ódio e dependência. Precisam um do outro mas querem trucidar-se de todas as formas. Essa relação forma um arco narrativo que abraça todos os casos do livro..Dá lugar às sociedades secretas na vida nacional. Essa situação não é ficção, pois não? Que detetive do oculto seria Benjamim Tormenta se não tivesse sociedades secretas para enfrentar? Não são as sociedades maçónicas ou republicanas - essas apenas querem poder ou derrubar reis. As sociedades secretas que Tormenta enfrenta são muito mais perigosas, querem convocar aberrações medonhas e ver tudo a arder..Benjamim Tormenta, o primeiro investigador paranormal da literatura nacional, irá ter um lugar na galeria dos heróis literários portugueses? É provável que Benjamim Tormenta seja o primeiro detetive do oculto da literatura portuguesa, mas lá fora seria mais um numa extensa galeria de personagens que existem nas bandas desenhadas de Alan Moore e Mike Mignola, em séries de televisão como Penny Dreadful ou nos livros de H. P. Lovecraft. Portugal tem falta de heróis populares, gostava muito que Benjamim Tormenta ganhasse, por mérito próprio, um lugar nessa galeria..Depreende-se através da leitura que Eça de Queiroz é uma inspiração. Eça é um autor fantástico, no seu caso do fantástico. O que os une e separa? Eça, com a sua obra - de ficção, viagens e epistolar -, pegou na minha mão e guiou-me para a Lisboa do século XIX. Inspirei-me nele, usei algumas personagens suas, e roubei-lhe tudo o que pude: descrições de belas mulheres, imagens de ruas ao final da tarde, expressões de época e particularidades que se perderam com o tempo. O que nos une? O amor por Lisboa. O que nos separa? Aquilo que o separa de qualquer outro autor português: o talento único e inimitável..O género em que este livro se inscreve tem muito poucos autores em Portugal e também leitores. A que se deve essa situação? O horror, a fantasia e a ficção científica são os géneros a que chamamos fantástico - em oposição ao realismo. Em países com mais hábitos de leitura são géneros fortes. Cá também são, mas apenas no cinema e na televisão. Nas livrarias o leitor português ainda desconhece o que o fantástico tem para oferecer. Quando aparece um fenómeno como A Guerra dos Tronos de George R. R. Martin, que sai do nicho e conquista o público mainstream, as pessoas de repente apercebem-se que até gostam de dragões, mortos vivos e sacerdotes com espadas flamejantes. Mas o nicho ainda é pequeno e o próprio mercado português permanece insignificante - cada português compra apenas 1.5 livros por ano (metade de um grego e o terço de um espanhol). A vantagem de O Deus das Moscas Tem Fome é que é, em partes iguais, romance histórico, policial e horror. Conseguindo apelar ao público mainstream pode ser que o Benjamim Tormenta encontre o seu público e regresse com um segundo volume -que já estou a escrever, nas minhas madrugadas - ou não fosse de horror!.Luís Corte Real.Editora Saída de Emergência.430 páginas.Regresso do Nobel Patrick Modiano ao seu labirinto preferido.Tinta Simpática é o sexto volume das obras de Patrick Modiano publicadas pela Porto Editora, o escritor francês que recebeu para surpresa de todos o Nobel da Literatura em 2014. Talvez só nesse final de manhã do dia do anúncio do mais importante galardão destinado à literatura é que a maioria dos seus atuais leitores fora de França o tenham conhecido, mas esta nova edição de um dos seus títulos confirma o quão justo foi o prémio da Academia Sueca. Quanto mais não seja, porque o universo literário em que se move é tão gigantesco na criação como diminuto no que respeita a temas e localizações, afinal raramente foge da Paris ocupada pelos alemães e a repressão aos judeus em grande parte das suas narrativas. O que à crítica estrangeira pareceu sempre redutor, no entanto transforma-o num criador extraordinário de um nicho da História e das histórias de uma certa vida..Em Tinta simpática, Patrick Modiano parte das recordações de um protagonista: um nome, um rosto de mulher e uma fotografia pouco nítida. O narrador que busca aquela mulher confronta-se com as lacunas de um dossier e serão elas o motor de uma procura que o levará a descobertas. Anos depois de ter surripiado o dossier, bate a várias portas mas o "não" é a reação constante na maioria das respostas a quem vai perguntando sobre aquele rosto que ficou para trás... até que alguém lhe dá uma ponta de esperança para a sua complicada peregrinação. A ler ou a descobrir..Patrick Modiano.Porto Editora.95 páginas.As utopias que as reportagens de Paulo Moura explicam.A capa mostra uma imagem de uma rua oriental, com uma linguagem incompreensível devido aos caracteres, mas o texto que percorre as mais de duas centenas de páginas deste novo livro de Paulo Moura desmancha a impossibilidade de entender outras civilizações que não as ocidentais. Se o título Cidades do Sol não diz tudo, com o subtítulo Em busca de utopias nas grandes metrópoles da Ásia fica o leitor situado sobre a pretensão do autor..A pergunta principal é: "O que tem o mítico oriente para oferecer ao mundo?" A razão que leva a essa questão é estarmos "nas vésperas da emergência da China como maior potência mundial e da Ásia", daí que o jornalista faça uma revisitação às megacidades orientais - Jacarta, Manila, Seul, Hong Kong, Macau, Xangai ou, entre outras, Pequim, e encontre as respostas que originaram esta viagem..O foco dos protagonistas deste livro é a classe média que nasceu nos últimos anos em tais países e o estatuto que está a adquirir quando comparada com a ocidental e a razão é explicada em poucas palavras: "Quando alguém se liberta da escravidão da subsistência, é impelido a refletir, a sonhar, a procurar um sentido para a vida". Com a leitura de Cidades do Sol compreende-se por que tantos milhões mudam a face da Terra: "O direito ao sonho". Foi dessa vivência de uma miríade de sonhos que o autor chega às suas conclusões e as partilha com os leitores. Com uma particularidade, que faz questão de deixar registada: "Esta - a viagem de um português pela Ásia em busca de utopias - é decerto muito antiga"..Paulo Moura.Editora Objectiva.269 páginas