Livre versus Joacine. Os dias do fim

Encerrado o IX congresso o Livre, as posições mantém-se antagónicas. Joacine admite conciliação se houver cedências de parte a parte. A direção diz que só "um milagre" pode alterar a retirada de confiança política à deputada.
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Joacine Katar Moreira saiu do IX congresso do Livre a defender que ainda há caminho para um entendimento com o partido, de forma a inverter a retirada de confiança política proposta pela anterior Assembleia do partido. Para isso "é preciso que haja cedências de parte a parte". "Eu ainda estou disponível", disse aos jornalistas, já após o encerramento do congresso.

E que cedências são essas? "As que forem necessárias para não inviabilizar a confiança que os eleitores depositaram em nós", afirmou Joacine, que defende que o facto de os congressistas terem votado o adiamento da decisão sobre a retirada da confiança política "mostra que nunca houve unanimidade" no Livre quanto a essa decisão. A deputada espera uma "época ainda um bocado agitada" nas semanas que se seguem, diz que será necessário "conversar imensamente" - Joacine queixa-se de não ter sido ouvida neste processo -, mas notoriamente considera que é possível um entendimento com as estruturas dirigentes do Livre.

Mas a perspetiva não é partilhada pela direção do partido eleita este domingo, que defende que só "um milagre" pode inverter a rutura do partido com a deputada. E se a mensagem já é clara, Pedro Mendonça, que falava em nome do recém-eleito Grupo de Contacto, ainda acrescentou - "Sou ateu, não acredito em milagres".

"Não vejo como possível [inverter a decisão], a não ser que exista um milagre que transforme todas as relações laborais, pessoais e políticas de cima a baixo", disse Pedro Mendonça. O dirigente sublinhou, aliás, que a nova direção se considera mandatada para prosseguir o caminho que foi traçado pela anterior, defendendo que "o reforço de mais de 85% dos votos expressos em urna" dão aos novos eleitos um sinal de que o partido quer "a continuidade da linha que a direção tem vindo a seguir".

Pedro Mendonça sustenta que, "se por algum ato milagroso" houver uma mudança de atitude por parte da deputada os órgãos do partido trabalharão com ela. E o que seria essa mudança de atitude? A lista é longa e significativa do muito que afasta as duas partes: "Se Joacine Katar Moreira assumir que o Livre tem um programa eleitoral, uma carta de princípios, um modo de estar na política; se não recusar reuniões com outros partidos de esquerda, progressistas; se puser na sua agenda os temas que o partido, em partilha e voto colaborativo decidir; se mantiver o grau de lisura, o nível de conduta educacional que se exige em política, então aí será possível".

"O congresso votou pela continuidade"

A ideia de continuidade das estruturas dirigentes do partido já tinha ficado expressa no discurso de encerramento do congresso, com Isabel Mendes Lopes, do Grupo de Contacto (o órgão executivo do partido), a defender que "o congresso votou pela continuidade das pessoas, das ideias". Nas votações deste domingo, a lista única candidata à direção (de onde saiu Joacine Katar Moreira, que não foi convidada a continuar) obteve 95 votos a favor e 15 brancos, num total de 110 votantes.

Quanto à Assembleia do Livre, o órgão que vai decidir se o partido avança ou não com a retirada da confiança política à deputada, os números não parecem favorecer Joacine. Muitos dos nomes eleitos transitam da Assembleia anterior, que aprovou por unanimidade a resolução a defender a rutura com a parlamentar. E, mesmo entre os novos, há quatro nomes que vêm do grupo de contacto (que manifestou solidariedade para com a proposta da Assembleia).

A partir dos discursos feitos nos dois dias de conclave, os congressistas que claramente se posicionaram ao lado da deputada e que agora têm assento na Assembleia contam-se pelos dedos de uma mão. Isso não significa que não recolha mais apoios, que não ficaram expressos no congresso, mas longe de uma posição maioritária.

Há ainda outro sinal deixado nas votações: os membros da Assembleia mais votados (a eleição é nominal) transitam do órgão anterior. A começar por Rui Tavares, o mais votado entre os 67 candidatos ao órgão máximo do Livre entre congressos. Entre as mulheres a candidata mais votada, com 49 votos, foi Patrícia Robalo - a quem coube apresentar aos congressistas a decisão da 42ª Assembleia de retirar a confiança política à deputada, a intervenção que viria a provocar o discurso exaltado de Joacine, logo no sábado.

Congresso encerrado. E agora?

Agora, cabe à Assembleia do Livre tomar a decisão final sobre a retirada da confiança política à deputada. Para já, é preciso que o órgão reúna, o que não deverá acontecer esta semana. Depois, o processo depende dos passos que a Assembleia entender dar. Dado que no congresso deste fim de semana foram apontadas falhas processuais - nomeadamente pelo presidente do Conselho de Jurisdição, Ricardo Sá Fernandes - à resolução que precipitou a rutura, é previsível que a nova Assembleia faça, pelo menos, a diligência de voltar a ouvir Joacine Katar Moreira. Até porque, ao longo do congresso, a direção do partido reiterou que não queria que ficassem quaisquer dúvidas processuais.

Hoje, Pedro Mendonça referiu que o Grupo de Contacto acatará qualquer que seja a decisão da Assembleia, uma espécie de parlamento do partido. Recorde-se que, no sábado, o congresso prescindiu de tomar uma decisão sobre a retirada da confiança política à deputada, remetendo o desfecho para os órgãos eleitos este fim de semana. Uma decisão que foi aprovada por uma escassa diferença de dois votos.

"Elegeram uma mulher negra, que foi útil para a subvenção, tem que ser útil para vos defender"

Como já era expectável, os dois dias de trabalho do IX congresso do Livre foram dominados pelo diferendo entre o partido e Joacine Katar Moreira. Se na sexta-feira, em vésperas do conclave, ninguém sabia se Joacine marcaria presença na reunião magna do partido, no sábado de manhã lá estava a deputada sentada na primeira fila do centro cívico Edmundo Pedro, em Alvalade, Lisboa. E os ânimos não demoraram a aquecer. Feita a intervenção que apresentou ao congresso os argumentos da Assembleia para propor a retirada da confiança política à deputada, Joacine subiu ao palco para um discurso tão duro quanto elevado nos decibéis.

"Isto que acabou de ser feito aqui, isto é inadmissível. Isto é mentira! Mentira! Tenham Vergonha! Vergonha! Mentira absoluta! Isto é inadmissível! Virem para aqui dizer ao país inteiro as mentiras que acabaram de dizer, como é que isso é possível?! Como é que é possível?! Como é que ousam fazer isto? Como é que ousam afirmar que não ouvi as pessoas, que não fui leal ao partido, que desrespeitei o que foi decidido? Como é que é isto?", gritou Joacine ao congresso. Perante os pedidos da mesa para que tivesse calma, devolveu: "Não me peças calma, isto é uma perseguição absoluta".

"Elegeram uma mulher que gagueja, muito bem, que nunca escondeu isso. Elegeram uma mulher negra, que foi útil para a subvenção, tem que ser útil para vos defender", atirou a deputada, já a terminar a intervenção em que garantiu que não vai renunciar ao mandato parlamentar. O que significa que, a concretizar-se a retirada da confiança política, Joacine vai manter-se na Assembleia da República como deputada independente (não inscrita).

Se o tema Joacine dominou totalmente o congresso até à decisão de remeter o assunto para os órgãos do partido, uma decisão que Joacine interpretou como "um voto de confiança" - leitura contrariada pela direção - no domingo a reunião magna encontrou espaço para o debate ideológico, com as moções mais aplaudidas do congresso a reclamarem para o Livre o lugar de partido ecologista.

Foi o caso da moção apresentada por Carlos Teixeira (o nome que sucederia a Joacine no Parlamento, caso a deputada renunciasse), que considerou que este é "um território ideológico que está por reclamar" em Portugal. "No essencial, Portugal continua sem partidos ecologistas e o Livre continua sem ser capaz de se afirmar enquanto tal", apontou, defendendo que o partido deve assumir a "prioridade ecológica". A moção foi aprovada por maioria.

Já o documento apresentado ao congresso por Rui Tavares - "Novo pacto verde, um desafio do Livre para Portugal, a Europa e o planeta" - obteve a unanimidade. Numa intervenção com alguns remoques a Joacine Katar Moreira ("Estas moções que estamos aqui a discutir hoje dão-nos razões para acreditar num partido que conhecemos desde o início, onde há conteúdo, onde há ideias, onde há vontade de as discutir com honestidade perante a verdade"), Rui Tavares seria depois interpelado pela deputada, que se levantou do lugar e foi sentar-se ao lado do fundador. A conversa foi breve e sem sorrisos. O ex-eurodeputado diria depois que não comenta conversas privadas, "nem sequer as que são mais para a fotografia".

Sobre o futuro próximo, remeteu para a Assembleia do partido, sublinhando que o Livre tem "arcaboiço" para "reconstruir a sua credibilidade".

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