Lars Von Trier interna-nos de novo no seu hospital
No sol abrasador da praia do Lido a Netflix parece dominar o espaço publicitário. Haja orçamento e haja passadeira vermelha do festival para isso. O filme de abertura, White Noise, adaptação de Noah Baumbach, ao romance homónimo de Don DeLillo parece dominar as atenções. São outdoors que chamam a atenção e, com horas de antecedência da premiére, junto à Sala Grande, eram algumas as fãs do ator Adam Driver que faziam fila ao sol, a maior parte protegida por guarda-sóis. Depois dos anos da pandemia - Veneza foi o único grande festival que durante o Covid nunca cancelou as galas físicas - as multidões parecem voltar e as filas para as sessões da imprensa são grandes, em especial para uma das primeiras sessões, a maratona de episódios de The Kingdom- Exodus, de Lars Von Trier, o regresso à televisão do excêntrico dinamarquês.
A série foi filmada antes de se saber que o realizador sofria de parkinson e numa sessão para os acreditados ouviram-se aplausos de fãs quando o seu nome aparece no genérico inicial. Alberto Barbera, o diretor do festival, selecionou esta série nórdica para não deixar fugir da vista Lars, nome que construiu a sua reputação em Cannes, mas é também uma escolha simbólica: esta mostra quer estar perto da ficção televisiva. Porém, o que acontece quando descobrimos estas imagens num grande ecrã talvez esteja mais próximo de uma auscultação de cinema. O diagnóstico deste hospital dinamarquês aterrador diz cinema e apresenta sintomas de comédia e terror. Se em 1994 esta série também chegava ao cinema, em tempos de streaming, para já nada se sabe, mas também é prudente não atirar tantos foguetes: há uma sensação de fatiga, sobretudo na exploração das nuances do horror, mesmo quando agora se fale em espiritismo e misticismos diabólicos. É como se Trier quisesse fazer uma manobra de género irreverente. Uma irreverência cheia de aspas, apenas pontuada por ocasionais flashes de medo, sobretudo quando surge um Willem Dafoe em forma de homem-coruja. Um ator sempre monstruoso com capacidade para pregar as maiores partidas no nosso subconsciente.
The Kingdom- Exodus começa com uma senhora idosa a ver nos nossos dias a série antiga em DVD e a protestar com Lars Von Trier sobre o final. Aliás, tudo aqui é tão carregado com linguagem meta que as personagens estão sempre a falar de Lars e da antiga série, supostamente causadora de uma má reputação desse hospital chamado Reino. Acresce a isso a chegada de um novo chefe sueco e, com ela, uma torrencial sucessão de piadas de um sentido sobre como os suecos olham para os dinamarqueses. Lars deve ter tido muito gozo nesta criação...
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