"Largámos tudo para dar a volta ao mundo." Vai ser a sala de aula dos quatro filhos

Dentro do veleiro da família, os miúdos vão aprender português e matemática. A viagem será uma aula de geografia e em cada paragem vão aprender ciências e história. Os Saldanha Pisco estão prestes a fazer-se ao mar e não têm data para voltar. "Vamos mostrar o mundo a sério." A rota preparada dura quatro anos.
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"É uma loucura! É uma loucura! Mas uma loucura boa!", dispara Inês Saldanha, apressada, mal atende o telefone e percebe que queremos falar sobre a viagem à volta do mundo que se prepara para empreender com o marido, João Pisco, e os quatro filhos, a bordo de um veleiro de 15 metros e habitáculo de uns 20 metros quadrados, literalmente ao sabor do vento. Pede 15 minutos para carregar a bateria "no barco", personagem importante nesta história. Será meio de transporte, casa e sala de aula. A partida estava marcada para este sábado, mas a falta de vento atrasou-a por mais umas horas. Não há data para voltar.

"Largámos tudo para dar a volta ao mundo", resume Inês, quando volta a atender o telefone dentro da embarcação atracada na marina de Cascais, ventoinha a funcionar e bateria a carregar graças aos "painéis solares" instalados pelo "capitão" - é assim que trata o marido. Captar energia foi uma das muitas coisas que tiveram de aprender quando decidiram que iam cumprir o sonho de "conhecer o mundo e mostrá-lo a sério aos filhos. Esta é uma memória que vamos ter em comum", explica. E também um sonho que se torna realidade.

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"Eu ainda não namorava com o João e já queria fazer uma viagem à volta do mundo. Apaixonei-me quando ele me diz que o sonho dele é velejar num barco cheio de filhos. Eu queria ter quatro filhos, pensei: deixa-me agarrar este", ri-se. Quando largarem as amarras, começam a cumprir um sonho com 18 anos.

Começaram pelos filhos - Alice (10 anos), Manel (8), Francisco (5) e Teresa (2) - e há sete anos, "durante umas férias no Algarve, este assunto voltou e decidimos que íamos mesmo fazê-lo". Que iam, por exemplo, juntar os 120 mil euros que lhes custou o veleiro de 15 metros, que João foi buscar ao Panamá há um ano e que a família tem estado a preparar nos últimos meses. "Este negócio é para gente riquíssima, não estamos mal, mas foi preciso juntar o dinheiro. Aproveitamos esse tempo para pesquisa, não sabia nada sobre esse assunto."

Finalmente, deixaram os trabalhos - ela como organizadora de eventos, ele como professor de fotografia - e alugaram a casa onde viviam. "É uma questão de mudar de perspetiva. A minha vida vai passar de ser muito cómoda para ser uma vida muito simples."

Num ano tão atípico como 2020, Inês diz, também atipicamente, que a pandemia não teve influência na decisão de partir. Estava decidido desde o início do ano. Tinham planeado sair em agosto, com ou sem covid-19, mas decidiram fazer umas férias descansadas e só sair em setembro. "O mais fácil foi mesmo a escola", diz Inês.

Após quatro meses de aulas em casa - a realidade vivida por Inês, João e todos os pais com filhos em idade escolar em Portugal durante o confinamento -, pode contra-argumentar-se o contrário, mas Inês fala com o mesmo entusiasmo. "Detestei estar em casa presa com os miúdos. Por não se saber o dia de amanhã. Essa incerteza psicológica é que nos faz ficar aflitos. Aqui sabemos que vamos estar cinco dias no mar para chegar às Canárias. Aproveitamos as travessias para estudarem mais. Sei que posso estar um mês ou dois em Cabo Verde ou na Gâmbia. O barco é só um meio de transporte. Imagina chegarmos a esses locais a contar a história."

Alice e Manel, que já frequentam o ensino obrigatório, deviam ter ficado inscritos no ensino doméstico em Portugal, mas, sem o sim da Direção-Geral de Estabelecimentos Escolares (DGEste), a família optou por uma escola americana, Clonlara, com um currículo específico para quem estuda à distância. "Têm um sistema de ensino mais à frente, partem do interesse da criança e é o interesse da criança e da família que comanda. Têm de aprender português e matemática, mas sempre sob essa premissa", explica Inês Saldanha. Em terra têm conselheiros "que ajudam com as melhores apps e sites, ferramentas e livros para me ajudar se sentir dificuldade".

As aulas começam ainda em terra, e no meio da conversa com o DN, com o mapa aberto na mesa da família dentro do veleiro. O indicador de João faz a rota de circum-navegação ao mesmo tempo que explica às crianças de onde sopra o vento que vai levar a Wind Family, Atlântico fora, até ao canal do Panamá.

Quando já estiverem do outro lado do mundo, no Pacífico, sempre na direção do calor, sabem que deverão estar parados mais meses, por opção e pelas condições meteorológicas. "Na época dos furacões queremos integrar-nos nos sítios onde vamos." E, nas ilhas da Austrália, "os miúdos podem frequentar a escola, estar com outros miúdos e aprender inglês", diz João. O mesmo para o francês nas ilhas francófonas.

A outra amarra de que se quiseram livrar foi a do tempo. A rota planeada prevê dar a volta ao mundo em quatro anos, mas Inês, 37 anos, garante que não há regras. "Não há data de regresso, para não estarmos dependentes. Se gostarmos muito ficamos, se não voltamos. Se virmos que está a ser muito exigente, fazemos uma coisa mais simples, os primeiros seis meses são para nos adaptarmos."

João, 44 anos, explica: "A viagem à volta do mundo que queremos fazer demora pouco menos de dois anos, mas vamos fazer com tempo, a ideia não é andar só a carimbar o passaporte." Conhece quem tenha acabado por ficar seis, oito e até dez anos no mar. "A única coisa que não queremos é que a viagem entre pela adolescência dentro."

Inês não desfaz o otimismo nem quando fala das contrariedades. "Isto não é uma coisa das nove às cinco, temos de dar tempo ao tempo." Ao princípio, temia as tempestades. "Era a primeira pergunta que fazia a todas as mães que fazem estas viagens. Falei com muita gente nos últimos anos. Todos me diziam o mesmo: habituas-te! O pior é quando já estiveres farta do teu marido e dos teus filhos." Para isso também lhe deram antídoto: aproveitar as idas a terra.

Afinal, vão viver todos juntos no equivalente a um pequeno T0 onde cabe o quarto dos pais, a cozinha, a mesa da família, a casa de banho com duche e os quartos, isto é, cabines das crianças. "O pior é termos de lavar a louça e a roupa e arrumar tudo", admite Alice, a mais velha que vai partilhar tudo com a irmã de dois anos (e muitos livros), enquanto os rapazes dividem um beliche com um segredo que Francisco, o terceiro filho, revela sem se fazer rogado: "Levantas a cama estão lá os brinquedos."

O capitão, "aquele em quem confiamos para tudo", diz a Inês: "Se não gostarmos voltamos para trás, vendemos o barco e voltamos para casa. E quando ele me diz isto desta forma leve eu fico a sentir-me melhor. E não acredito que desista, conheço-me, se sou tão persistente para levar isto avante..."

Quando a adaptação for realidade é hora de dar continuidade aos projetos de solidariedade - recolher lixo nas praias. Fê-lo na Guiné e, anos antes, na Amazónia. "Quero copiar o que aprendi ali, quando me explicaram que é importante recolher o lixo antes das chuvas e assim evitar a propagação das doenças." "Se eu andar de comunidade em comunidade não estou a mudar o mundo, mas estou a fazer algo pelos meus filhos e a deixar uma marquinha."

DestaquedestaquePorto Santo, Canárias e Cabo Verde são as primeiras paragens da Wind Family. Se o vento ajudar, o Natal será passado nas Caraíbas

Um dos lugares que Inês Saldanha mais quer visitar é a Papua-Nova Guiné. Não sabe se conseguirá. "Não sabemos" é, aliás, a frase que mais repetem por estes dias. Andam ao sabor do vento e da vontade. "O importante é estarmos todos felizes e satisfeitos." Mas aí, sim, a pandemia cobrou uma fatura. "Temos de saber se temos autorização para entrar no porto."

Para já, sabem que a primeira paragem é Porto Santo. Seguem-se as Canárias, onde pensam ficar por um mês, e Cabo Verde, onde pretendem conhecer as várias ilhas e ficar mais um mês, e, se a pandemia deixar (e a autorização chegar), a Gâmbia. Seguem Atlântico fora no final de novembro a caminho das Caraíbas. Contam passar o Natal no calor da Martinica e, se tudo correr bem, ter a companhia da família que os vai visitar e usar a cama extra do veleiro.

A partida estava marcada para este sábado, mas já se sabe: o vento é que manda e acabou por ditar mais um pouco de espera.

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