O Nobel da Literatura de 2017, Kazuo Ishiguro, é muito avesso a dar entrevistas sobre os seus livros e abriu uma exceção para conversar sobre o seu novo romance, Klara e o Sol, sob a forma de uma conferência de imprensa mundial. Cada jornalista enviou uma pergunta e durante quase cem minutos o escritor respondeu. O cenário do romance é no futuro, neste caso num planeta Terra em que a inteligência artificial é uma realidade normal e os cidadãos partilham dos seus benefícios sem grandes questionamentos. O leitor é posto logo de início perante um robô que revela as sensações de inquietude enquanto aguarda ser exposto na montra de uma loja e encontrar dono. A complexidade da composição com que constrói a protagonista da narrativa surge sob todos os ângulos de imediato e, pode-se avançar, que o leitor terá oportunidade nas páginas seguintes de se colocar como nunca questões de ética perante o que representará a leitura de Klara e o Sol....Quando surge no ecrã, e antes de se poder reparar nos pormenores da sala onde se encontra - um piano branco ao fundo, vários quadros e estantes -, Kazuo agradece a oportunidade de falar com jornalistas de todo o mundo e refere que lamenta não poder visitar vários países para apresentar pessoalmente o novo livro "numa conversa mais íntima ou sentados num café". Compromete-se a dar tudo para responder às perguntas....A primeira questão, como não poderia deixar de ser, vai para o período pós-Nobel e o que mudou na sua vida e na forma como escreve: "No que respeita a este romance, ele já estava a avançado na escrita quando o Prémio Nobel me deu um murro no estômago em pleno passeio pela cidade. Não estava à espera de ser escolhido e, seis meses depois, quando chegou a hora de estar dispensado de dar uma atenção total ao Nobel, veio a hora de dar atenção a Klara e o Sol, que já estava avançado no seu caminho e, portanto, creio que o Nobel não afetou a escrita de modo algum neste caso.".No entanto, se em Klara e o Sol não interferiu, Ishiguro questiona-se sobre se num próximo livro tal irá acontecer: "Não sei ainda prever o que irá suceder, mas por agora penso que ficarei incólume. O Nobel foi uma experiência inesquecível, além da honra em o receber, e até fico um pouco embaraçado sobre a minha escolha quando existem tantos bons escritores que o merecem. Mas olho para o Nobel como se tivesse sido concedido a um avatar meu, a uma versão diferente de mim num universo paralelo. Quando regressei ao lugar onde escrevo mantive a sensação de continuar com os meus problemas enquanto escritor e que nada mudou ou que não fiquei mais imaginativo por o ter recebido. Espero que me mantenha deste modo, até porque pretendo seguir o conselho que outros prémios Nobel me deram, especialmente os da comunidade científica, que me avisaram para a "síndrome do génio". Ou seja, o de se acharem génios em tudo após serem escolhidos pela Academia e começarem a ter opinião sobre todos os assuntos até se tornar embaraçoso o facto de os outros perceberem que se desconhecem outras áreas que não aquelas em que se especializaram durante décadas. No meu caso pretendo ficar humilde.".Citaçãocitacao"Mesmo quando Klara se vai tornando mais sofisticada, permanece muito criança. Posso dizer que é como um urso de peluche nos livros infantis e não como os robôs na ficção científica tradicional".Outra das questões impossíveis de fugir a esta conversa é o efeito da pandemia na literatura: "Eu acabei este romance em dezembro de 2019 e a partir daí ocupei-me com a versão final, questionando-me sobre erros ou situações que necessitavam de mais trabalho. Por isso, a pandemia esteve longe de Klara e o Sol, o que não evitou que várias pessoas que leram o manuscrito tenham notado a existência de situações pandémicas e de distopia no livro. É uma coincidência e nada mais; quanto ao futuro não sei se terá algum efeito. Devo dizer que os últimos tempos têm sido repletos de grandes acontecimentos além da pandemia: o assassínio de George Floyd, a campanha eleitoral norte-americana - que continuam a ter repercussão - e o Brexit, entre outros. É um tempo em que estão a acontecer muitas mudanças e que fazem muita mossa a alguém da minha geração e com tradições humanistas e liberais, pois concluímos que as coisas não são como imaginávamos e que há uma leitura errada de muitas situações que nos rodeiam. Talvez essas coisas tenham mais efeito na minha escrita, mesmo sendo a pandemia um acontecimento gigantesco. Ela quer demonstrar-nos de uma forma brutal, e muitas vezes trágica, que não podemos vencê-la com um passe de magia, e obriga-nos compreender como são quase ficcionais as fronteiras que temos andado a construir entre comunidades. A pandemia vai relembrar-nos de que temos de trabalhar em conjunto e olhar de frente o que é importante, principalmente face ao que tem estado a acontecer nos últimos anos, como é o caso de populismos e de nacionalismos, de uma série de revoltas em muitas partes do mundo.".Quando os que leram já o livro encontram ecos da realidade não é por acaso, afinal pela narrativa de Klara e o Sol surge um pai com "tendências fascistas", uma mãe que tem inveja da robô por esta não "ter" sentimentos, o desenvolvimento tecnológico a par da poluição nas cidades, da religião, e de todo um mundo que Kazuo Ishiguro principiara a explorar já no romance Nunca Me Deixes. Desta vez, dá o murro no estômago do leitor como lhe aconteceu ao ser escolhido pela Academia sueca..Porque decidiu escrever um romance sob a perspetiva de termos um amigo que é fruto da inteligência artificial? Eu sou interessado na inteligência artificial como tema há algum tempo e tive sorte de ter conversas muito interessantes com especialistas no assunto que me mostraram alguns dos seus problemas, dos perigos e das oportunidades. No caso do livro Klara e o Sol, o meu interesse começa numa origem diferente, o do meu interesse por literatura infantil destinada a crianças de 5 anos, um tipo de livros que lemos para esses jovens com uma história simples e muitas imagens. Só que nesses livros existe sempre uma lógica estranha, que, contudo, se apresenta como muito natural, e é natural nesse mundo. Essa lógica deixa de ser permitida quando as crianças crescem e, mais ainda, quando somos adultos, em que não se aceita que haja uma criatura que fala ou que a personagem meta uma luz do lado de fora da janela e viaje nela até à Lua. São situações muito naturais nos livros para as crianças, e esse tipo de construção fascina-me porque é muito libertadora, daí que me tenha ocorrido que se tivesse uma criatura com inteligência artificial como protagonista do meu romance, estaria habilitado a fazer outras coisas antes impossíveis..Pode dar um exemplo? O facto de Klara levar uma vida como se fosse um bebé que desconhece praticamente tudo no mundo mas que aprende muito depressa, tal como as crianças fazem aos reunirem as várias peças do que observam e chegarem a conclusões particulares. Mesmo quando Klara se vai tornando mais sofisticada, permanece muito criança - isso foi o que me interessou. De qualquer modo, posso dizer que Klara é como um urso de peluche nos livros infantis e não como os robôs na ficção científica tradicional, como poderia ser relacionada..Mas a personagem Klara não nasce apenas desse interesse por livros infantis? Não, tive muita sorte em ter sido convidado para uns debates com cientistas sobre as implicações sociais de certas descobertas, e esses encontros permitiram-me aprofundar os meus conhecimentos sobre inteligência artificial. Se existem áreas muito importantes na ciência em que estão a acontecer grandes desenvolvimentos, uma delas é na inteligência artificial, daí que ao falar com grandes investigadores - quem as ouvisse acharia que eram conversas impensáveis - eu me apercebesse de que além do que sabia por via do meu fascínio por estes assuntos, já não se está num estágio como era o dos primeiros dias em que os seres humanos aprenderam a programar computadores, que é uma inteligência artificial muito primitiva. Fazer jogos de xadrez com computadores está fora de moda e faz parte de uma época de aprendizagem em que esse desenvolvimento era supervisionado pelo homem. Agora, passámos a uma geração de inteligência artificial muito diferente, em que as máquinas aprendem de outra forma e ensinam-se a si próprias. Têm uma capacidade tão enorme que podem processar milhões de livros em poucos minutos, e Klara é assim..Qual foi o seu propósito nesta personagem? Esta personagem tinha um primeiro propósito e que determina tudo o que irá fazer, porque é independente dos seres humanos no seu processo de aprendizagem, podendo mesmo decidir como o faz. Esta hipótese era muito atraente, pois outra coisa que aprendi com os especialistas da área é que muitas vezes os processos de aprendizagem estão muito além das capacidades humanas. Talvez não processem situações muito simples, como fazer chá; talvez o façam numa cozinha que conheçam, mas numa que lhes seja estranha podem não ser capazes porque as condições são diferentes e ficam confusos. Os seres humanos não têm esses problemas e familiarizam-se rapidamente com a diversidade. Os programas de inteligência artificial consideram estas mesmas tarefas em espaços diferentes muito complexos, e essa situação interessava-me bastante para fazer uma personagem com uma superinteligência para certas tarefas, mas incapaz para outras. Esta foi uma grande inspiração para a personagem de Klara..Citaçãocitacao"Esta história é também sobre uma mãe que receia a morte da filha e que, a dado momento, faz essa pergunta: será a minha filha insubstituível ou pode ser reproduzida? Na época do livro ela pode ser preservada e as particularidades que a tornam única serão replicáveis." .Qual é a influência da inteligência artificial nas nossas vidas atuais e qual será no futuro? Essa opinião está fora do objetivo do romance, além de que - como já referi - quero fugir à síndrome do génio ao achar que posso escrever sobre assuntos que desconheço, mas sei que os entendidos estão a encontrar grandes benefícios na inteligência artificial em vários aspetos da nossa sociedade, como na ajuda ao Serviço Nacional de Saúde inglês para a prestação de cuidados médicos. Mesmo neste período de pandemia, os especialistas confrontaram-se com questões que sem a ajuda da inteligência artificial teriam falhado. Portanto, não há dúvida de que irá ajudar-nos em muitas áreas, mesmo que existam previsões complicadas para o futuro, como a promoção do aumento do desemprego devido aos robôs. Isso exigirá uma reestruturação das nossas sociedades, pois quem não tiver trabalho no futuro por essa razão confrontar-se-á com grandes crises espirituais; também quando a história deixar de ter as vantagens do ser humano ao reformular-se a seguir às crises, como tem feito até agora. Mas não penso que a inteligência artificial tome conta do mundo - isso não me preocupa..Se pode criar desemprego, também pode haver uma inteligência artificial que substitua o papel criativo dos escritores? Espero que não, mas tenho de admitir que uma outra parte de mim fica muito entusiasmada com essa possibilidade. Devido ao meu interesse na inteligência artificial, perguntei a especialistas se poderia haver um programa do chamado "Tolstoi 3" com o objetivo de escrever romances - não existe. Não o de escrever livros superficiais, mas obras que emocionem os leitores, que os façam chorar e rir, ou que se revejam nas palavras escritas. O interessante nessa hipótese de a inteligência artificial poder substituir os romancistas é dizer que sim a um nível primário, de quando se fala de livros de ficção ou peças de música saber se compreende as emoções humanas e se as pode manipular. Portanto, quando as máquinas compreenderem os seres humanos nessa dimensão, creio que estaremos perante o atravessar de uma fronteira importante, não só porque o meu trabalho estará ameaçado. Mas se for o caso, é quando a inteligência artificial estará capaz de fazer uma campanha política que identifica as grandes frustrações dos cidadãos. Se for capaz de escrever esses livros que mexem com as emoções dos leitores, então estará habilitada a ter a grande próxima ideia, como o comunismo, o nazismo, o capitalismo ou algo como a invenção do dinheiro. Creio que essa é a grande questão e, ao chegarmos a esse ponto, teremos perguntas muito importantes com que lidar..Este livro tem claras ligações com o seu anterior romance Nunca Me Deixes. Concorda? Eu não estava consciente de que Klara e o Sol pudesse ser um livro que fizesse companhia ao anterior enquanto o escrevia, mas várias pessoas alertaram-me para o facto de ter uma relação. Ambos têm lugar num próximo cenário distópico de ficção científica e muitas outras coisas em comum, pois estão preocupadas com o que significam os sentimentos humanos. Talvez tenha escrito Klara e o Sol como resposta a Nunca Me Deixes, porque envelheci nestes últimos quinze anos e o primeiro livro tinha uma visão muito triste, e existe algo em mim que quer responder a essa tristeza. Queria escrever um livro num terreno semelhante que mostrasse esperança e otimismo, essa é a relação entre eles..Um assunto importante neste romance é o amor, que permanece da forma clássica. Estes sentimentos não mudarão com a evolução? Não quero prever como será amor em futuras gerações, mas sinto-me encorajado a dizer, pelo exemplo das tragédias gregas e de outra literatura mais antiga, que muitos dos sentimentos dos contemporâneos, particularmente sobre as relações entre os seres humanos, são universais e eternos não só no que poderemos definir como amor mas nos outros aspetos tradicionais das relações. Muitas vezes as personagens desses clássicos acreditavam em Deus ou no destino, e isso mantém-se muito atual, basta ver as séries de televisão em que tudo isso permanece. No caso de Klara e o Sol, ponho essa questão porque os passos que temos dado a nível tecnológico e nos grandes dados em áreas como a inteligência artificial são inéditos. O que mudará em nós enquanto ser humano individual? Se fizermos um paralelo com o que se vê na televisão e não nos perguntarmos quais são as forças misteriosas que nos sugerem ver esta ou aquela série - o que cada vez é aceite de uma forma mais normal -, talvez sejamos mais crentes nos algoritmos. Esta situação está a mudar a nossa visão sobre a condição de a nossa mulher ou a nossa filha serem únicas, por isso as amamos. São perguntas que surgem no nosso dia-a-dia, mas em vez de acreditarmos que temos uma alma e somos únicos, se tivermos máquinas poderosas poderemos recriá-las e investigar o que existe em qualquer ser humano ao nível de todos os seus desejos, impulsos e hábitos intelectuais. Será que essa possibilidade nos alterará?.Por isso essa é uma questão no livro? Esta história é também sobre uma mãe que receia a morte da filha e que, a dado momento, faz essa pergunta: será a minha filha insubstituível ou pode ser reproduzida? Na época do livro ela pode ser preservada e as particularidades que a tornam única serão replicáveis. A possibilidade de se poder fazer isso interessa-me, mesmo que a minha pergunta seja o que se passa com o amor se o olharmos ao longo de séculos..Porque utilizou o cenário dos Estados Unidos para o romance? Não tenho uma razão muito sólida para isso, até porque só muito tarde é que debati com minha mulher se não deveria situar todo o romance em Inglaterra. Não daria assim tanto trabalho porque a narrativa não necessita de uma ligação muito real a um país, mas percebi que o tinha colocado nos Estados Unidos por razões emocionais. A imagem da América, em especial a que vejo a partir de pinturas dos séculos XIX e XX, como as de Edward Hopper, é a de grandes espaços, horizontes longínquos e arranha-céus, bem como a importância da luz, que é muito especial, designadamente a iluminação artificial noturna das suas cidades. A minha reação perante essas imagens fizeram-me querer Klara nesse cenário, e se tivesse de justificar a escolha de forma mais intelectual o ter Klara nos Estados Unidos em vez de na Inglaterra, também diria que a América é uma sociedade jovem quando comparada às de países europeus, ou outras como a do Japão, e tem uma fragilidade, que é a de lidar com a sua pouca idade. Tudo é muito novo no que respeita às instituições e às tradições, até aos edifícios, como bem temos visto na sua história mais recente. Como queria mostrar uma sociedade que convivesse com a emergência da inteligência artificial, ter crianças geneticamente manipuladas e com todas as características da menina com quem Klara está, precisava de uma sociedade que alterasse os seus valores, e era mais fácil encaixar num país jovem como a América. Creio que essas mudanças serão mais difíceis em civilizações mais velhas, que não irão poder evitar esse confronto, mas onde o resultado será diferente. Falar das grandes mudanças que estão a acontecer numa sociedade imaginária era mais fácil nesse país..Até que ponto os EUA são um espelho também retorcido? Não quero culpar os americanos por tudo, mas vemos que este desrespeito pela verdade tem vindo a crescer em muitas partes do mundo e particularmente nos EUA. Metade dos americanos acreditam, mesmo sem existir uma prova, que Trump ganhou as eleições e que estas lhe foram roubadas, portanto não se importam com a ausência de provas e preferem confiar no que sentem em função da "verdade" que Trump anuncia. Esta situação que acontece em grande parte da sociedade norte-americana não é a mesma quando comparamos com o posicionamento dos responsáveis pelos grandes desenvolvimentos científicos nos EUA, que nos guiam e salvam no caso da pandemia, onde existe uma relação direta com a investigação baseada em provas e na verdade..Klara e o Sol não é também um romance sobre religião? A religião é um assunto muito complexo, mas posso dizer que o relacionamento de Klara com o sol é muito parecido com o dos seres humanos com Deus ou os múltiplos deuses que as várias sociedades criaram ao longo dos tempos. A atitude de Klara também se deve ao facto de ser uma máquina abastecida pela energia solar, portanto é natural para ela pensar que o sol é uma fonte de alimento, e esse é um pequeno passo para acreditar que se torne uma entidade protetora e benevolente. Ela acredita que o sol ajuda todos, outros robôs e os seres humanos, e eu queria que tivesse um lado infantil representado nesta relação. Klara é uma outsider ao mundo humano, mas também um espelho distorcido que reflete os medos dos seres humanos. Será basicamente um reflexo dos seres humanos com quem convive, e é natural que o instinto humano de criar um deus esteja nela, mesmo que este romance seja formado por uma grande componente científica. Um ser humano tem sempre esse desejo de proteção, e a pandemia confirmou que se pode identificar a necessidade de algo muito mais poderoso do que algum governo ou grupo de médicos especialistas entre as pessoas. Quer-se acreditar que há algo mais sobre nós do que os responsáveis que tomam conta da situação. No entanto, a dado momento, é preciso perceber que nada mais existe senão nós, pessoas..Kazuo Ishiguro.Editora Gradiva.360 páginas.À venda em Portugal no dia 9 de março