São 20 miúdos em volta de uma mesa. Alguns estão descalços. Alguns comem bolachas. Alguns sentam-se à chinês. Alguns falam baixinho. Alguns ficam calados. Alguns têm muitas ideias. Alguns já têm experiência de teatro. Alguns querem ser atores. Alguns ainda não sabem. São 20 miúdos com idades entre os 14 e os 19 anos e, desde outubro, reúnem-se todos os sábados, das 10.00 às 13.00, na Sala de Cenografia do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Querem fazer teatro. Foi essa vontade que os trouxe aqui.."Quero ser atriz. Faço teatro desde miúda, é uma coisa que nasceu comigo, é o que sempre quis", explica Fabiana Saraiva, de 19 anos, e que, tal como Rodrigo Pereira Esteves, de 17 anos, já tinha participado num workshop de verão no Teatro Nacional. "Estou no 12.º ano em Humanidades mas quero seguir teatro, ir para a Escola Superior de Teatro e Cinema", diz Rodrigo. "Faço teatro desde miúdo e tenho um fascínio gigante por tudo o que esteja ligado à interpretação e ao mundo do espetáculo.".Os sonhos são mais ou menos comuns a todos os que aqui estão. Para Patrícia Fonseca, de 19 anos, e Joana Bernardo, de 18, que estudaram na Escola de Teatro de Cascais e frequentam agora a Escola Superior de Teatro e Cinema, esta era uma oportunidade irresistível: "Assim que soube que isto ia acontecer, pensei: Uau! Grande cena! Para nós é uma honra poder estar no Teatro Nacional." Lara Major, de 19 anos, também concorreu à Escola Superior de Teatro mas não conseguiu entrar, por isso agora está na faculdade a tirar um curso de Saúde: "Quando soube desta experiência pensei: OK, fechou-se uma porta, abriu-se uma janela.".Simão Machado, de 14 anos, o mais novo do grupo, também faz teatro desde muito novo e é claro que tem uma veia cómica muito acentuada: "Ainda não sei mas acho que fazer teatro no futuro era coisa fixe", atira. Já Tiago Carvalho, de 16 anos, não quer exatamente ser ator (embora já tenha sido figurante no Ricardo III, neste mesmo teatro) mas está mais interessado em explorar o seu lado criativo: "O meu objetivo é não ter um trabalho fixo, ter uma mistura de trabalho que eu gosto de chamar criador. Na área do teatro, cinema, olaria se for necessário, desde que não tenha horários nem alguém a dizer-me o que fazer.".Há lugar para todos eles. O K Cena é o projeto de teatro para jovens que começou neste ano no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, mas que também existe no Teatro Viritato, em Viseu, e ainda em Cabo Verde (Centro Cultural Português no Midelo) e no Brasil (Teatro Vila Velha em Salvador da Bahia). Todos os grupos trabalham um único tema - este ano é a democracia - e o objetivo é, em julho, apresentarem um espetáculo. Em Lisboa, as sessões são orientadas, em sábados alternados, pela atriz Teresa Sobral e pela performer Raquel André..Mas não se trata de um curso de Teatro, é importante dizê-lo. "Fizemos algumas sessões dedicadas à voz, ao corpo, ao movimento, e todas as sessões fazemos esses exercícios. Mas não é só isso, isto não é um curso de técnicas de teatro", explica Teresa Sobral. Quer Teresa quer Raquel têm trabalhado muito a partir de improvisações e de materiais que os jovens têm trazido para as sessões: textos, filmes, histórias, quase sempre as suas próprias histórias. Sempre a partir das ideias de democracia e de antidemocracia, de poder, de liberdade, de direitos. "É um grupo muito diversificado, temos pessoas que vêm de contextos familiares e sociais muito diferentes. Para alguns é a primeira vez que estão a pensar e a falar sobre estes assuntos", conta Teresa Sobral..Raquel André procura que cada sessão esteja dividida em duas partes: "Um primeiro momento em que faço um trabalho de corpo, voz, confiança, confiança no grupo e neles próprios, dar-lhes ferramentas de trabalho como atores e como artistas. E depois há outro trabalho, que é mais do que eles interpretarem personagens e dizerem muito bem textos, que é pô-los a pensar, de modo a que a voz deles seja considerada." Raquel usa muito o debate "como forma de gerar conteúdo" e os debates têm-se revelado extraordinários, admite: "Eles trouxeram situações não democráticas do seu dia-a-dia e isso pô-los a pensar, eles estão a rever as suas histórias, onde é que eles estão, a relação com os pais, com a escola, com o mundo, com o corpo deles, com o corpo do outro. Aquilo que eles pensam e o modo como estão no mundo é importante e isso pode dar origem a um pensamento artístico. Podem olhar o mundo deste ponto de vista artístico e usar a linguagem performativa para expressarem a sua opinião.".Esse é o caminho que tem sido percorrido. "Acho que o melhor de tudo é o que nós temos falado", diz Patrícia. "O tema é a democracia, então temos estado a abordar tudo. Havia coisas que eu não sabia. Sinto-me muito mais preparada não só para fazer teatro mas para a vida em geral." Joana concorda: "Acho que nunca como agora me conheci tão bem, sei aquilo de que eu gosto, aquilo em que acredito. Porque nós temos tido debates sobre tudo, então para entrar no debate eu tenho de saber: o que é que eu acho acerca disto? E vou ler, vou ver, vou descobrir."."Está a ser muito bom", diz, sem hesitar, Fabiana. "Não eram assuntos que abordávamos no nosso dia-a-dia, pelo menos para a maior parte de nós, e desde que começámos com estas sessões tenho-me preocupado muito mais em conhecer, em ir atrás, em tentar perceber, em construir uma opinião minha e não me limitar só a ir atrás daquilo que as outras pessoas pensam. Temos de fazer a nossa própria reflexão. E isto é bom a vários níveis, até para o nosso futuro." Beatriz Forjas, 17 anos, não tem dúvidas: "Eu este ano vou fazer 18 anos e vou poder votar e, por estar aqui, sinto-me muito mais preparada.".Pensar dá trabalho. Simão explica: "Às vezes nós pensamos uma coisa e achamos que estamos certos, mas depois falamos com os outros e vamos investigar e mudamos de ideias. Ou, então, não." Ou como diz Leonor Carvalho, 18 anos: "Quando saímos daqui vamos para casa pensar e isso é muito bom. Mas o sistema de debate também é bom porque durante um debate não temos tempo para investigar nem para pensar muito, é uma resposta imediata, e isso traz alguma sinceridade. Às vezes, por ser tão imediato, depois temos de voltar atrás e dizer, afinal, não é isto que eu penso.".Provavelmente não era nada disto que eles estavam à espera quando apareceram naquele primeiro dia para fazer a audição e sentiram os nervos de subir ao palco da Sala Garrett. Mas como diz Tiago: "Não faz sentido dizer um texto se esse texto não nos disser nada, para fazermos algum trabalho bom temos de exercitar a mente.".Os 20 miúdos que hoje se sentam em volta daquela mesa deixaram de sair à noite à sexta-feira e prescindiram de dormir até tarde no sábado mas dizem que o "esforço" está "a valer a pena", "sem hesitar", "a 200%". "Nós começamos meio atrapalhados mas agora já estamos a apanhar o ritmo e já está a correr bem", diz, Rodrigo, confiante. "Há cada vez mais confiança entre o grupo, já temos menos medo de falar e de nos expormos", garante Lara..Nesta sala não há certo e errado, há espaço para o debate e há aceitação. De 25 a 27 de julho irão apresentar os seus espetáculos e haverá alguns que vão interpretar personagens e outros que vão apenas interpretar-se a si mesmos, haverá alguns que vão ficar nervosos e outros que vão fazer-nos rir. Mas todos vão falar de assuntos sérios e é quase certo que todos se irão divertir. Como diz Teresa Sobral. "O mais importante é que eles se tornem pessoas mais justas, depois o teatro logo se vê."