"Quando eu cozinhava a partir do livro de receitas de Julia, tinha longas conversas imaginárias com ela. Dava comigo a pensar que talvez ela viesse jantar, embora nunca a tivesse conhecido." As palavras de Nora Ephron, realizadora e argumentista de Julie & Julia (2009), traduzem bem o sentimento de muitas mulheres americanas que nos anos 1960/70 não só ficaram devotas do livro Mastering the Art of French Cooking, de Julia Child (1912-2004), como acompanharam zelosamente o programa de culinária The French Chef, deliciando-se com o charme ímpar da sua apresentação. Nesse filme de Ephron, que entrelaça a história da autora/apresentadora e de uma nova-iorquina (Amy Adams) a atravessar uma crise de realização pessoal, Meryl Streep dá-nos um vislumbre do lado pitoresco desta mulher, e do seu poder de inspiração, décadas depois de ter sido uma presença acarinhada na TV. A mesma presença que agora se testemunha em Julia, a série dramática da HBO Max que aprofunda o olhar sobre a célebre chef e o seu papel numa sociedade sexista..Com as devidas diferenças, Julia Child está para os americanos assim como Maria de Lourdes Modesto está para o público português. E (re)descobri-la é também regressar a uma certa referência de "comida caseira" em tempos de Uber Eats, como se de repente se reencontrasse a alegria na cozinha. Criada por Daniel Goldfarb (o produtor de A Maravilhosa Sra. Maisel), a série de oito episódios começa em 1961, altura em que Child estaria a saborear o sucesso do seu livro de receitas e a contemplar a possibilidade de transformar a teoria em prática, com a ideia de ter o seu próprio programa de culinária. Do pensamento ao ato, algo precipita a decisão: ela está na casa dos 50 anos, a menopausa chegou e o facto de não ter tido filhos mexe com a sua perceção da vida íntima; por isso demora algum tempo a falar ao marido das mudanças que se operam no seu corpo, escolhendo antes dedicar-se ao "bebé" The French Chef, a série que ficaria no ar durante uma década (1963-1973)..Um dos primeiros momentos hilariantes de Julia acontece precisamente na estação de televisão pública onde virá mais tarde a ter o seu programa. Enquanto convidada para uma entrevista sobre o livro que acaba de publicar, ela decide que a melhor forma de promover o seu objeto de literatura "feminina" é fazer uma omelete francesa em direto, ignorando redondamente o desconforto snob do entrevistador... Esta seria a imagem de marca de Julia Child, a personalidade sorridente, despachada, de modos desengonçados e sem peneiras que captou a atenção dos telespectadores desde o primeiro minuto. Contra a incredulidade dos homens que enchiam os estúdios da televisão, o seu perfil natural fez derreter tudo à volta, como manteiga numa frigideira..Julia, a série, tem obviamente na comida um dos pontos de atração para os sentidos, mas é sobretudo o panorama das relações sociais e o zeitgeist do ambiente de bastidores que valoriza este retrato biográfico. Basta dizer que o referido snobismo do entrevistador não é caso único: a equipa de produção que Child reuniu a custo, quase toda composta por homens, não está, nem de perto nem de longe, rendida à ideia de gastar tempo e dinheiro com uma mulher à frente da câmara a ensinar receitas. E mesmo a editora dela na Knopf - responsável pela publicação da "grande literatura" de John Updike, Albert Camus, etc. - tem de lidar com o preconceito da patroa, que não entende o fascínio nem a popularidade de uma mulher com um interesse tão pouco "feminista" (assim o entendeu também, de forma mais radical, a autora de The Feminine Mystique, Betty Friedan)..No meio da troça e descrédito inicial, é simplesmente delicioso seguir os passos de ascensão desta figura pioneira americana que derrotou o clube dos rapazes com uma simpatia irresistível, fazendo-se acompanhar na equipa pelas mulheres da sua confiança e um marido para todas as horas, Paul Child, o diplomata que a levou para Paris, onde ela adquiriu os conhecimentos de gastronomia francesa que a tornaram uma lenda da culinária gourmet trocada por miúdos..O outro aspeto que valoriza Julia é, sem dúvida, a atriz escolhida para o papel. Sarah Lancashire, britânica que se destacou em séries como Last Tango in Halifax e Happy Valley, dá a esta embaixadora da cozinha francesa o tom justíssimo, entre a divertida postura corpulenta e a generosidade de espírito. Com uma confiança absoluta nos gestos, ela não tenta ser uma cópia do original, nem sequer extravasa a comicidade de Meryl Streep no filme de Nora Ephron. O seu quilate reside na graça com que agarra a personagem tornando-a humana, calorosa e desprendida de uma noção de caricatura. Como se a atriz tivesse estudado o "estilo Julia Child" - a forma de estar e a mítica voz docemente desafinada - para depois se libertar do molde e trabalhar a sua própria versão. Daquelas versões capazes de sustentar uma longa série..A essência da televisão de conforto está toda aqui, no assumir de um registo que parte de uma personagem sui generis. "Gosto dela exatamente por aquilo que ela é", ouve-se dizer a certa altura. E não há melhor maneira de definir o prazer de assistir a Julia: gosta-se da proposta por aquilo que é. Nem mais nem menos..dnot@dn.pt