José Saramago nasceu faz hoje 83 anos, 'no tempo em que as mulheres iam à bruxa quando as coisas corriam mal em casa' e em que se ouviam, 'dentro das paredes', 'costureiras condenadas a uma costura eterna'. .Foi a 16 de Novembro de 1923, na aldeia de Azinhaga, concelho da Golegã, numa casa que 'já não existe' e da qual o escritor 'não guarda qualquer lembrança'. Desse tempo em que era pequeno, não ficou também - e agora o discurso é directo - 'a outra, aquela que durante dez ou doze anos foi o lar supremo, o mais íntimo e profundo, a pobríssima morada dos meus avós maternos, Josefa e Jerónimo se chamavam, esse mágico casulo onde sei que se geraram metamorfoses decisivas da criança e do adolescente. Essa perda, porém, há muito que deixou de me causar sofrimento porque pelo poder reconstrutor da memória, posso levantar a cada instante as suas paredes brancas, plantar a oliveira que dava sombra à entrada, abrir e fechar o postigo da porta e a cancela do quintal…' .Em dia de aniversário, José Saramago, segundo filho de Maria da Piedade e de José de Sousa, neto de Carolina e João - os avós que nunca aprendeu a amar - e de Josefa e Jerónimo - as grandes referências -, irmão mais novo de Francisco, que morreu aos quatro anos, regressa à terra onde nasceu para apresentar o livro no qual escreveu 'as recordações e experiências do tempo em que era pequeno'. Chamou-lhe As Pequenas Memórias, um projecto adiado há mais de duas décadas, em que conta os primeiros 15 anos de vida tal como os lembra. .'É altura de explicar as razões do título que comecei por dar a estas lembranças', escreve na página 35. Começou por ser O Livro das Tentações, numa referência às Tentações de Santo Antão, de Hyeronimus Bosh, uma 'ambiciosa ideia inicial - do tempo em que trabalhava no Memorial do Convento, há quantos anos isso...' Dirá mais adiante: 'Tal como ao santo assediaram os monstros da imaginação, à criança que eu fui perseguiram-na os mais horrendos pavores da noite, e as mulheres nuas que lascivamente continuam a dançar diante de todos os Antões do planeta não são diferentes daquela prostituta gorda que, uma noite, ia eu a caminho do Cinema Salão Lisboa, sozinho como era meu hábito, me perguntou numa voz cansada e indiferente: 'O menino quer vir para o quarto?' Mudaria de nome por serem incomparáveis as suas tentações com as de Santo Antão e ficaria As Pequenas Memórias. 'Sim, as memórias pequenas de quando fui pequeno.'.É memória. Com enganos e hesitações; dispersa, traiçoeira, imprevisível, esquecida. 'Muitas vezes esquecemos o que gostaríamos de poder recordar, outras vezes, recorrentes, obsessivas, reagindo ao mínimo estímulo, vêm-nos do passado imagens, palavras soltas, fulgurância, iluminações, e não há explicação para elas, não as convocámos, mas elas aí estão', dirá já no fim deste volume autobiográfico onde narra episódios escatológicos, confessa medos, lembra dores e o enjoo que sentia sempre que entrava num eléctrico; assume dislexias, exibe orgulhos, fala de como perdeu a pouca fé num falso peditório para Santo António ou conta a 'primeira grande experiência de leitor' com um livro esquecido, A Toutinegra do Moinho, cujo autor - 'se a minha memória ainda está certa' - é Émile de Richebourg. .Era ainda no tempo em que mentia compulsivamente; mentiras mais ou menos desculpáveis como as de inventar enredos para filmes que nunca vira. 'Entre a Penha de França onde morávamos, e o liceu, no caminho que é hoje a Avenida General Roçadas e depois a Rua da Graça, havia dois cinemas, o Salão Oriente e o Royal Cine, e neles nos entretínhamos, eu e os colegas que moravam para aqueles lados, a ver os cartazes expostos, como era então uso em todos os cinemas. A partir dessas poucas imagens, no total umas oito ou dez, armava eu ali mesmo uma completa história, com princípio, meio e fim, sem dúvida auxiliado na manobra mistificadora pelo precoce conhecimento da Sétima Arte que havia adquirido no tempo dourado do 'Piolho' da Mouraria.' .Mas a dissertação de Saramago sobre o modo pouco ordenado como a memória se apresenta, serve de introdução, no livro, a um episódio já muito polemizado. Primeiro nas páginas do brasileiro Estado de S. Paulo, depois no português Correio da Manhã. É quando o Nobel de 1998 conta como vestiu a farda da Mocidade Portuguesa, um facto que serviu aos dois jornais para estabelecer um paralelismo com as memórias de Günter Grass. Na autobiografia Descascando a Cebola, esse outro Nobel, o de 1999, confessava a sua integração nas Waffen-SS, de Hitler. Neste, As Pequenas Memórias, José Saramago começa por falar de Hitler, passa por Mussolini, Franco e acaba em Salazar. Pelo meio, lá está a farda no Liceu Camões. '… mandado com os meus colegas ao Liceu de Camões, onde se faria a distribuição das fardas verdes e castanhas da Mocidade Portuguesa, arranjei maneira de nunca sair do fim da fila que se prolongou até à rua, e ainda lá estava quando um graduado (…) veio avisar que se tinham acabado os fardamentos. Houve nas semanas seguintes mais umas quantas distribuições de barretes, camisas e calções, mas eu, como alguns outros, sempre fui de civil às formaturas, contrariadíssimo nas marchas, inabilíssimo no manejo da arma, perigosíssimo no tiro ao alvo. O meu destino não era aquele.' E nem mais uma palavra escreveu sobre o assunto. .Recorrente é a referência à pobreza, às dez moradas que os Saramago tiveram em dez anos; sempre quartos alugados com serventia de cozinha, e casa de banho a dividir por muitas famílias; cobertores que se penhoravam no verão... Sublinhada é a busca das razões da morte do irmão, Francisco, que terá estado na génese do romance Todos os Nomes, ou como uma certa viagem enquanto excursionista, a Mafra, foi embrião de Memorial do Convento. É a infância como explicação de uma vida.