No final dos anos 1970, em plena Guerra Fria, a União Soviética tinha vários mísseis nucleares de médio alcance (conhecidos como SS-20) na Europa do Leste preparados para, em poucos minutos, atingir várias capitais do Velho Continente. Em resposta, os EUA começaram a espalhar os seus mísseis nucleares Pershing II no território dos aliados europeus..Rodeados de mísseis, mais de um milhão de pessoas saíram à rua na Alemanha Ocidental em outubro de 1983 (assim como vários milhares em Londres, Paris, Estocolmo, Roma ou Viena) para protestar contra a irrupção dos mísseis na Europa..A pressão sobre a União Soviética acabaria por levar Moscovo e Washington a assinar, em 1987, pelas mãos do então presidente norte-americano Ronald Reagan e do líder soviético Mikhail Gorbachev, o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermédio (conhecido pelas siglas INF, do seu nome em inglês)..Este proibiu as duas potências rivais de terem mísseis balísticos e de cruzeiro, lançados a partir do solo, com uma capacidade de alcance entre 500 km e 5500 km. Foi um grande sucesso, com ambas as potências a eliminarem os mísseis deste tipo até 1991, mas nos últimos anos tem havido problemas e acusações mútuas de violação do tratado..É esse o tratado que o presidente norte-americano, Donald Trump, quer agora abandonar. "A Rússia não respeitou o tratado. Vamos por isso pôr fim ao acordo e desenvolver estas armas", afirmou Trump..Por detrás dessa decisão - que muitos temem poder originar nova corrida às armas - está o seu conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, que foi secretário de Estado adjunto para o controlo de armas e segurança internacional de 2001 a 2005 e depois embaixador dos EUA nas Nações Unidos..Há anos que Bolton expressa publicamente o seu desagrado com o INF. Ontem, explicou as suas razões diretamente ao presidente russo, Vladimir Putin, com quem esteve reunido no Kremlin. O presidente russo disse que queria voltar a reunir-se com Trump no próximo mês à margem das celebrações do centenário do fim da Primeira Guerra Mundial, em Paris..Numa conferência de imprensa, Bolton lembrou que há anos que os EUA denunciam a alegada violação do tratado por parte da Rússia (que o nega) e que ambos os países ainda estão longe de uma decisão sobre o que fariam a seguir, quando questionado sobre se os norte-americanos iriam ou não pôr mísseis em território europeu. "A ameaça são os mísseis russos que já estão destacados", reiterou Bolton, indicando contudo que ainda não foi apresentado o aviso oficial de saída do tratado (a partir do qual começa a contar o prazo de seis meses para a retirada final do acordo).."Um tratado que está a fazer-nos mal".Os argumentos de Bolton contra o INF não são novos. A 15 de agosto de 2011, então investigador do Instituto Empresarial Americano para Pesquisa de Políticas Públicas, Bolton publicou um artigo de opinião no The Wall Street Journal intitulado "Um tratado de mísseis da Guerra Fria que está a fazer-nos mal". Um texto precisamente a defender ou o alargamento do INF a outros países ou a saída dos EUA. Foi escrito juntamente com Paula A. DeSutter, secretária de Estado adjunta para a Verificação, Conformidade e Implementação (responsável por tudo o que diz respeito ao controlo de armas e tratados de desarmamento) entre 2002 e 2009.."Os tratados são como as raparigas e as rosas: duram o que duram", começava o artigo, citando Charles de Gaulle, indicando que o general francês podia perfeitamente estar a referir-se à situação do INF. Bolton e DeSutter alegavam que este tinha "ultrapassado a sua utilidade na sua forma atual", pelo que "deve ser mudado ou descartado".O argumento era simples: o tratado apenas implica EUA e Rússia, quando as principais ameaças estratégicas eram a China, Irão e Coreia do Norte. Países que continuavam a ser livres de desenvolver mísseis a todo o gás. "Para reduzir a ameaça dos mísseis dentro do alcance do INF temos de expandir o tratado a outros membros ou revogá-lo totalmente, para podermos reconstruir as nossas capacidades dissuasoras", escreveram. "O lema dos EUA no INF devia ser: expandir ou eliminar", concluíram..Um "tratado obsoleto" e a "batota" russa.Já desde 2014 que Washington acusa Moscovo de violar este tratado, ao testar mísseis de cruzeiro de alcance intermédio e, mais recentemente, em 2017, de os colocar no terreno - o novo sistema 9M729. A Rússia nega que os mísseis em questão tenham tal alcance, mas tem falado na possibilidade de sair do tratado, alegando que este impede de desenvolver e possuir armas que os seus vizinhos, como a China, estão a desenvolver..Num segundo artigo publicado também no TheWall Street Journal, a 9 de setembro de 2014, Bolton deixa cair a hipótese de alargar o INF a mais países. "Um tratado nuclear obsoleto ainda antes de a Rússia ter feito batota", era o título do artigo, escrito juntamente com John Yoo, professor de Direito na Universidade da Califórnia e também investigador do Instituto Empresarial Americano.."As violações do tratado de controlo de armas dão à América a oportunidade de descartar os limites obsoletos da Guerra Fria ao seu próprio arsenal e de atualizar as suas capacidades militares para se equiparar às suas responsabilidades globais", escreveram, indo até ao ponto de defender que o candidato republicano às presidenciais de 2016 devia fazer campanha dizendo que ia eliminar o INF.."A China, o Irão, a Coreia do Norte e outros países com aspirações nucleares não enfrentam limites no desenvolvimento de armas de alcance intermédio. Com as violações do tratado da Rússia, a América continua a ser o único país vinculado e a cumprir a proibição de desenvolvimento de forças de alcance intermédio - a derradeira absurdidade no controlo de armas. A manutenção da segurança internacional exige que os EUA tenham acesso a todo o espectro de opções convencionais e nucleares", escreveram os autores, acusando o então presidente norte-americano, Barack Obama, de preferir "prosseguir o objetivo utópico de um mundo sem armas nucleares"..Terceiro conselheiro de Segurança Nacional de Trump (no cargo desde 9 de abril deste ano, tendo substituído o general H. R. McMaster, que por sua vez já substituíra Michael Flynn), Bolton "está a procurar libertar-se do papel tradicional" que o cargo implica "como intermediário político entre as agências, e a tornar-se no impulsionador de mudanças radicais dentro da Casa Branca", escreveu o jornal britânico The Guardian. .Acusações também de Moscovo.As acusações de incumprimento do tratado não vêm só dos EUA. Moscovo também alega que Washington não está a cumpri-lo, especialmente por causa do seu sistema de defesa antimísseis na Europa, que também pode ser usado para disparar mísseis de cruzeiro. Em março, no seu tradicional discurso à nação, Putin vangloriou-se de ter desenvolvido armas nucleares capazes de penetrar o sistema de defesa norte-americano.."É claro que há pontos fracos no tratado, mas rasgar o acordo sem planos para um novo é algo que não é bem-vindo", disse o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, antes do encontro entre Bolton e Putin. O mesmo responsável afirmou na segunda-feira que Moscovo seria forçada a responder à letra para restaurar o balanço militar com Washington, caso Trump vá para a frente com a ameaça de sair do acordo nuclear.Gorbachev, que assinou o tratado com Reagan, em 1987, também já veio criticar a "falta de sabedoria" de Trump..Uma emenda aprovada no orçamento de Defesa dos EUA para 2019 exige que o presidente diga ao Senado, até 15 de janeiro, se a Rússia está em "violação" do INF e se os EUA continuam ou não a estar vinculados ao tratado..A administração Trump revelou o relatório "Revisão da Postura Nuclear" em fevereiro, no qual defendia que os EUA deviam aumentar a investigação sobre mísseis de médio alcance como forma de pressionar Moscovo a voltar a cumprir o INF. Publicado antes da entrada de John Bolton na Casa Branca, não chega a pedir a saída dos EUA do INF..E o outro tratado?.Além do INF, EUA e Rússia têm outro acordo para o controlo de armamento nuclear: o novo Tratado de Redução de Armas Estratégicas (conhecido como New Start, em inglês). Assinado em 2010 pelos anteriores inquilinos da Casa Branca e do Kremlin, Barack Obama e Dmitri Medvedev, este tratado limitou os arsenais nucleares estratégicos de ambos os países a 1550 ogivas nucleares em prontidão e a um máximo de 700 veículos de transporte..O prazo para alcançar essa meta era fevereiro de 2018 e terá sido cumprido - o acordo inclui mecanismos de verificação e monitorização mútuos, obrigando os países a trocar informação sobre o número de ogivas e veículos de transporte duas vezes por ano..O problema é que o acordo expira em 2021, podendo ser alargado por mais cinco anos (por decisão presidencial, sem acordo do Congresso dos EUA ou da Duma) ou renegociado. Putin mencionou alargar o prazo, mas Trump não falou em nada específico. Antigos responsáveis norte-americanos dizem que Bolton está a bloquear também as negociações para alargar o New Start..Arsenal nuclear.Segundo os últimos dados do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI, na sigla em inglês), nove países possuíam, no início deste ano, aproximadamente 14 465 ogivas nucleares. Rússia (6850) e EUA (6450) possuíam, em conjunto, 92% do arsenal nuclear - estando 1600, no caso russo, e 1750 no norte-americano de prontidão (colocadas em mísseis ou localizadas em bases com forças operacionais)..As restantes armas estão no Reino Unido (215), em França (300), China (280), Índia (130 a 140), Paquistão (140 a 150), Israel (80) e na Coreia do Norte (10 a 20).