Jeffrey Archer não tem pruridos em dizer que se inspira nas pessoas que conhece para construir muitas das personagens dos seus livros. Ou que recria cenários a partir de sítios onde vai. Neste caso, como a querer dar um exemplo disso, olha para a sala onde decorre a entrevista e acaba a dizer: "Se usar esta sala, irei descrever a arte horrível que aqui está exposta", para logo em seguida rematar: "Espero que tenham um bom museu em Lisboa." E para que não restem dúvidas sobre o que pretende conhecer dá uma pista: "Tão bom como o Museu do Prado?".Indica-se-lhe o Museu Nacional de Arte Antiga e imediatamente diz: "Quero ir lá hoje. Não posso visitar uma capital e não ver o seu melhor museu!" Agendam-lhe a ida durante a hora de almoço e antes de ir à Feira do Livro de Lisboa promover o seu mais recente livro traduzido em Portugal, Contador de Histórias, mas Archer dispensa a refeição, só deseja ver os bons quadros que se disse existirem na instituição. Em seguida, mostra que arte é uma coisa que anda sempre na sua mão - "Trago a minha pintura preferida [Entardecer de Verão na Praia de Skagen] sempre comigo" - e mostra a capa do telemóvel, onde está o quadro de Marie Kroyer, "a Monet dinamarquesa". Não é por acaso este interesse pela arte, quem visitar o seu apartamento no topo de um edifício junto ao rio Tamisa encontrará nas paredes meia dúzia de pinturas de autores tão famosos que só se espera ver num museu..O escritor Jeffrey Archer vem promover o seu novo lançamento e a conversa que deveria ter início às 09.30 não começa tão cedo. Fica surpreendido por ter uma equipa tão grande a tomar conta de si, fala sobre a final Liverpool- Tottenham que o filho foi ver a Madrid... e pede um chocolate quente, que quando chega recusa por ser servido num pacote. Aprecia a capa de Contador de Histórias e dispara uma pergunta para confirmar se o entrevistador leu o livro, perguntando se determinada história está nesta reunião de treze contos. Perante a resposta negativa, diz "logo essa que é a melhor do livro!" É preciso dar dois ou três exemplos de contos para o autor ficar descansado e só então começa a entrevista - já lá vão 25 minutos..O sucesso de Jeffrey Archer não surge do acaso, tudo começa em 1976 com o romance Nem Um Tostão a mais, Nem Um Tostão a menos. Em 1973, ao terceiro livro, Kane & Abel (Caim e Abel), é a grande viragem e o sucesso a nível mundial. "32 milhões de pessoas compraram esse livro e cem milhões leram-no. O mundo decidiu que era esse o meu grande livro", diz. É verdade e Portugal não fugiu ao sucesso de Archer, sendo na altura um autor religiosamente editado pela Publicações Europa-América em capas luxuosas que entravam pelos olhos adentro devido aos dourados das letras..Em Caim e Abel estava o tipo de argumentos que Jeffrey Archer aprecia. Segundo a sinopse, o romance conta a história de "William Lowell Kane, filho de um milionário de Boston, e Abel Rosnovski, um imigrante polaco sem dinheiro", que tinham a particularidade de terem "nascido no mesmo dia em lados opostos do mundo, mas cujos caminhos estão destinados a cruzar-se numa batalha implacável para construir um império." Não será por acaso que os sete volumes da Saga dos Clifton trouxe o escritor de volta à ribalta e aos milhões de exemplares vendidos, basta ler novamente a sinopse: "Harry nunca conheceu o pai, que morreu na guerra, e é criado pelo tio nas docas. Uma inesperada bolsa de estudo faz que a sua vida mude radicalmente. Já adulto, descobre a verdade sobre a morte do pai, mas também surge a dúvida de quem era efetivamente o seu pai. Harry terá de escolher entre ir para Oxford ou alistar-se na Marinha para lutar contra Hitler. Das docas da Inglaterra às animadas ruas de Nova Iorque dos anos 1940, o início de uma saga que se estende por cem anos.".Em Contador de Histórias estes temas populares estão sempre presentes. Seja o do jovem Joe que ganha a vida através de um parque de estacionamento que ninguém reparou que não lhe pertencia ou de um detetive que vai em busca de um assassino e tem as voltas trocadas pela mulher com que se casa entretanto. A génese do livro é simples, oito das histórias têm origem em conversa com pessoas reais, que lhe relataram em tempos situações que Jeffrey Archer não resiste a contar e a acrescentar o seu próprio conto. Dá o exemplo do conto de Joe: "Estava na Nova Zelândia e contaram-me a história verdadeira. Aquilo aconteceu mesmo e era impossível não me entusiasmar.".Esta é a última vez que visita Portugal, enquanto a Inglaterra faz parte da União Europeia. O que pensa do Brexit?.Eu sou das poucas pessoas vivas que, enquanto membro do Parlamento, votaram em 1972 na Casa dos Comuns para a adesão da Inglaterra à União Europeia. Portanto, estou muito desapontado com a situação inglesa, até porque fui daqueles que não votaram para sairmos da União Europeia. É claro que deveria ficar, mas foi o outro lado que ganhou, aquele em que a minha mulher votou. Isto mostra como a Inglaterra está dividida, até mesmo nas próprias famílias.. Contador de Histórias é um projeto com alguns anos. Foi fácil retirar as histórias em que andava há muito tempo a pensar e passá-las ao papel?.A maior parte destas histórias do livro são verdadeiras. Eu tive uma vida muito privilegiada e fui conhecendo todo o género de pessoas: reis, presidentes, populares, artistas... Quando estou a escrever inspiro-me nas pessoas de que me lembro, obviamente que as irei trabalhar além disso. Porquê inventar um personagem se tenho alguém que é perfeito para a história?.Quando ouve boas histórias toma logo nota delas?.Às vezes escrevo uma ou duas frases, no entanto gosto mesmo é de as recriar à minha maneira. Por exemplo, soube de uma senhora que gostava muito do escritor John Steinbeck e um dia estava no mesmo lugar que ele mas não se apercebeu. Isso que aconteceu com ela é o tipo de histórias que me interessam, o desenvolvimento é comigo..Construiu centenas de personagens ao longo da sua vida. Ainda lhe é fácil acrescentar novas a essa galeria?.Sim, sem dificuldade. Existe sempre alguém que me inspira e eu conheci muita gente enquanto fui membro do Parlamento britânico. Como gosto de reviravoltas, ao usar essas personagens verdadeiras basta-me acrescentar o que quero. E o leitor gosta, basta ver a quantidade de e-mails que recebo com comentários. Mas concordo que é cada vez mais difícil criar um homem ou uma mulher de uma forma totalmente diferente..Num dos contos oferece três finais à escolha do leitor. Porquê este truque literário?.A resposta é muito simples: após 24 romances e 92 contos continuo à procura da diferença e do desafio a mim próprio. Ao fim de 40 anos e de centenas de edições ainda tento ser diferente de quando escrevi Caim e Abel..A primeira história é feita apenas com cem palavras. Gosta de brincar com o leitor?.Foi um desafio que me lançaram e tive alguma dificuldade em acertar: a primeira versão tinha 116 palavras, a segunda 102 e a terceira 98. É muito complicado escrever sob medida..Esse é um bom desafio para jovens escritores?.Sim, basta ver que um jornal inglês fez um desafio aos leitores para repetirem este meu conto e lá ficaram surpreendidos porque estavam à espera de umas cem respostas e receberam 4500 histórias..A Saga dos Clifton foi um sucesso que surpreendeu. Esperava essa reação por parte dos leitores?.Vendeu milhões de exemplares... Não, não esperava. Será que se pode explicar este sucesso? É uma história simples em sete volumes e um milhão de palavras! Ninguém sabe explicar o porquê, a única coisa que posso dizer é que sou uma pessoa com sorte..Insisto. Qual foi o segredo do sucesso da Saga dos Clifton. Decerto tem uma pista....Se tenho de encontrar alguma, diria que é um dom que Deus me deu: contar histórias. Tenho muita sorte, pois não sou um cantor de ópera, um bailarino ou um músico. É preciso muito trabalho, mesmo assim pode-se ser um grande escritor, mas isso não quer dizer que se seja um grande contador de histórias. Vou dar um exemplo: reescrevi ontem de manhã uma página do livro novo. Eu sabia que as três páginas que tinha escrito estavam erradas porque a primeira frase não era a correta. É a história de um advogado inglês cuja filha é muito inteligente mas está com medo de ir a tribunal interrogar um criminoso e não estar à altura. Comecei a descrição da cena de forma errada e só dias depois é que percebi esse erro, então reescrevi a cena: ela pergunta a alguém se acha que pode pedir ao seu pai para a substituir. E o amigo diz: "Não, não podes." Não porque o pai possa recusar mas porque a partir daí nunca a levaria a sério. Só deste modo é que o leitor percebe o que está em jogo, e é essa forma de escrever que me torna diferente. É preciso entrar na cabeça do leitor..Anunciou que a Saga dos Clifton era composta por cinco livros mas acabou por fazer sete. O que se passou?.Cinco era o número inicial, mas quando lá cheguei as três personagens principais ainda só tinham 40 anos, então tive de dizer ao editor que eram precisos mais dois livros para dar a história deles por terminada..O seu melhor livro ainda está por escrever?.32 milhões de pessoas compraram Caim e Abel. Cem milhões leram esse livro. Não sou assim tão vaidoso que ache que ainda irei escrever algo melhor do que esse romance, além de que o mundo decidiu que era esse o meu grande livro..Considera-se castigado por esse sucesso inicial?.Não, porque adoro escrever apesar de Caim e Abel ter tornado tudo mais difícil a seguir. Contudo, sento-me todos os dias a escrever e tento fazer o melhor possível, e quando não conseguir pararei. No entanto, como estou sempre a tentar melhorar, acho que nunca irei desistir..Pode-se dizer que existe um tema central nos seus livros?.O romance Caminhos de Glória foi a grande exceção. Não tinha escrito nada assim e nunca mais escrevi. De resto, existe um tema sempre presente nos meus livros: os anseios e os sonhos das pessoas. Creio que faz parte de mim, tal como um médico escreve sobre medicina e um violinista sobre música. Escrevemos sobre o que nos faz sentir seguros..Os leitores estão a mudar. Também tem de mudar o seu tema ou a forma de escrever?.Creio que após 40 anos não deixarei de ser sempre um contador de histórias, mas agora poderei escrever melhor e não cometer certos erros devido à experiência..O título deste Contador de Histórias é como a sua imagem refletida num espelho? É verdade, concordo, mas não era esse o título original, antes o quarto. Fui mudando enquanto escrevia o livro porque o meu editor não gostava. Já em Caim e Abel isso aconteceu: primeiro foi Os Protagonistas, depois Os Irmãos e só no fim surgiu aquele que eu sabia estar certo..Já deu muitas entrevistas. Alguém descobriu quem é o verdadeiro Jeffrey Archer?.Nem eu próprio me conheço, portanto será difícil isso acontecer. Sou muito complexo, não tenho dúvida, apesar de ao mesmo tempo ser uma pessoa simples. Trabalho muito e quanto mais envelheço mais me empenho. Tenho medo da morte! Acabei de assinar um contrato para uma nova saga e já acabei o primeiro volume. Agora, preciso de viver mais cinco anos para acabar esta nova saga. Portanto, não consigo ser preguiçoso, mudar de vida, descansar ou encalhar por aí. Estou sempre a avançar..Essa nova saga é para comprar tempo à morte?.Sim, quero viver mais esse tempo. A minha mulher diz que eu ter um compromisso é uma das razões para me fazer viver. Tenho medo de parar de viver..De que trata a nova saga?.O primeiro livro está pronto e vai sair a 15 de setembro na Inglaterra e nos Estados Unidos. Agora estou a escrever o segundo volume, a história de um jovem cujo pai é um advogado muito famoso; ele quer ser polícia enquanto o pai quer que ele siga o mesmo caminho dele. É a história de um polícia desde o início da carreira até ser comissário. E isso vai levar sete livros..Veio a Lisboa à Feira do Livro. O que espera?.Nunca se pode prever. Vou mostrar-lhe uma fotografia - uma imagem de uma sessão numa Feira do Livro na Índia -, aqui foi o mais inesperado que podia acontecer: sete mil e quinhentas pessoas para me ouvir. Portanto, nunca se pode dizer o que nos espera. 50 pessoas, centenas ou milhares? Seja como for eu gosto de visitar cidades e de falar com pessoas..Está a divulgar um livro que foi publicado em 2017 e a escrever um novo. É fácil estar sempre a viajar no tempo?.Não me incomoda, o público interessa-se por todos os meus livros e fazem-me perguntas sobre tudo o que escrevi. E eu respondo ao que querem saber..Como está a literatura inglesa?.Eu gosto muito do Ian McEwan, mas há outros interessantes, só faltam bons contadores de histórias. São raros. Mais raro ainda é que os bons contadores de histórias se mantenham na linha da frente - aparecem e no ano seguinte desaparecem. Basta ver que da minha geração e ao fim de 40 anos só resto eu e John Le Carré na lista dos best-sellers. Pelo meio houve muitos autores, mas a longevidade é muito importante. Os leitores são muito cruéis e eles é que decidem. Estou sempre a ler novos autores e para mim os dois melhores livros do ano são O Tatuador de Auschwitz (Heather Morris) e Um Gentleman em Moscovo (Amor Towles). Muito diferentes um do outro e pouco habituais. Estou sempre a ler; quando vinha no avião li Stefan Zweig, que é um génio apesar de ser trágico..Contador de Histórias.Jeffrey Archer.Editora Bertrand.206 páginas