Pode um homem com sotaque cerrado cockney, baixinho, calvo e sem um vasto leque de registos de interpretação tornar-se numa das maiores estrelas do cinema americano? A lógica diz que não mas o caso de Jason Statham desafia convenções. Ao longo dos últimos anos, este senhor de 53 anos, natural de Derbyshire, Inglaterra, conseguiu impor um estilo de herói de ação em Hollywood: abre filmes de grande orçamento só com o seu nome, é ídolo de miúdos e graúdos e é visto pela indústria como um dos últimos "duros". A par dos filmes de ação em que é quase sempre o herói solitário e de poucas falas, foi ainda uma das estrelas recentes da saga Fast e com direito a spin-of da sua personagem Shaw em Hobbs & Shaw..Numa chamada de vídeo por Zoom, o ator inglês recebe o DN desde Los Angeles para promover Um Homem Furioso, do amigo Guy Ritchie, o cineasta que o descobriu nesse mítico Um Mal nunca Vem Só. Estávamos em 1998 e depois disso contracenou com Brad Pitt em Snatch-Porcos e Diamantes, também de Ritchie, e depois foi para Hollywood fazer jus à sua aura de pequeno durão, aproveitando o "know-how" físico de uma juventude que incluiu presença na equipa de mergulho inglesa..Em Um Homem Furioso é um misterioso empregado de uma empresa de segurança que controla o transporte de depósitos. Por detrás das suas ações pode estar um missão paralela, uma missão de vingança. A sua personagem não sorri, quase não fala e contagia toda a sua equipa com uma aura taciturna quase digna da comédia. Mas ao contrário de The Gentlemen, Guy Ritchie neste "remake" do thriller francês Le Conveyeur (inédito em Portugal), de Nicolas Boukhrief, não adota o seu humor britânico nem a sua marca de "cultura pop". Estamos mesmo na presença de cinema de ação bruto e duro, um exercício másculo em que a violência é o suporte de um registo que, aqui e ali, alude às atmosferas dos últimos filmes de Christopher Nolan, com um "cheirinho" de Heat, de Michael Mann..Ao contrário deste seu vingador de Um Homem Furioso, nesta entrevista via zoom Jason é um tipo sorridente, descontraído e a falar sempre em pé numa manhã de abril em Los Angeles. Sente-se que gosta de ser um herói de ação: "fui para Hollywood porque o cinema inglês apenas estava numa de filmes com espartilhos e chávenas de chá. Não era para mim..."..Desde Revólver, em 2005, que não trabalhava com Guy Ritchie. Ficou surpreendido com o convite? Pois, foi uma surpresa...Este é um filme muito duro e estamos mais habituados ao registo dele de comédia negra com personagens exagerados e coloridos, mas esses eram sobretudo os tempos dos meus primeiros filmes com ele, o Um Mal Nunca Vem Só e o Snatch- Porcos e Diamantes. Diria que aí era tudo muito à base do argumento e só de ler o guião nós ríamos à gargalhada. Aqui é diferente: estamos na presença do mais violento e possivelmente mais realista filme do Guy Ritchie! Quando recebi o telefonema dele com o convite gostei mesmo da premissa. Mas confesso que gosto de trabalhar com ele, é um grande realizador, ainda que desta vez tenha sido tudo diferente: não havia guião para olhar. Fomos ao encontro de uma técnica muito orgânica na criação da ação e de criação de situações dramáticas. Apenas era preciso estar lá com a cabeça aberta....Mas ficaram 15 anos sem trabalhar juntos, porque razão? Curiosamente, a seguir a este já fizeram de seguida outro filme... Foi engraçado, mal acabou este achámos que foi demasiado rápido e decidimos partir logo para outro filme! Aliás, o Guy já tinha algo na sua mente...Mesmo com a pandemia conseguimos resolver tudo e lançámo-nos! Enfim, gostamos de sofrer! Amamos trabalhar juntos, para o bem e para o mal ainda não estamos fartos um do outro, pelo menos por enquanto..Conhece o filme original, Le Conveyeur, no qual este se inspira? Fiz questão de não o ver, não queria ir para este papel com ideias feitas. Não queria também ficar ligado ao filme original...Este é um filme do Guy Ritchie que se aguenta sozinho e eu queria respeitar os seus desejos..No póster aparece com o habitual estilo de cavalheiro britânico, com fato "tweedy". Isso é logo só por si uma indicação ou um piscar de olho de uma assinatura britânica de Guy Ritchie, mesmo sendo esta uma história passada na Califórnia? Não sei, isso são coisas do estilista...Uma coisa é certa, quero sentir-me confortável naquilo que visto. Esta é uma personagem que não quer estar demasiado na moda, que rejeita os fatinhos apertados. Dessa forma, chegámos a um compromisso pois não o queríamos apenas de T-shirt..Seria um desafio para si um dia fazer um papel não "typed cast", por exemplo, entrar num filme de Wes Anderson ou coisa do género? Explorar géneros diferentes não é para si? Escute, um ator tem de escolher a partir daquilo que lhe chega às mãos. Para certos papéis os realizadores não pensam em mim. Estou numa posição bastante trivial por muito que me veja a fazer outras coisas. Um cineasta se não nos vê de determinada maneira não há nada a fazer. Mas sou muito afortunado, continuo sempre a ser chamado. Ainda no outro dia dizia ao Guy que nesta indústria é muito difícil sobreviver uma década, quanto mais duas...Continuo a fazer filmes, continuo a ter uma carreira. Eu e o Guy temos muita sorte de estar nesta posição. Se um dia algo de diferente vier até mim creio que vou tentar....A última vez que o entrevistei lembro-me do seu aperto de mão forte. Será que tem saudades de fazer estas entrevistas presencialmente ou prefere esta distância? Não prefiro mesmo esta distância! O contacto físico e estarmos realmente no mesmo espaço é importante. Este novo mundo que vivemos é um lugar estranho. Para mim, é muito duro não apertar a mão e ver toda a gente de máscara. Não somos feitos para viver desta maneira mas de forma respeitosa temos de continuar assim, a segurança de todos é fundamental. Temos de ter cuidado...Seja como for, continuo a apertar a mão a quem posso. Neste novo mundo temos efetivamente de respeitar o espaço do outro..Um Mal Nunca Vem Só (1998).O primeiro filme de Guy Ricthie foi também o filme que lançou Jason Statham. O filme ainda hoje é para muitos a obra-prima de Ritchie, uma comédia de bons malandros que parecia definir uma tendência do policial moderno britânico..Snatch- Porcos e Diamantes (2000).Jason Statham com todo o seu carisma de "pintas" britânico num dos mais populares filmes de golpe de Ritchie. O guião era tão apelativo que até a maior estrela de Hollywood quis entrar: um hilariante Brad Pitt..Revólver (2005).O mais "tarantinesco" dos filmes de Ritchie com um Jason Statham mais misterioso do que pitoresco. A colaboração entre ambos chegava ao fim antes deste regresso. Cada um seguiu para o seu lado: Ritchie alternando blockbusters com filmes com a sua marca identitária e Statham a habitual tarifa do cinema de pancadaria escola "macho-macho"..dnot@dn.pt