Fernão Lopes, que era mais talhado para a crónica dos grandes movimentos políticos do que para os segredos do coração humano, não teve dúvidas em considerá-lo "amor raramente achado em alguma pessoa". Vieram depois muitos outros, como Garcia de Resende, Camões, Bocage, Afonso Lopes Vieira, mas também Lope de Vega, Henri de Montherlant ou Ezra Pound, que acabaram por transformar os amores trágicos do nosso rei D. Pedro I e Inês de Castro no mais global de todos os mitos da História e cultura portuguesas..Foi, pois, com confesso receio que a escritora Isabel Stilwell (autora de vários romances históricos de grande sucesso editorial, sempre centrados em protagonistas femininas) se aproximou da amada de D.Pedro I no seu novo livro, Inês de Castro - Espia, Amante, Rainha de Portugal (edição Planeta) que acaba de chegar às livrarias: "Admito que tive um bocadinho de medo, que já sentira um pouco quando escrevi o livro sobre Isabel de Aragão, porque a verdade é que quando estamos perto dos mitos, de algum modo receamos desfazê-los. O público tende a não gostar de ver posta em causa a sua própria versão daquelas personagens." O método de Isabel foi, pois, aproximar-se da sua protagonista, "não tanto através dos textos literários canónicos, como Camões ou Garcia de Resende, mas através das pessoas que a rodeavam e sobre as quais sabemos bastante mais do que sobre ela própria"..O resultado é uma Inês de Castro de carne e osso, com temperamento, caráter, sonhos e ambições: "É engraçado porque, em comentários no Facebook, por exemplo, as pessoas pediam-me para não fazer dela espia, como se lhes fosse mais fácil vê-la como uma vítima inocente do amor sem qualquer outro objetivo ou dimensão. Claro que ela foi, de facto, uma vítima da fúria de D. Afonso IV e dos interesses de Estado, mas teve espessura anímica. E foi uma mulher da sua época, filha de uma família da alta nobreza peninsular.".Recuemos ao ano de 1340: Dona Inês Pires de Castro chegou a Portugal, integrada no séquito de Dona Constança, noiva do príncipe herdeiro, Dom Pedro. Não era uma serviçal. Filha natural do poderoso rico-homem D. Pedro Fernandes de Castro, era bisneta de D. Sancho IV de Castela e prima em 2.º grau do príncipe, que, mal a viu, se apaixonou perdidamente. "Pelo que escrevem as crónicas", diz Aquilino Ribeiro em Príncipes de Portugal, suas Grandezas e Misérias, "Inês não podia ser tocada de graças mais peregrinas, esbelta de tigre, cabelos fulvos, no pescoço tal donaire que lhe merecera a alcunha de "colo de garça".".A realidade pode, no entanto, ter sido bem menos simples do que a sua crónica romanesca. Segundo Isabel Stilwell, a beleza e inteligência de Inês de Castro foram colocadas no caminho de D. Pedro com o intuito de espiar para João Afonso, 6.º senhor de Albuquerque e primo de Inês, o homem mais poderoso do reino vizinho: "Ele fez o mesmo com Maria Padilla, que seduziu o rei Pedro I de Castela. Nesta época, as mulheres bonitas e inteligentes eram colocadas no caminho dos homens poderosos com o objetivo de aumentar o poder de alguém, geralmente dos homens da sua família, o que não as impedia de terem vida própria e de se apaixonarem realmente pelos homens que queriam seduzir. Mas esta é uma realidade que depois voltaremos a encontrar na Inglaterra Tudor, nomeadamente na corte de Henrique VIII.".O paralelismo entre o destino de Inês e os de outras mulheres da nobreza peninsular neste final da Idade Média foi um dos aspetos que mais surpreendeu Isabel Stilwell durante a investigação: "Parto para os livros em estado de grande ignorância, porque acho a surpresa muito produtiva. E, de facto, encontrei tanto Maria Padilla como Leonor de Guzmán, amantes de Pedro I e Afonso XI de Castela, respetivamente. Ambas tiveram destinos semelhantes ao de Inês." Leonor foi assassinada depois de dar uma vasta prole ao monarca (o que a tornou fundadora da dinastia dos Trastâmara, que governou o reino de Castela de 1369 a 1516), e Maria Padilla, depois da morte do rei, passou a viver atrás de muralhas para escapar à perseguição que lhe fora movida. "Estamos numa época em que o assassinato era uma forma corriqueira de os poderosos se livrarem de um adversário político, ou de um obstáculo", lembra Isabel Stilwell: "As mulheres não estavam na linha da frente até ao momento em que desempenhassem um papel relevante. Aí tornavam-se alvos potenciais, tal como os homens.".Mas se a História dá conta de outras mulheres sacrificadas por paixões reais, por que razão foi a tragédia de Inês, "santa entre as santas pela má ventura/Rainha mais que todas que reinaram" (como escreveu já no século XX o poeta Afonso Lopes Vieira), que se tornou um mito global? Para a escritora, os túmulos erguidos, por desejo de D. Pedro, no transepto do Mosteiro de Alcobaça foram decisivos: "Os túmulos deram um realismo, uma poesia e uma beleza a estes amores que é qualquer coisa de único. Não nos podemos esquecer de que, já rei, D. Pedro supervisionou tudo, até aos mais ínfimos detalhes, no túmulo e na estátua jacente de Inês. É por isso que abro o livro com as tomadas de decisão que ele faz para a representação dela, incluindo a roupa, o penteado ou os adereços." E conclui: "Continuo a sentir-me extasiada cada vez que vou a Alcobaça e vejo um tal monumento ao amor.".Colocados frente a frente "até ao fim do mundo" (como se pode ler na inscrição do túmulo de Inês), para que o juízo final encontre os dois amantes voltados um para o outro, os túmulos e a história, mil vezes acrescentada, destes amores inspirou tantos autores e artistas de várias disciplinas que sobre eles podemos dizer que são apenas comparáveis às histórias, de escasso fundamento histórico, de Tristão e Isolda ou Romeu e Julieta. A disseminação cultural foi tal que levou a investigadora e antiga diretora da Biblioteca Nacional de Portugal Maria Leonor Machado de Sousa a publicar um extenso ensaio, intitulado Inês de Castro - Um Tema Português na Europa. Com efeito, ao mesmo tempo que, por cá, Garcia de Resende (em "Trovas à Morte de Inês de Castro", publicado no seu Cancioneiro Geral), Camões (no canto III d"Os Lusíadas) ou António Ferreira (na tragédia A Castro) tratavam o tema, também em Espanha Jerónimo Bermúdez ou Luis Mejía de la Cerda o faziam, o que se prolongou ao longo do século de ouro espanhol com Luis Vélez de Guevara. Mas engana-se quem pense que estes textos se perderam nas estantes das bibliotecas. Em 2019, depois de muitos anos sem serem representados, dois deles subiram a dois dos mais importantes palcos de Madrid: Nise, la tragedia de Inés de Castro, de Jerónimo Bermúdez , com adaptação e direção de Ana Zamora, esteve em cena no Teatro de la Abadía, ao mesmo tempo que a Companhia de Teatro Clássico apresentava Reinar después de morir, de Vélez de Guevara, com adaptação de José Gabriel López Antuñano e encenação de Nacho García..O auge do interesse literário (e musical e pictórico) por Pedro e Inês aconteceria, no entanto, já no século XIX, quando o romantismo, com a sua paixão quer pela Idade Média, quer pelas grandes histórias de amor e morte, não resistiu aos aspetos dramáticos, sentimentais ou até macabros do caso. É o século XIX que celebra a iconografia da coroação da rainha depois de morta, tornando-a um tema caro a artistas franceses e espanhóis e, quase sempre, de grande espetacularidade e morbidez. Como podia a cultura das irmãs Bronte (recorde-se O Monte dos Vendavais) ou de Thomas Hardy resistir a representar a coroação do cadáver de Inês, com os horrorizados vassalos obrigados, por D. Pedro, a beijar a mão esquelética?.Mas se o racional século XX se afastou destas visões fantasmagóricas, nem por isso o tema perdeu o apelo. Sobre ele escreveram Ezra Pound, Henry de Montherlant (autor da muito aclamada obra La Reine Morte), Alejandro Casona, Albert Caraco, Maria Pilar Queralt del Hierro (autora da biografia romanceada Inés de Castro), Agustina Bessa-Luís (Adivinhas de Pedro e Inês), Afonso Lopes Vieira ou Nuno Júdice (Pedro lembrando Inês). Fizeram-se filmes, como a coprodução luso-espanhola de Leitão de Barros, em 1945, ou os filmes de José Carlos Oliveira (Inês de Portugal, em 1997) ou de António Ferreira (Pedro e Inês - O Amor não Descansa), em 2018..A música acompanhou este fascínio. Pedro e Inês inspiraram já dezenas de óperas e libretos das mais diversas origens. Destacam-se, entre elas, a concebida pelo compositor português Ruy Coelho, que também escreveu música de bailado sob o mesmo tema e o mesmo título. A sua ópera em três atos Inês de Castro estreou no Teatro Nacional de São Carlos em 1953, com libreto concebido a partir dos textos A Castro, de António Ferreira, e D. Pedro, de António Patrício..O mesmo tema inspiraria também, já no final do século, o compositor James MacMillan. A sua ópera Inês de Castro foi estreada em 23 de agosto de 1996, no Festival de Edimburgo, e o seu libreto foi escrito pelo novelista britânico John Clifford, uma vez mais a partir do texto dramático quinhentista A Castro..Mas se todas estas obras se centram no momento trágico do assassinato da jovem em Coimbra, rodeada pelos filhos pequenos, e no lancinante luto do seu príncipe, que fez da vingança o seu maior propósito, Isabel Stilwell dá-nos a conhecer uma Inês que foi também uma mulher do seu tempo e meio social. A rapariga fascinada por joias enviada à corte de Lisboa com um missão pouco amorosa: "Aisha avisou-a. Catarina avisou-a. E ela própria sabia-o, não precisava de avisos de terceiros para saber que os espiões de Lopo Pacheco e as criadas de Joana Vasques Pereira estariam mais alertas do que nunca, suspeitando de que estaria interessada em tudo o que acontecera no encontro dos ingleses com o rei e o infante. Mas quando Pedro lhe enviou um bilhete com uma hora e um local, saiu ao seu encontro. Como sempre." E essa foi a sua perdição, até ao fim do mundo..dnot@dn.pt