Por detrás das discretas paredes cor-de-rosa-pálido do 135 da Rua da Escola Politécnica, ao Príncipe Real em Lisboa, está uma das mais antigas fábricas de laboração contínua em Portugal. Hoje, já desocupada das grandes máquinas de impressão (e de quase todos os trabalhadores devido à pandemia), ainda é no mesmo edifício que se recebem, editam, paginam e publicam todas as leis do país..Esta é a história do longo caminho dos atos legais desde que são aprovados e apresentados pelas diferentes entidades até que produzem efeitos ao serem publicados no Diário da República eletrónico (DRE) que mesmo durante a crise da covid-19 nunca parou, e até foi maior o fluxo de trabalho, tendo em conta a necessidade de publicar leis fora de horas e mesmo aos fins de semana e a uma rapidez pouco habitual. Mas também um olhar sobre todos os técnicos que permitem que as leis sejam publicadas sem erros, ortográficos e jurídicos..Quando uma lei (ou outro tipo de diploma) é publicada em Diário da República, já passou por muitas mãos e olhos e não apenas no processo de apresentação, discussão e votação na Assembleia da República, para os casos em que é dali a origem do ato. Até se tornar efetivamente uma lei, há um longo processo anterior, quase de filigrana, de dezenas de pessoas que estão na sombra da produção legislativa em Portugal. No fim da linha estão os técnicos da Imprensa Nacional Casa da Moeda (INCM)..Todos os dias são às centenas os atos para publicação e não apenas com origem no governo ou na Assembleia da República - aqueles que são mais comuns nas notícias. "Estamos a falar de uma quantidade enorme, são centenas de atos por dia. Não são apenas os da 1.ª Série que acabam por ter um número mais residual. A 2.ª Série tem centenas de páginas diárias", exemplifica Bruno Pereira, diretor da unidade de publicações da Imprensa Nacional. "Temos entre 200 e 250 atos todos os dias", quantifica Ana Eusébio, chefe de divisão das publicações oficiais na Imprensa Nacional..Não é um processo simples. O trabalho da equipa do Diário da República começa logo depois de as entidades credenciadas com acesso à plataforma do DRE submeterem o ato que pretendem ver publicado. Nesta fase é preciso confirmar todos os dados através de um sistema de validação, muito semelhante aos passos usados num comum sistema de homebanking, através de uma matriz de segurança, com ligações encriptadas. Depois de carregado, está pronto para começar a revisão ortográfica e gráfica do texto, a edição e a paginação, num processo por etapas que envolve diferentes técnicos especialistas..E quando há erros? "Regressa à origem", respondem quase em uníssono alguns técnicos da divisão da INCM. "Se nem tudo estiver em conformidade, o ato é devolvido ao cliente, informando que há um erro e qual é o erro. E isso acontece com alguma frequência, tendo em conta o universo muito grande de atos. Na 1.ª Série não acontece tanto, mas acontece. Basta um engano no tipo de ato", exemplifica Carla Duarte, técnica da divisão de publicações..Um ato pode ser uma lei (competência da Assembleia da República), uma convenção internacional (tratados ou acordos), as leis orgânicas, os decretos-leis (da competência do governo), os decretos legislativos regionais ou os decretos do Presidente da República, só para dar alguns exemplos. Ao todo, há 25 diferentes atos que são publicados no Diário da República..O DR é composto por duas séries: na primeira, as leis e os atos dos órgãos de soberania, como o Presidente da República, o governo e os tribunais, mas também de entidades reguladoras e de supervisão como o Banco de Portugal e a Comissão Nacional de Eleições. Na 2.ª Série - que é paga pela entidade responsável - são publicados atos da administração central, regional e local (regiões autónomas e câmaras municipais), como portarias, regulamentos, despachos e concursos públicos..Nota histórica: já houve uma 3.ª Série que foi, entretanto, integrada na 2.ª Série do Diário da República..Pelo caminho, há vários momentos de "passagem de testemunho", num trabalho por etapas em que cada um dos intervenientes contribui com uma peça. É como montar um puzzle em que só no final terá a configuração padronizada. E a máquina nunca para. "Um ato para publicação pode ser carregado a qualquer hora do dia; 24 horas por dia, recebemos atos para publicação", explica Bruno Pereira que chegou à INCM há poucos meses, em março deste ano..Mas não quer dizer que sigam imediatamente para publicação. A equipa do DR funciona em dois turnos: o primeiro até às cinco da tarde e o segundo até à meia-noite. Se um ato chegar para publicação depois dessa hora, passa para o dia seguinte. E se for muito urgente? "Entra uma equipa toda para fazer o que for preciso. E isso aconteceu muito durante a pandemia", responde Carla Duarte. Depois de validadas todas as informações sobre o tipo de ato, a entidade que o submeteu e os elementos obrigatórios, começa o trabalho mais fino da equipa do Diário da República.."Temos uma pessoa ou duas, no máximo, na validação da 1.ª Série. Na 2.ª Série, temos duas pessoas para validação dos atos quando dão entrada e uma equipa de cinco ou seis pessoas para registo dos mesmos no sistema de edição", refere Carla Duarte..E o pormenor da verificação vai à vírgula. "A 1.ª Série são atos que são lidos pela revisão na íntegra. Atos do governo também. Todos os restantes são verificados, são vistos os sumários, bem como as declarações de retificação", indica Alexandra Reis, da divisão de edição, garantindo que a "todas as dúvidas são pedidos esclarecimentos. Se não ficarmos esclarecidos sobre se era mesmo aquilo que queriam dizer, fazemos um pedido de esclarecimento para a entidade e o ato fica suspenso. Mesmo num de urgência."."Esta é a primeira fase da revisão", acrescenta Ernesto Domingas, subchefe de divisão. "É aqui que nasce o Diário da República", afirma orgulhoso. "Em todas as fases há uma validação de qualidade do ato em si, numa espécie de dupla verificação", refere Alexandra Reis..Nesta etapa é feita uma nova revisão ao trabalho anterior e depois passa por um crivo, já automatizado, para cada uma das séries, com "macros" predefinidas.."O que não pode falhar é a referência à referenda e à promulgação, que torna inexistente o ato", lembra Hélder Santos, jurista e coordenador do Identificador Europeu da Legislação (ELI, na sigla inglesa). "Os atos do governo que são objeto de promulgação pelo Presidente, quando voltam ao governo são referendados pelo primeiro-ministro. A entidade que submete para publicação é o governo, embora tenha a intervenção do Presidente da República", explica Ernesto Domingas..A revisão ortográfica e dos artigos é verificada por várias pessoas. Na fase da paginação é certificado tudo de novo e na fase de carregamento outra vez. "Não é um processo infalível", reconhece o diretor da unidade de publicações. Tratar um ato "demora algumas horas e depende da dimensão e da complexidade do documento", acrescenta. E se há uns anos um ato poderia demorar até 30 dias a ser publicado, atualmente pode ir de escassas horas até três dias, o prazo normal para publicação desde que chega o pedido..E o mesmo acontece com documentos mais pesados e complexos, como é o caso da Lei do Orçamento do Estado. "É provavelmente a maior", assume Alexandra Reis. O documento é distribuído por várias pessoas e "tem quatro/cinco dias para revisão e formatação"..A seguir o documento é paginado e o ficheiro carregado para a plataforma de publicação e voltam as verificações "que são dezenas por cada ato". "Todos os links são verificados, se a lei a que faz referência está correta, etc. E quando é publicado é feito em dois formatos: o PDF que corresponde à versão impressa e, atualmente, também o HTML", refere Ernesto Domingas..Mas o trabalho não acaba aqui. Passa por um processo posterior de consolidação e também de publicação de um sumário em "linguagem clara" para "facilitar a compreensão por parte dos cidadãos".."A consolidação é criar a história da lei, permitindo conhecer o diploma num dado momento", resume Bruno Vidal, jurista da unidade. "Vamos atualizando o que é possível. Neste momento temos 3586 diplomas consolidados.".O processo também é complexo. "A consolidação implica uma leitura do diploma, verificação da existência de alterações, perceber se o diploma está bem construído", exemplifica. "Muitas vezes acontece que o legislador introduz alterações que alteram outro diploma. Encontramos muitas vezes alterações a que o legislador não faz referência.".Em menos de uma semana, tudo mudou na unidade de publicações. "Entre o dia 12 e 16 de março do ano passado toda a equipa foi para casa. Foi tudo muito rápido. E a regulamentação do estado de emergência dependeu desta equipa", resume Bruno Pereira..Até ao final de junho deste ano, foram publicados mais de 700 atos relacionados com a covid-19. "Desde o dia 2 de março de 2020, com o despacho que ordenava aos empregadores públicos a elaboração de planos de contingência, até 27 de junho foram publicados 746 atos que vão desde os decretos do Presidente da República até despachos de serviços: 419 em 1.ª Série e 327 em 2.ª Série", indica Bruno Pereira. Apesar de parecer muito, representa uma ínfima parte de tudo o que foi publicado no jornal oficial: apenas 1,2% dos 62 540 atos publicados..E houve momentos em que a publicação do Diário da República não parou durante várias semanas. Foi uma cadência ininterrupta. "Entre 11 de março e 31 de maio de 2020, em 82 dias, só não houve publicação do DRE em dez destes dias", sublinha o diretor de publicações. "Quando a Organização Mundial da Saúde decretou a pandemia houve publicação do DRE ininterruptamente durante 30 dias, aos sábados e aos domingos. E pela primeira vez publicou-se num 1º de Maio."."Para esta equipa não é muito complicado gerir processos de publicação num curto espaço de tempo. O que é mais complicado é fazer perceber às entidades emitentes que têm de enviar bem um ato para que o fluxo seja cumprido. Mesmo perante a emergência da publicação tinha de haver a certeza do direito", avisa Hélder Santos..Mais raros eram os pedidos de publicação ao fim de semana. "O Diário é publicado nos dias úteis, embora esteja previsto que o secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros possa autorizar a publicação fora destes dias. No passado acontecia pontualmente, mas desde março de 2020, com a necessidade de entrada em vigor de medidas relacionadas com o combate à pandemia, tornou-se mais frequente", explica Bruno Pereira..A equipa acabou por criar uma área dedicada à legislação covid, dado o interesse para a população em geral. "Comparando 2020 com 2019, tivemos mais 33% de acessos ao site, sendo que o dia 14 de janeiro deste ano, que correspondeu ao segundo confinamento geral, tivemos 1,280 milhões de pageviews, batendo um milhão em março de 2020", quantifica Bruno Pereira..Mas não foi só a transição do edifício do Príncipe Real para a casa de cada um dos funcionários da unidade do Diário da República. Muita coisa mudou e nunca mais voltará ao passado..Antes de 12 de março do ano passado, todos os atos eram impressos e colocados em pastas de cores, em que cada uma das cores correspondia a um código: se era para leitura, se era um ato do governo, se era suplemento, se era urgente. "Todos tinham uma cor: azul, amarelo, verde, para darmos o trabalho aos colegas da produção nessas pastas físicas em papel e de acordo com a cor, automaticamente sabiam o trabalho que tinham e as urgências", exemplifica Ana Eusébio, chefe de divisão de publicações oficiais..Toda a equipa foi para casa e o sistema que era físico, de papel e pastas, transitou para pastas de rede. "Forçou-nos a abandonar o que tínhamos e a abandonar o papel. Neste momento estamos com papel zero e já não iremos voltar ao sistema anterior de pastas de papel", assume. Desapareceram duas a três resmas de papel por dia..A primeira edição de um jornal oficial em Portugal surgiu no dia 10 de agosto de 1715, com a designação de Gazeta Notícias do Estado do Mundo. Era um sábado e continha informações sobre a Turquia, a Alemanha ou a França. E também sobre os reis de Portugal..Depois passou a designar-se Gazeta de Lisboa, título que manteve até 30 de dezembro de 1820. Entre 1778 e 1803 e entre 1814 e 1820 foi publicada pela Impressão Régia e a partir de 1820, o jornal oficial passou a ser publicado pela Imprensa Nacional..Entre 16 de setembro e 31 de dezembro de 1820 publica-se simultaneamente a Gazeta de Lisboa e o Diário do Governo, fundindo-se num só jornal em 1 de janeiro de 1821 com o nome de Diário do Governo, até 10 de fevereiro desse ano. A partir dessa data e até 1976 o jornal oficial teve várias designações, consoante o regime em vigor. A denominação atual surge no dia 10 de abril de 1976.."Era uma forma de legitimar o poder, garantindo publicidade ao regime político", explica Hélder Santos. "A denominação Diário do Governo foi a forma de destacar a centralidade do governo do Estado Novo e serviu claramente como instrumento político de controlo da informação pelo governo", exemplifica. Depois de tornar o acesso ao Diário da República universal e gratuito, o próximo passo é torná-lo compreensível a todos os cidadãos. "Estamos a dar os primeiros passos, por agora, na área dos direitos do consumidor", indica Bruno Pereira.."No fundo, o que se pretende é que o utilizador que não tem conhecimentos jurídicos ou técnicos naquela área do saber consiga, por um lado encontrar informação (e não apenas o decreto-lei que é aplicável), mas ir mais ao detalhe. É encontrar o artigo em concreto", ilustra..O projeto está a ser desenvolvido com universidades, num "processo de aprendizagem"..Mas a ideia é replicar o trabalho feito com a legislação covid e criar uma espécie de "Diários da República temáticos", ou seja, portais temáticos. "Mas para tudo isto os dados têm de ser estruturados", reconhece Bruno Pereira..Outra área de intervenção é ao nível do Identificador Europeu da Legislação. De certa forma, é pôr os diferentes diários da República de todos os Estados membros a "falarem" entre si, mas para isso é preciso incorporar metadados, uma espécie de etiqueta que permite a leitura dos dados. "Os metadados são uma linguagem semântica que permite a interoperabilidade da informação legislativa ao nível europeu. Somos o jornal oficial na linha da frente", refere Hélder Santos. O objetivo é normalizar a linguagem.."Por exemplo, um cidadão português quer criar uma empresa de camionagem na Irlanda. Neste momento, como o conceito de camião ou camioneta pode não existir, o utilizador vai ao repositório central dos metadados da União Europeia para consultar toda a legislação e é-lhe devolvida a resposta final", ilustra Hélder Santos..Para tudo isto é preciso convencer outros Estados membros a implementar os metadados para uniformização. "Depois de termos um vocabulário comum estamos a programar a inteligência artificial que tem de ir aos metadados alimentar-se", conclui este jurista..paulo.pinto@dinheirovivo.pt