Na semana passada, o presidente da Comissão Federal de Comunicações dos Estados Unidos (FCC), Ajit Pai, esteve em Portugal com um único objetivo: fazer pressão contra a anunciada parceria entre a Altice e a chinesa Huawei para a implantação no país da futura rede de telecomunicações 5G (quinta geração). Os argumentos de Ajit, enfaticamente reforçados pelo embaixador norte-americano no país, George Edward Glass, num tom que poderia mesmo ser entendido como ameaçador, assentaram nos riscos para a segurança dos Estados Unidos e seus aliados alegadamente colocados pela proximidade entre a empresa em causa e as autoridades de Pequim..Será a segurança a principal preocupação dos Estados Unidos? Ou o pano de fundo é mesmo a dura guerra comercial entre estes e a China, que atingiu o seu clímax com a detenção em dezembro do ano passado, no Canadá, da vice-presidente da Huawei, Meng Wanzhou, acusada de envolvimento na violação de sanções comerciais ao Irão e pirataria industrial por parte daquela empresa? E em que medida a visita a Portugal do presidente chinês, em dezembro, incomodou a administração Trump ao ponto de justificar o envio ao país do homem-forte da supervisão das telecomunicações na América, uma escolha pessoal do atual presidente norte-americano? Para começar, é preciso perceber o que é a Huawei e o que esta representa hoje no xadrez político e económico mundial..De pequena empresa a gigante mundial.Ren Zenghfei - pai de Meng Wanzhou -, engenheiro que trabalhou como investigador para o Exército de Libertação Popular chinês, fundou a Huawei em 1987, com um investimento inicial equivalente a cerca de cinco mil euros. A empresa, baseada em Shangzou, começou por dedicar-se à venda de componentes de telemóvel importadas de Hong Kong, evoluindo depois para o fabrico dos seus próprios equipamentos..A história do crescimento meteórico desta empresa tem várias versões. A mais romântica conta que Ren começou por debater-se com dificuldades para distribuir os seus produtos, mesmo no mercado doméstico, mas que acabou por conquistar a sua clientela inspirando-se na tática maoista de dominar as cidades a partir do meio rural, compensando ainda a falta de qualidade inicial dos seus produtos com um excelente apoio ao cliente . Outros relatos contam que, em diferentes fases do seu desenvolvimento, incluindo a expansão para a área das próprias redes móveis, a Huawei recebeu injeções de capital do Estado chinês, que passou a encará-la como um ativo decisivo da sua política de expansão económica internacional..O certo é que, em 2005, as encomendas internacionais à empresa suplantaram pela primeira vez as domésticas e, desde então, a ascensão foi constante. Em 2012, a multinacional suplantou a sueca Ericsson como o maior fabricante mundial de equipamentos de telecomunicações e, no ano passado, graças à boa relação custo-qualidade dos seus equipamentos, ultrapassou a Apple no segundo lugar dos maiores fabricantes mundiais de telemóveis, ficando apenas atrás da Samsung..Com receitas anuais da ordem dos cem mil milhões de euros, presença em mais de 170 países e contratos com 45 dos 50 maiores operadores de telecomunicações do mundo, a Huawei é um dos principais gigantes das telecomunicações do planeta e a segunda maior companhia chinesa, apenas atrás da Lenovo..Suspeitas de pirataria.A investigação foi uma aposta da empresa desde os seus primeiros anos de atividade. E atualmente, dos cerca de 170 mil trabalhadores que tem, 76 mil estão envolvidos em pesquisa e desenvolvimento. Os seus centros de investigação estendem-se por vários países, incluindo Estados Unidos, Canadá, Alemanha, Rússia e Israel, com o investimento na criação de novos produtos e tecnologias a representar perto de 14 mil milhões de euros anuais..No entanto, houve várias alegações de que a empresa terá também pirateado tecnologia de outras companhias, nomeadamente norte-americanas. Em 2003, a Cisco Systems processou a Huawei, acusando-a de violação das suas patentes e de ter copiado código utilizado em diferentes equipamentos. O caso acabou por ser abandonado, na sequência de um acordo extrajudicial, mas, depois de a empresa chinesa ter proclamado a sua inocência na sequência desse desenlace, a Cisco divulgou excertos de um relatório independente apontando no sentido da pirataria..A empresa esteve também envolvida, como acusadora e acusada, em disputas de propriedade industrial com a extinta empresa norte-americana Motorola..E, desde 2014, enfrenta uma ação da T-Mobile US, segundo a qual funcionários da empresa chinesa roubaram - entre 2012 e 2013 - componentes do Tappy, um robô de teste de smartphones, diretamente das suas instalações, em Bellevue, Washington, tendo ainda copiado o design e o software do equipamento, para o replicar..Condenada por um tribunal de júri, em 2017, a indemnizar a empresa norte-americana em cerca de quatro milhões de euros, a Huawei ainda não desistiu da batalha jurídica, mas este caso, associado aos anteriores e a uma declarada guerra comercial entre os Estados Unidos e a China, levou a que a sua atividade naquele país se tornasse inviável..Questões de cibersegurança.Os alertas de que a empresa chinesa - e os seus equipamentos e redes - possam constituir também um risco em termos de segurança e proteção de informação pessoal, devido à sua alegada dependência do governo de Pequim, não podem ser dissociados desta guerra comercial..É um facto que estes existem desde que a empresa iniciou a sua expansão internacional. A Índia, por exemplo, começou por bloquear vários negócios da Huawei no país invocando a ligação do fundador da empresa ao Exército de Libertação Popular e ao governo chinês. E nos Estados Unidos já há relatórios nesse sentido há pelo menos uma década..Mas, na realidade, essa ligação é ambígua. O facto de o pai de Ren Zenghfei ter trabalhado para o Kuomintang, partido inimigo dos maoistas, durante a ocupação japonesa da China, não lhe facilitou propriamente o percurso na China comunista. Apesar de ter sido um dos técnicos mais inovadores ao serviço do Exército de Libertação Popular, Zenghfei terá mesmo sido impedido de se juntar ao Partido Comunista Chinês durante grande parte da sua ligação ao exército. E em 1982 acabou por deixar o serviço das forças armadas no âmbito de uma significativa redução de pessoal. Atualmente, no entanto, é membro do partido e não há dúvidas de que a empresa - onde já não tem funções executivas - é uma das porta-estandartes do país..A Huawei tem tentado contrariar essa imagem. Investiu, por exemplo, num centro de cibersegurança destinado a verificar e comprovar a fiabilidade dos seus equipamentos. .Os alertas dos Estados Unidos continuam, no entanto, a ser levados bastante a sério pelos seus aliados. Sobretudo desde que estes aprovaram, em janeiro do ano passado, o Defending US Government Communications Act, que baniu de todos os serviços governamentais o uso de equipamentos fabricados pela Huawei e pela também chinesa ZTE, seguindo-se os testemunhos perante o Senado de seis diretores de agências de segurança do país confirmando a "profunda preocupação" com os riscos causados pela disseminação das tecnologias destas empresas nas redes de comunicação do país..Os alertas vão além do simples roubo de informação. Alguns especialistas apontam mesmo para o risco de estas empresas tecnológicas chinesas poderem, num cenário de conflito, recorrer aos seus equipamentos para comprometer o funcionamento de alguns serviços essenciais norte-americanos..Já os críticos destas hipóteses contrapõem com exemplos recentes de violações de segurança e alegados usos indevidos de informação mas envolvendo empresas norte-americanas, nomeadamente o Facebook..Uma detenção que soou a declaração de guerra.O exemplo definitivo de que os Estados Unidos estão a levar esta questão muito a sério foi a detenção no Canadá, em dezembro do ano passado, a pedido das autoridades norte-americanas, de Meng Wanzhou, vice-presidente da Huawei e filha de Zenghfei. Oficialmente, as diligências, pedidas por um tribunal de Nova Iorque, nada terão que ver com a disputa comercial, prendendo-se ainda com o processo movido à Huawei pela T-Mobile US e com suspeitas de que a empresa chinesa, da qual Wanzhou é diretora financeira, terá utilizado bancos norte-americanos para violar as sanções comerciais ao Irão..Mas o facto de esta detenção ter acontecido no mesmo dia em que a China e os Estados Unidos tinham dado início a uma nova ronda negocial, e num país - o Canadá - onde a comunidade chinesa na diáspora é particularmente numerosa e influente, só serviu para aumentar a irritação de Pequim e demonstrar até que ponto chegou esta disputa internacional..Uma coisa é certa: a detenção foi completamente inesperada. Quer para Pequim quer para a Huawei. Basta recordar que outra filha de Zenghfei, Annabel Yao, de 20 anos, era (e ao que tudo indica continua a ser) estudante da Universidade de Harvard onde, além de integrar a companhia de bailado local, estuda Engenharia Informática..A China reagiu duramente à detenção de Wanzhou - cujos advogados continuam a combater a deportação para os Estados Unidos, depois de uma primeira decisão nesse sentido. Recentemente, Robert Schellemberg, um canadiano que cumpria 15 anos de prisão por tráfico de droga na China, foi novamente julgado, recebendo a pena de morte..Lisboa, porta da Europa.É neste contexto que se explica a vinda a Portugal do presidente da Comissão Federal de Comunicações dos Estados Unidos (FCC), Ajit Pai. Numa conversa com jornalistas em Lisboa, na semana passada, o líder da autoridade de comunicações norte-americana, uma escolha pessoal de Donald Trump para o cargo, justificou a sua visita - vindo de uma conferência em Barcelona - com o objetivo de "partilhar informação útil para os nossos parceiros portugueses, especialmente num assunto tão importante como a segurança nas telecomunicações"..Mas o embaixador norte-americano, George Edward Glass, dificilmente poderia ter sido mais direto, informando existirem conversações com o governo português e que "ainda não está fechado" o acordo entre a Huawei e a Altice para a implementação das redes 5G em Portugal, lembrando o papel de Portugal na NATO e assumindo que a concretização desse protocolo pode ameaçar as relações bilaterais entre os países.."Fomos muito claros com os nossos parceiros de segurança de que devemos proteger as nossas telecomunicações críticas", avisou. "A América está a pedir a todos os parceiros para estarem vigilantes e para rejeitarem qualquer projeto que comprometa a integridade das nossas comunicações ou o nosso sistema nacional de segurança.".Porque é que Portugal importa? Em primeiro lugar convém frisar que esta mensagem não foi passada apenas ao governo português. A Austrália e a Nova Zelândia são exemplos de países que decidiram suspender a implementação de tecnologia fornecida pela Huawei. E há outros países europeus a avaliarem as relações comerciais com aquela empresa. Nomeadamente, no Reino Unido, a BT (ex-British Telecom), que já teria acordado com a empresa chinesa a construção e a instalação de dezenas de antenas de elevada potência que estarão na base da sua futura rede 5G, informou estar a avaliar os alertas de segurança, apesar de também ter dito não ter indícios que os confirmem..Mas Portugal tem sido, nos últimos anos, um dos países mais entusiásticos a testar tecnologias inovadoras que depois se generalizam. E é também um dos países europeus onde o capital chinês - da energia à banca, passando pela saúde - mais peso tem. Características que o tornam uma potencial porta de entrada através da qual a Huawei se poderia afirmar definitivamente como o principal parceiro das empresas comunitárias nas redes 5G..O anúncio da parceria entre a Huawei e a Altice, recorde-se, foi um dos pontos altos da visita a Portugal do presidente Chinês Xi Jinping, em dezembro. E o seu eventual cancelamento, por pressão dos Estados Unidos, será sem dúvida mal recebido por Pequim. O que significa que, faça o que fizer, o país dificilmente evitará ver afetada sua relação com um destes gigantes..Para já, o PSD anunciou que quer ter acesso ao memorando de entendimento entre a Meo (operadora detida pela Altice) e a Huawei, com a vice-presidente da bancada social-democrata, Rubina Bernardo, a assumir "muita preocupação" com as objeções dos "aliados naturais" de Portugal. .A empresa, numa declaração enviada à Agência Lusa, afirmou-se "determinada" em levar a cabo o protocolo, garantindo que "não permite e nunca permitirá a existência de qualquer partilha indevida de dados através dos seus equipamentos"..As redes 5G prometem revolucionar o mercado das telecomunicações. Com velocidades de ligação dezenas de vezes superiores às atuais, irão não só melhorar o desempenho dos atuais equipamentos móveis como potenciar o desenvolvimento de outros, desde drones de entregas a automóveis sem condutor. Quem controlar esta tecnologia controlará muito do que fará o mundo mover no futuro próximo.