Em França, nenhum escritor vende mais do que uns milhares de exemplares de um romance se não tiver o Prémio Goncourt por trás, um escândalo... ou uma previsão que se concretiza. Essa tem sido a receita que Michel Houellebecq repete há vários livros, desta vez com uma previsão da violência dos coletes amarelos, tanto assim que o seu editor já mandou imprimir mais 50 mil livros após uma tiragem inicial pouco habitual de 320 mil, e decerto irá imprimir mais e vender direitos de autor a um valor mais elevado e para países aonde a febre Houellebecq ainda não tenha chegado. Um verdadeiro terrorista literário que seduz o mundo..O novo romance do autor francês chama-se Serotonina (Sérotonine), o nome de uma substância que inibe a violência, equilibra o desejo sexual, regula a angústia e a ansiedade, ou seja, tudo o que enche as quase quatrocentas páginas do mais recente romance de Houellebecq, lançado na semana passada em França. Basta ler o artigo da revista The Atlantic, em que as opiniões do escritor vertidas em Serotonina surgem explicadas sob todos os ângulos e, principalmente, com laivos de alguma inveja porque o autor escreveu um ensaio para uma outra publicação, a Harper's Magazine, em que elogiava Donald Trump e criticava a União Europeia..O facto de um escritor francês ser notícia nos dois lados do Atlântico não é coisa fácil, pois os americanos são bastante redutores quanto a lerem autores estrangeiros - principalmente franceses. Houellebecq consegue o feito e até o Huffington Post coloca no seu site com um fait divers provocado por Serotonina, o de Houellebecq se ter enganado na citação do álbum dos Pink Floyd Atom Heart Mother e escrever que a capa com uma manada de vacas pertence ao disco Ummagumma. Um pequeno caso, menor do que o de já ter sido acusado de copiar citações da Wikipédia nas páginas dos seus livros..Acertar antes da história.O certo é que o lançamento do romance de Houellebecq volta a acertar no timing político e social. Se o anterior, Submissão (800 mil exemplares vendidos), se "beneficiou" do ataque terrorista ao jornal Charlie Hebdo, em que ele era a capa da semana, Serotonina chega às livrarias em plena guerra dos coletes amarelos nas ruas de França, do Brexit a agitar os Estados membros e da emergência da supremacia da extrema-direita em vários parlamentos europeus. Questões que são sintomas do mal-estar que ataca o protagonista de Houellebecq, o senhor Florent-Claude Labrouste, um engenheiro agrónomo que faz parte dos quadros do Ministério da Agricultura..Poderia ser um protagonista com o potencial de outros que Houellebecq já inventou e construiu, com afirmações polémicas a acompanhar: tráfico sexual na Tailândia: "A prostituição, nada contra se for bem paga enquanto profissão"; religião: "Só um cretino acredita num só deus"; feminismo: "Considero as feministas umas parvas"; islamofobia: "A religião mais estúpida é o islão"; apoiante de Trump: "É um dos melhores presidentes americanos que já conheci"... Isto para não falar de acusações de racismo e de fazer propaganda das ideias políticas, filosóficas e morais abstrusas que defende em diálogos na boca dos personagens. Uma coisa é certa, nunca lançou nos últimos anos um romance que não fosse seguido de escândalo..Em Serotonina a situação é diferente e há um certo consenso na opinião francesa de que desta vez optou por "regressar à literatura". É o que refere uma das primeiras críticas ao romance. Então, o que provoca o alarido em torno de Serotonina ainda o livro não tinha chegado às livrarias? É que o engenheiro agrónomo de 46 anos, que vive com uma japonesa com menos vinte anos, é um mártir da derrocada da civilização francesa..O que torna Serotonina tema de todas as conversas - sim, este romance consegue o que raramente já acontece - é que Houellebecq antecipou os protestos sociais como os do género dos coletes amarelos, que ao tempo da escrita do livro seriam acontecimentos imprevisíveis, e torna-se um vidente na leitura da vida francesa antes de acontecer..Tudo começa com o protagonista que está na mó de baixo, tanto ao nível físico como moral, devido à convulsão social com que é obrigado a conviver em França e não fosse um medicamento, o Captorix (espécie de poção mágica que lembra a do druida Panoramix), que provoca a produção de uma hormona (a serotonina), a sua fuga à realidade poderia resultar em algo pior do que é narrado ao longo do livro. O protagonista Labrouste está deprimido com uma "Paris infestada de burgueses ecológicos e uma Baixa Normandia em que os agricultores se suicidam para fugir à legislação da União Europeia..Serotonina, no entanto, tem sido considerado como o livro em que Houellebecq abandona a sua narrativa habitual dos últimos livros e "dá lugar à possibilidade do amor entrar na história". Nada que evite críticas ao romance, como se pergunta num podcast no site da revista L'Obs, onde é questionado: "Será necessário ler Serotonina, de Michel Houellebecq?".Segundo a sinopse da editora Flammarion - além de oferecer 36 páginas para leitura -, o que Serotonina trata "é da história de um homem depressivo, que lamenta ter perdido a libido porque vive numa região da Baixa Normandia onde os agricultores estão em revolta constante". A sinopse desvenda mais do pensamento de Houellebecq, na primeira pessoa: "Os meus conhecimentos são limitados. Acredito no amor." Valoriza ainda o novo estágio do autor: "O narrador de Serotonina apoiaria sem reserva a crítica a uma França que desbarata as suas tradições, banaliza a vida nas cidades e destrói o campo com tanta revolta.".De arma em punho.Houellebecq não dá força apenas à ira do engenheiro agrónomo de forma leviana, antes coloca-o a contracenar com vários personagens, como o caso de um alter ego do protagonista, um agricultor aristocrata em busca dos valores da juventude que vê destruídos..Quanto ao protagonista, Houellebecq usa a técnica habitual: o seu herói é uma pessoa desiludida, tem encontros sexuais avulsos e descritos de forma pornográfica, acompanhados de comportamentos desviantes que são defendidos pela monotonia das relações entre franceses. Só que, desta vez, Houellebecq faz as vezes de um sismógrafo - como o referem em França - sobre a realidade dos protestos que atropelou o seu país nas últimas semanas antes do lançamento do romance. É o caso da referida contestação dos coletes amarelos, que surge no final do livro sob a forma de combate às políticas do governo. Pelo meio, ataca posições de feministas e jornalistas, arrasa intelectuais e escritores..Como se toda esta crítica não fosse suficiente, Michel Houellebecq põe uma arma nas mãos do protagonista, que indicia um comportamento possível para muitos dos que observam os noticiários e não são capazes de conter a ira perante o que acontece em e à França. Uma contradição face à perspetiva que vale a pena reter neste novo Houellebecq, o facto de ele próprio dizer que o seu melhor cenário literário é quando trata de temas sobre o amor..Emoção que não deixa de introduzir no protagonista ao prendê-lo a relações com mulheres muito jovens, além da japonesa há outras: Kate, uma estudante dinamarquesa que o satisfez sexualmente durante vários meses, e Camille, de 19 anos, com quem manterá uma relação durante cinco anos até a trair. Desiludido, pega nas economias, 700 mil euros, e exila-se durante alguns meses num hotel em que os fumadores são permitidos, antes de regressar à Normandia e refugiar-se numa cabana..A trama deste Serotonina não espanta a crítica francesa, que se divide entre o aplauso e o desfazer do romance. Nestes últimos, há quem diga que é mais do mesmo, pouco inovador, que o protagonista tem o mesmo destino de outros anteriores e soa a falso. Ou quem considere que Houellebecq ao querer matar na narrativa o filho que Camille teve sem o conhecimento de Labrouste, porque terá herdado o seu coração, faz do engenheiro agrónomo alguém sem ligação à realidade e demasiado repetido nos seus livros..Principalmente ao teimar na transformação de homens alegadamente integrados socialmente em fugitivos desesperados, que se detestam e não têm soluções para fugir à realidade que já não aceitam. Essa é uma condição ideal, acusam os que contestam a estrutura cada vez mais repetida dos romances de Houellebecq, para colocar o seu niilismo nos protagonistas e estar a vulgarizá-los..Há mesmo uma contestação à inutilidade das situações criadas para os seus personagens no que toca ao deboche, achando que a introdução de duas cenas de sexo com animais e um episódio de pedofilia seriam desnecessárias. Ou seja, tudo muito houellebecquiano, forrado com uma prosa provocante e que para ser lida o leitor não precisa de fármacos para se entusiasmar. Afinal, Michel Houellebecq já acostumou os que leram os seus sete romances a mergulhar numa sociedade decadente e onde não há futuro..Michel Houellebecq é atualmente o escritor francês mais lido no mundo. Se em Portugal a tradução só sairá em junho, em Espanha foi publicado pouco após o lançamento francês, dia 4, com uma tiragem de 25 mil exemplares, bem como na Alemanha, 80 mil, e Itália. A tradução para inglês só acontecerá em setembro..Em Paris, tem sido o livro mais vendido e mesmo em Niort, a cidade normanda que aparece no romance e é descrita como a "mais feia das cidades", os leitores correram às livrarias. Diga-se que a tiragem inicial em França foi de 320 mil exemplares enquanto o normal para um romance com sucesso previsível não ultrapassa os cinco mil..Além dos casos em volta de Serotonina, nesta semana foi também notícia a adaptação para televisão do romance Submissão pelo realizador Guillaume Nicloux, com quem Houellebecq já colaborou em quatro filmes.