Henrique Burnay: "Vem aí muito dinheiro. O prejuízo de gastarmos mal os fundos seria enorme"

Especialista em assuntos europeus e professor na Universidade Católica, Henrique Burnay considera positivo o acordo saído do Conselho Europeu para recuperar as economias da UE. Frisa que vem aí muito dinheiro, mas que deverá ser muito discutido onde será aplicado porque o risco de usar mal essas verbas prejudicará muito o país.
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Este acordo que saiu do Conselho Europeu após cinco dias de negociações é positivo para a União Europeia?

É obviamente positivo, o que não quer dizer que não pudéssemos querer que fosse melhor.

Em que poderia ser melhor?
Positivo se compararmos com o que tínhamos antes que era não ter acordo nenhum, melhor se estivesse mais próximo da proposta inicial da Comissão Europeia.

Mas já era expectável que a proposta da Comissão não iria passar tal e qual foi feita.
Era, mas se não tivesse existido proposta da Comissão, dos alemães e franceses nem isto havia.

Nestas negociações, a posição dos chamados países "frugais" - Holanda, Áustria, Dinamarca e Suécia - foi o grande entrave a essa aproximação?
Perceberam-se aqui algumas coisas. A primeira, e que não era evidente no início, foi que com o desaparecimento do Reino Unido, a França e a Alemanha apresentaram a sua proposta como um dado adquirido, quando antes teriam conversado com o Reino Unido. Estavam convictos que levariam as coisas a bom porto e rapidamente vários países liderados pela Holanda, que costumavam tirar partido das posições do Reino Unido, tiveram desta vez de mostrar a cara e foram muito mais combativos e visíveis. E perderam capital de empatia política, de resto como o Reino Unido perdia cada vez que havia estas negociações.

Será uma constante a partir de agora a UE dividida entre três blocos, os "frugais", a Alemanha e França, e os outros Estados-membros?
Dependerá muito dos problemas que estejam em discussão, mas neste momento estes blocos parecem estáveis. Economias mais liberais do norte, tenham elas governos socialistas ou de centro-direita - basta ver que três destes governos do norte são socialistas (a Finlândia, a Dinamarca e a Suécia) -, como era o Reino Unido mesmo com governo do Labor; economias mais frágeis ou mais dependentes do dinheiro público no sul; um bloco a Leste maioritariamente em crescimento económico e de contexto democrático duvidoso e depois o eixo franco-alemão, que voltou a funcionar.

António Costa considerou o acordo um "passo de gigante no projeto europeu". Também entende que é assim?
Acho que sim. Há aqui uma alteração que é muito substancial que é a emissão de dívida por parte da Comissão Europeia. É uma alteração muito grande na estrutura da União Europeia, com profunda consequência porque, provavelmente, vai implicar novos recursos próprios da Comissão que deverá passar por novos impostos. São alterações muito estruturais na União Europeia. Não surpreende que países ou pessoas que resistem a mais federalização ou maior integração não gostem dessa ideia. Não acho que tudo isto seja cinismo ou contabilidade dos diferentes governos, nomeadamente a norte. Os populistas da Holanda, como o Partido pela Liberdade (PVV), de Geert Wilders, dizem que devia ser muito menos dinheiro e os populistas do sul, no caso da Itália que são os mais importantes, Salvini por exemplo, dizem que isto é muito pouco, que era preciso ser muito mais. Este ruído de fora fez pressão e ruído sobre os governos. Isto é, Conte tinha de chegar a Roma mostrando que tinha conseguido muito para responder a Salvini e Mark Rutte tinha de chegar a Haia e mostrar que não tinha sido assim tanto para responder a Geert Wilders. Isto é o facto de vivermos em 27 democracias, umas melhores do que as outras.

O Fundo de Recuperação de 750 mil milhões de euros e o quadro plurianual aprovado responderá às necessidades de recuperação das economias europeias tão devastadas pela pandemia?
É difícil responder a essa pergunta porque ainda estamos a começar a medir. Países como nós que dependemos muito do turismo ainda vamos medir o impacto que vai ter na nossa economia, ainda estamos para ver como vai ser este verão, para não falar inverno e do verão do ano que vem. Sabemos duas coisas, acho eu que não sou economista, que ao contrário da anterior crise esta foi súbita, a outra tinha sido gradual, e acertou em cheio no setor por onde estávamos a fazer a recuperação económica. Não é difícil imaginar que isto tenha uma consequência muito violenta.

O facto de ser uma crise transversal a todos os países ajudou a alavancar esta resposta, talvez tardia, mas mais favorável?
Eu acho que a resposta foi bastante rápida. Temos de compreender que a União Europeia não são os Estados Unidos, não é uma federação e a disponibilidade dos líderes europeus para estarem cinco dias a fazerem diretas é de assinalar. Hoje nem miúdos de liceu fazem isso quanto mais líderes europeus e conseguiram chegar ao acordo e garantiram que o faziam antes do final do mês. A velocidade e a vontade disto são significativas. O risco da pandemia é simétrico porque pode cair em cima de um país que não se confrontou com ela com grande violência, mas não foi simétrico no impacto que teve até agora nos países. Há os que tiveram uma crise sanitária mais forte do que outros e outros que tiveram um impacto económico imediato porque foram forçados a um lockdown mais forte do que outros e não há aqui o risco moral, que é coincidiu que a pandemia teve mais impacto sanitário e por consequência teve mais económico em economias que já estavam mais frágeis. Daí que não tenha havido completa simetria por isto, os italianos do ponto de vista sanitário tiveram um problema mais grave, mas o nosso lockdown foi muito pior em termos económicos. As fábricas continuaram a trabalhar, os restaurantes e hotéis é que pararam. Portanto, o nosso lockdown teve um impacto económico mais violento do que o lockdown na Dinamarca.

O novo mecanismo de fiscalização da aplicação dos fundos agora acordados é razoável? Não limita os governos nos seus projetos e políticas?
Este é um dos pontos que ainda não aprofundei. Mas é compreensível que se queira controlar, é muito complicado fazê-lo à priori para despesas que têm de ser comprometidas até 2023 e executadas até 2026 e que o prejuízo de gastarmos mal os fundos seria enorme. Em abstrato, o interesse de fiscalizar é mais nosso do que da União Europeia.

Era importante fazer a ligação entre a atribuição dos fundos e o Estado de direito, ou seja aos países consoantes o respeito pelas regras democráticas?
Em relação aos fundos da coesão devem ser fiscalizados na utilização, mas que a penalização das regiões por causa da questão do Estado de Direito tenho algumas dúvidas. E dou um exemplo, o homem que ia ganhando as eleições na Polónia era presidente da câmara de Varsóvia e certamente que os dinheiros da coesão o ajudaram a fazer obra e a ficar conhecido na Polónia. Às vezes estes dinheiros da coesão beneficiando as economias nacionais dão oportunidades de valorizar até as oposições. Neste caso especifico que é uma quantidade enorme de dinheiro, desembolsado de uma forma muito rápida e não forem aplicados controlos o risco é grande. Tenho dado o exemplo da digitalização e dos media, se a Hungria amanhã disser que para digitalizar a sua economia vai apoiar os meios de comunicação social e só vai apoiar aqueles que gosta e obviamente secar as fontes aos outros há aqui um risco enorme. E percebo que alguém diga não é para isto que este apoio existe. Agora se se deixar de fazer chegar o dinheiro às empresas na Hungria que se queiram adaptar às exigências da transição verde e que queiram passar a utilizar renováveis, etc, porque o governo é o que é, eu só vou aumentar a dependência destas empresas dos governos. Não se deve bloquear todos os fundos, mas a utilização de todas estas verbas massivas parece ter aqui um mecanismo de controlo.

Não considera contraditório o Quadro Financeiro Plurianual cortar algumas verbas para a inovação, a digitalização e até a ciência numa altura como esta onde se esperava mais investimento?
Esse é um dos aspetos mais errados do resultado do Conselho Europeu, quer do ponto de vista global quer na perspetiva que quem esteve a fazer mais finca-pé, que são os países "frugais". Porque são fundos competitivos, em que até os países que mais estão a precisar conseguem aceder menos porque lhes falta a capacidade de ir buscar estas verbas. Portugal hoje vai buscar mais ao Horizonte 2020 do que foi ao programa anterior, mas ainda vamos buscar menos do que deveríamos ir. Por isso não consigo perceber, são competitivos, financiam o que de melhor se faz na Europa, são muito menos sujeitos a manipulações pelos governos nacionais. O que me faz achar que na verdade os "frugais" estavam mais preocupados com os seus assuntos internos do que com a utilização dada ao dinheiro.

O plano de recuperação económica nacional tem de incidir muito em investimento reprodutivo e fugir mais ao turismo?
Essa agora é que é a nossa grande questão nacional, Vem ai manifestamente muito dinheiro. Algum é emprestado, o que significa que é uma dupla razão para ser bem usado porque tem de ser pago, e a maior parte dele é num curto espaço de tempo. Temos de ter uma boa discussão sobre o que achamos que torna isto reprodutivo, temos de perceber que somos responsáveis pelo que fizermos com este dinheiro. Temos de nos lembrar que se chama Next Generation por alguma razão, isto não é apenas para resolver os problemas de hoje e isso implicava uma grande discussão.

A pandemia é má por todas as razões, mas terá a virtude de pôr a Europa no seu conjunto e Portugal em particular a pensar como é o seu tecido produtivo? Dependemos da produção na China e do turismo, agora em crise, e as economias ficaram muito debilitadas à conta disso.
É verdade, mas há o perigo de ao querer, ao abrigo da resiliência industrial, ter uma economia toda desenhada a partir do centro, em que um poder público diz o que temos de produzir na Europa. Por muito que a Comissão Europeia ou um dos 27 governos queira ou não são eles que fazem fábricas de medicamentos. Podem existir incentivos, podem existir mecanismos para incentivar mas não cabe aos governos decidir onde é que cada um vai investir. O mesmo problema no turismo, o problema não é o de todas as pessoas que trabalham no setor, o problema é a falta de todas as outras coisas. Tem de se ter um cuidado de não achar que agora que, de repente, a partir do centro se desenha o futuro da economia, porque isso não costuma correr muito bem.

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