Há muita gente na rua. "Se não temos balas para combater o inimigo, temos de ir para os abrigos"

Para o presidente do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas, o país está no bom caminho, mas deverá endurecer as formas de luta contra o covid-19. Fausto Pinto é perentório: quarentena obrigatória é a única maneira de controlar o aumento de novos casos em Portugal e contornar os exemplos de Itália e Espanha. Entre nós, já existem mais de mil infetados e seis mortos.
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"Quando vou para o hospital ainda vejo muita gente na rua", diz Fausto Pinto, o presidente do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas, que trabalha no Centro Hospitalar Lisboa Norte. Portugal entrou em estado de emergência à meia-noite desta quinta-feira e assim permanecerá até, pelo menos, dia 2 de abril, se este estado não for prolongado. Foram impostas limitações à circulação, que encontram exceções em atividades laborais e noutras situações essenciais à vida como ir comprar comida ou medicamentos, arejar ou passear o cão, desde que isto não seja feito em grupo e mantendo sempre o distanciamento social.

O também diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, Fausto Pinto, apoia as medidas, mas defende que é preciso ir ainda mais longe para que a curva epidemiológica do novo coronavírus em Portugal não acompanhe a de Itália - o país europeu com maior número de casos (47 021, nesta sexta-feira) e mortos (4032, mais 784 do que na China, onde o surto começou no final do ano passado). "Houve um decreto de estado de emergência, mas é um estado de emergenciazinha. Ainda existe um conjunto vasto de atividades que não deviam acontecer. Claro que não podemos parar completamente o país e temos de pensar na economia, mas sem saúde não há economia", refere.

Portugal, segundo Fausto Pinto, "está na fase inicial desta pandemia e de acordo com as previsões irá começar a aumentar exponencialmente os casos. Para travar esta curva são necessárias medidas de contenção máxima e não apenas contar com a boa vontade das pessoas, que é fantástica, mas não chega". Os primeiros infetados foram confirmados no dia 2 de março e desde então que quase todos os dias o país tem aumentado a um ritmo entre 30% e 50% as notificações face ao dia anterior. À hora de fecho desta edição, há 1020 casos e seis mortes, confirmadas pela Direção-Geral da Saúde.

"Se não temos balas para combater o inimigo, temos de ir para os abrigos", afirma o presidente do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas, como quem diz que devemos todos isolar-nos em casa. Vai mais longe: "Deveria ser decretada quarentena obrigatória. O mais extensa possível. Mesmo assim não resolveremos o problema, mas vamos conseguir diminuí-lo". Quando fala em todos, quer mesmo dizer todos. Não apenas a população de risco, que inclui as pessoas com mais de 70 anos, os cidadãos com doenças crónicas, oncológicas ou com o sistema imunitário desprotegido e os profissionais de saúde, os soldados na linha da frente, como descreve Fausto Pinto.

Durante a apresentação das medidas delineadas em Conselho de Ministros, o primeiro-ministro António Costa declarou que em situação de quarentena devem ficar as populações de risco, os infetados com covid-19 e os suspeitos de estar infetados. Para todos os outros pede-se isolamento, que privilegiem o teletrabalho e que só deixem o lar quando não houver alternativa. Mensagem reforçada pela diretora-geral da Saúde, em conferência de imprensa, nesta sexta-feira: "É obrigatório que as pessoas doentes e os idosos fiquem em casa. Não é facultativo." Graça Freitas chamou ainda a atenção dos lares que recebam, nos próximos tempos, novos utentes para, sempre que possível, colocar estas pessoas em quartos isolados, evitando assim o contacto com os outros idosos depois de terem vindo de diferentes ambientes.

Os mais velhos inspiram maior preocupação e cuidado, uma vez que são, em todo o mundo, as pessoas mais afetadas e principalmente os casos que originam mais facilmente mortes, como aconteceu em Portugal, onde já foram declarados oficialmente seis óbitos por covid-19 e onde há 147 doentes com mais de 70 anos.

Uma mensagem também muito repetida pelo diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom, que, no entanto, nesta sexta-feira mudou o público-alvo: "Apesar de as pessoas mais velhas serem as mais atingidas, os jovens também não são poupados. Não são invencíveis. Este vírus pode pôr-vos a todos durante semanas num hospital ou até matar-vos. Mesmo que não adoeçam, as escolhas que fazem sobre até onde podem ir podem fazer a diferença entre a vida e a morte de alguém", alertou . "Isto não é normal. Temos sistemas de saúde que estão a colapsar."

É mesmo essa a preocupação do médico Fausto Pinto que considera que o nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS), tal como outros, não está preparado para receber um aumento de casos exponencial de covid-19. "A nossa curva [de casos] está muito parecida com a de Itália e com a de Espanha. Um bocadinho menos inclinada, mas está. E nós temos a vantagem de ter duas, três semanas de diferença", aponta, insistindo na necessidade de seguir medidas mais próximas às adotadas pela China, por Macau ou pela Coreia do Sul, que conseguiram conter a pandemia. Nomeadamente, no caso da Coreia do Sul, através da democratização de testes de despiste. Em Portugal, neste momento, estão disponíveis nove mil testes PCR (as análises biológicas utilizadas para detetar a presença do novo coronavírus) e são dirigidos à população de risco e aos casos suspeitos.

Jorge Torgal, especialista em saúde pública, professor catedrático da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa e um dos membros do Conselho Nacional de Saúde Pública, faz uma interpretação oposta sobre a aceleração no contágio de Portugal por comparação a Itália e a Espanha. "Não é possível comparar a agressividade crescente que tem a curva espanhola e a italiana com os casos em Portugal. Os nossos resultados são muito bons e refletem as medidas tomadas. Nós temos um número pequeno de mortes, por exemplo. É verdade que os casos vão continuar a crescer. O que é importante é que não cresçam exponencialmente. Nesta sexta-feira aumentaram 29%. É ótimo." O que seria uma subida preocupante? "O que me preocupa é o número de doentes que exigem cuidados intensivos", responde Jorge Torgal.

Para o especialista, as medidas adotadas pelo governo "são claramente suficientes". "Não me preocupa que haja gente na rua. Preocupa-me que haja ajuntamentos e preocupa-me a baixa atividade económica, que também não faz bem à saúde", diz.

São duas visões diferentes. Para Fausto Pinto, "isto tem de ser encarado como uma guerra. E o Ministério da Saúde deve ser o ministério da guerra. Não vale tomar medidas tarde de mais. Isto não é Pedrógão [uma das zonas mais afetadas pelos incêndios de junho de 2017, onde morreram mais de seis dezenas de pessoas], onde ninguém sabia que ia haver o fogo. Aqui, já sabemos os resultados das medidas aplicadas pelos outros países".

"O grande desafio é como intervir na desobediência"

NUNO CAROCHA, Porta-voz da PSP

Qual é para a PSP o maior desafio do estado de emergência?
O maior desafio para a PSP é a consciencialização para a necessidade de as pessoas terem de adotar, por um período considerável, que não se sabe quando vai acabar, novos comportamentos. Desde o distanciamento social ao qual a nossa cultura não está habituada, à redução ao mínimo de saídas de casa. O grande desafio para todos nós é como intervir quando se verificar a não observância destes comportamentos. Essa intervenção terá de ser sempre numa perspetiva conciliadora, informativa e de sensibilização, remetendo para último recurso os instrumentos legais que estão ao nosso dispor.

Que avaliação fazem do comportamento que têm tido as pessoas?
Extremamente positiva. Sensibilizámos pessoas para a redução das saídas do domicílio e já tivemos de solicitar a bares que passassem a fechar às 21.00. A reação das pessoas foi, num primeiro momento, de surpresa, mas depois de estrita observância dos pedidos e indicações que lhes tinham sido dados pelos agentes. A nossa perceção é que a esmagadora maioria da população está predisposta a seguir as nossas indicações e da DGS.

Quais foram os principais problemas detetados e como poderão ser ultrapassados?
Até agora o maior problema tem sido a desinformação. As redes sociais difundem muita informação que não é verdadeira, quer relacionada com medidas preventivas contra o novo coronavírus quer sobre alegados crimes que estão a ocorrer (como burlas a idosos). Outro problema será, certamente, que a saturação das pessoas depois de tantos dias em casa as leve a assumir comportamentos de risco. É preciso encontrar soluções proativas e sensibilizadoras.

Com Valentina Marcelino

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