Se não fosse mágico o que acha que estaria a fazer agora? Não faço a mínima ideia! Já pensei muitas vezes naquilo que me atrai no que faço na magia sem ser a parte da magia em si. Estaria provavelmente numa profissão que me desse a oportunidade de fazer coisas diferentes constantemente. E é outro lado que me atrai naquilo que eu faço, que é a possibilidade de subir a um palco e trabalhar algo que é meu, que vem da minha mente. Por isso, acho que qualquer coisa que englobasse isso seria a minha segunda hipótese, embora não acho que tenha assim tanta piada. Nem sequer acho que poderia ser um humorista a tempo inteiro, gosto de usar o humor naquilo que faço, mas não a tempo inteiro. Mas gosto de contar histórias. Poderia ter ido por esse lado também um pouco, mas, de facto, a magia é algo que ultrapassa um bocadinho tudo isso e não tem substituto..Quem é o Hélder Guimarães? Sou eu! Não sei mesmo responder a essa pergunta. Sou um mágico, é a forma como me vejo, como me defino. Sou de Portugal, sinto-me muito português, mesmo vivendo nos Estados Unidos tento levar sempre isso um bocadinho nos textos que escrevo e nas experiências que vou contando em palco nos meus espetáculos. Gosto muito de criar momentos e acho que é das coisas que mais me atrai na magia, que a magia acontece aqui agora, com a outra pessoa, e esse momento que eu vivo com outra pessoa é sempre único, porque há sempre alguém diferente, porque o momento em si, mesmo que esteja planeado, tem sempre variáveis únicas em cada uma destas reproduções que faço. Às vezes até digo que gosto de ser um colecionador de momentos. Gosto muito de ler, gosto muito de ver espetáculos ao vivo, e acho que me definiria como um bom rapaz, talvez..Estava a dizer que é um colecionador de momentos. Diga dois momentos que o tenham marcado na vida. Um deles foi quando me sagrei campeão mundial de magia com cartas em 2006. Eu não estava na sala quando eles anunciaram os nomes, então todos os meus amigos que estavam sala, quando ouviram o meu nome, saíram a correr à minha procura, meteram-me contra uma parede a dizer "Ganhaste! Ganhaste!". O que eu me lembro mais é um momento a seguir, em que eu já tinha consciência do que estava a acontecer, de o meu pai ter chegado e ter-me dado um abraço como eu nunca senti antes ou depois. Foi um momento muito especial, esse abraço foi um dos momentos mais especiais da minha vida. Num tom completamente diferente e muito mais cómico, uma vez em que eu acabo de fazer um momento em que há uma transformação de uma carta noutra a reação da pessoa foi dar-me um estalo, tal foi a falta de capacidade que ela estava a ter de lidar com aquilo que tinha visto. E depois muitos momentos também de espetáculo, de criar um espetáculo..Como é que se iniciou no mundo da magia? E porquê as cartas? Comecei a fazer magia por influência do meu pai. O meu pai fazia magia como hobby, ainda faz hoje em dia, e eu, quando era mais novo, via-o fazer aquilo e chegou a um ponto em que ele me desafiou. Eu tinha três anos, ele ia fazer uma atuação para a minha turma no infantário, montámos um número de cinco minutos, coisas muito simples, e foi a minha primeira atuação. Num dos momentos dessa atuação eu mostrava uma caixa, a caixa estava vazia, eu fechava-a, passe mágico, abria-a e ela estava cheia de objetos, parte dos quais eram rebuçados. Então eu peguei nos rebuçados e atirei-os para a minha turma e fiquei o herói do infantário, durante um mês e tal para toda a gente era o rapaz que fazia aparecer rebuçados. E foi assim que começou a minha carreira. Obviamente, fui fazendo coisas muito mais simples até uma altura, 11 anos mais ou menos, em que aquilo já não me preenchia. Então deixei de fazer durante um, dois, três meses, e, ao fim de três meses, havia qualquer coisa que falhava... Voltei à área com vontade de fazer algo, mas sem saber o que era. E é mais ou menos nessa altura que aparece a questão das cartas de jogar, porque foi com 12, 13 anos que fui a Espanha e vi um espetáculo de um mágico - que ainda hoje é um dos meus mágicos favoritos, chama-se Juan Tamariz, é absolutamente inacreditável, um dos melhores mágicos do mundo de sempre - que era ele, um baralho de cartas, e muitas piadas, muito humor. Aquilo, de repente, fez um clique para mim e eu disse assim "há aqui algo muito puro e algo muito simples e algo muito acessível" e, ao mesmo tempo, a capacidade que o baralho de cartas tinha de multiplicar coisas diferentes e de nos transmitir experiências diferentes atraiu-me muito. Então foi naquele momento que eu soube que o meu caminho era por ali..E como é que se chega ao nível que o Hélder já alcançou? É como os músicos, que ensaiam muitas horas por dia? Acho que sim. Qualquer pessoa que chega a um patamar alto em qualquer área tem que ser obcecado, de uma forma obviamente positiva, mas tem que nos ultrapassar um bocadinho aquela questão de "eu tenho que fazer isto para chegar lá". Há ali uma paixão que acaba por guiar e por ser o catalisador para podermos passar muito tempo com um mesmo objeto, muito tempo a praticar, muitas horas a ler o que já existe, a aprender, a criar, a tentar perceber porque é que certas coisas funcionam melhor de uma maneira ou de outra, porque é que há pessoas que conseguem fazer certas coisas muito melhor que outras, até chegarmos a um patamar em que isso tudo é quase secundário. Obviamente que estamos sempre a evoluir, estamos sempre a crescer como artistas e espero, daqui a dez anos, olhar para trás e criticar as coisas que estou a fazer agora, porque estarei a fazer coisas das quais ainda estou mais orgulhoso do que aquelas que faço agora..O que o levou mudar-se para os Estados Unidos? Desafio, sobretudo. Tinha dois bons amigos lá que me disseram "a tua linha de trabalho, aquilo que tu gostas de fazer, acho que aqui poderia funcionar muito bem". Foi também um momento em que eu vivia em Portugal, mas passava nove a dez meses por ano fora. Alguma saturação também de tentar fazer coisas cá e ver o estereótipo daquilo que as pessoas achavam que a magia era condicionar o meu trabalho específico, que nada tem a ver com esse estereótipo. Acabou por ser uma uma série de condicionantes que me levou, mais do que mudar, porque na altura eu nunca pensei que iria lá ficar tanto tempo, foi "vou experimentar e logo se vê". Felizmente correu bem, não me arrependo e não estou a pensar voltar para cá a título definitivo. Quando cheguei lá começaram a abrir-se portas para fazer espetáculos ao vivo - para mim, posso ser um bocadinho romântico, a forma mais honesta de um artista ganhar a vida, um artista que faz espetáculos ao vivo, é pôr um espetáculo e o público paga bilhete e, se o espetáculo for bom, essas pessoas chamam mais pessoas e viver disso, viver simplesmente disso, acho que é uma coisa mágica para mim. Felizmente, nos Estados Unidos tive essa oportunidade. Sinto-me realizado porque posso fazer o tipo de trabalho que gosto, em condições boas e ter essa liberdade criativa que acho que toda a gente que está na arte deseja..Tem trabalhado em Hollywood. Como é que surgiram essas oportunidades e como tem sido trabalhar com estrelas de cinema? Um dos projetos foi o "Ocean"s 8". As coisas acabam por funcionar um bocadinho no registo de alguém me vê e está a trabalhar num projeto e chama-me para colaborar. Nesse caso em particular, eu estava com um espetáculo em Nova Iorque e a rodagem do filme estava a acontecer na zona de Nova Iorque e alguém que viu o espetáculo e estava ligado à produção decidiu entrar em contacto comigo a fazer uma pergunta específica sobre um tipo de batotice que se fazia nos anos 80 em Las Vegas, que eu por acaso conhecia. Na altura nem sabia que era o "Ocean"s 8". Tive uma reunião com os produtores e o realizador do filme, que me explicou "isto é uma sequela do "Ocean"s Eleven", com um cast todo feito de mulheres, as duas principais são a Sandra e a Cate, e há um momento do filme em que elas podem ter que fazer isto", e eu disse "sim, eu posso explicar". Inicialmente comecei a ter sessões com a Sandra Bullock, depois a Cate Blanchett chegou a Nova Iorque e começámos a ter sessões em conjunto. E então, não só lhes expliquei como é que algumas coisas funcionavam, e as pus a fazer na prática, mas também toda a psicologia que está por trás de porque é que estas coisas funcionam e como é que é possível enganar o outro, e também algumas técnicas de pickpocket, que fazia parte do guião do filme. E foi um processo muito engraçado, porque eu acabei por não só estar a fazer esse trabalho com elas, como ir às filmagens e até fazer alguma consultoria no guião. Eu sempre gostei do "Ocean"s Eleven", por isso para mim fazer parte daquele universo teve bastante piada..E qual é a sensação de ter estrelas como fãs, como o J.J. Abrams ou o Steve Martin? Como é que lida com isto? É estranho inicialmente, mas depois acaba por ser algo... É muito engraçado porque também tem a ver com a abordagem que cada um deles tem em relação à minha pessoa quando me conhece ou quando vê o espetáculo. Por exemplo, com o J.J. Abrams já tivemos longas conversas ao telefone sobre outros temas que estão ligados à magia. Com o Steve Martin foi um episódio muito engraçado a primeira vez que estive com ele. No final do espetáculo, ele estava na green room e quando eu entrei ele tinha uma garrafa de vinho para abrir e para servir. Eu não bebo álcool, mas achei que não ficava nada bem não beber com o Steve Martin, então bebi um bocado de vinho. Há momento em que somos assim surpreendidos, somos quase starstruck, mas as coisas depois acabam por normalizar. Desaparece o Steve Martin e está ali uma pessoa que está a falar connosco. Lembro-me da primeira vez que atuei para o Alejandro Iñárritu, que é um dos meus realizadores favoritos, e, de repente, fui convidado por alguém que me ofereceu como espetáculo privado para ele, ele adorou e começou a vir aos meus espetáculos. Mas, nesse dia, eu cheguei a uma sala onde era o Alejandro e dez dos colaboradores mais próximos, todos à volta de uma mesa, só comigo a contar histórias e a fazer magia, e a experiência na altura foi "eu estou aqui a trabalhar para um dos meus realizadores favoritos". Agora quando o vejo já não sinto isso, não quer dizer que não continue a adorar o trabalho dele, mas já falo com ele de outra maneira, é a tal coisa do hábito..E o Hélder já se sente uma estrela? Não. Eu sou muito conceituado no que faço e sou muito reconhecido pelo que faço, mas é um grupo muito pequeno. Já me aconteceu estar na rua e ser reconhecido. Uma vez fui a uma loja de gelados, estou a pagar, e a pessoa disse "não, este é oferta porque eu adorei o teu espetáculo". Já me aconteceram coisas destas, mas não é habitual, aquilo é um mercado gigantesco. Acabo por ter é o reconhecimento de uma classe artística muito específica que vive em Los Angeles, e as pessoas que seguem no meu trabalho. E essas, se calhar, veem-me como uma estrela, eu próprio não..E de repente surge a pandemia, que o Hélder acabou por ver como uma oportunidade, criando um espetáculo online, o "The Present", com público de todo o mundo. Como é que surgiu esta ideia? O "The Present" foi uma experiência muito engraçada, porque surgiu da necessidade de fazer algo, aliado com uma ideia que eu já tinha há anos na minha cabeça e que nunca tinha posto em prática porque nunca vi a motivação. Eu tinha esta ideia de enviar os objetos para as pessoas e remotamente eu guiá-las para elas nas suas próprias mãos fazerem magia. Só que qual é a motivação que alguém tem para fazer magia assim quando pode reunir-se na mesma sala? Não existe. Entretanto, surgiu a pandemia e lembrei-me "eu tenho aquela ideia de enviar os objetos às pessoas para as pessoas fazem magia nas suas próprias... agora este é o momento ideal". Simultaneamente, a Geffen Playhouse, que foi o teatro com quem eu fiz o "Invisible Tango", contacta-me e diz "estamos a planear uma série de vídeos muito curtos com artistas que têm estado aqui nos últimos tempos, gostávamos que nos fizesses um vídeo muito curto, só para continuarmos em contacto com os nossos seguidores, um vídeo muito curto, que seja positivo". E eu, ao fazer esse vídeo, mencionei que estava a preparar esta ideia e eles quiseram reunir comigo, quiseram saber mais, e foi aí que realmente começou o "The Present" como conceito. A primeira coisa que eles me falaram foi "mas qual é a história?", porque eles sabem que eu trabalho muito com a questão das histórias. E eu lembrei-me que quando era criança fui atropelado e passei um mês e meio em casa, em que estava, no fundo, numa quarentena. Nessa altura, desenvolvi uma proximidade com o meu avô e lembrei-me que esta podia ser a história ideal para contar no momento em que não sabemos o que fazer confinados em casa. Mas se eu contasse esta história talvez desse alguma esperança às pessoas e foi isso que aconteceu. Quando o espetáculo começava toda a gente estava em frente a um ecrã, quando o espetáculo terminava estávamos todos juntos, havia gente a chorar atrás de um ecrã por causa de um momento que estava a viver e da esperança que estava a receber. Tive e-mails e cartas, gente a enviar cartas para o Geffen a dizer que nem tinham percebido que precisavam de algo assim para conseguir ultrapassar, de forma positiva, o que estávamos todos a passar como Humanidade. E, obviamente, que o facto de a magia acontecer nas mãos das pessoas em casa era muito forte emocionalmente. É muito difícil explicar porque é que os projetos funcionam, mas definitivamente o "The Present" foi um espetáculo que acabou por ser maior do que a soma das partes e é daqueles projetos que vai marcar a minha carreira para sempre, porque eu nunca pensei que era possível fazer um espetáculo em que as pessoas atrás de um ecrã sentissem que estavam presencialmente com outras e comigo e isso foi uma surpresa inacreditável..Qual vai ser o próximo projeto? O projeto seguinte, infelizmente, ainda não posso revelar e a razão eu explico muito rapidamente. Apesar de ser eu a cara do projeto, existem mais partes envolvidas e eu tenho que ter o consenso de toda a gente para poder revelá-lo. Ainda não estamos nesta fase, acontecerá ou no final deste ano ou no início do próximo, tem muito a ver com a velocidade de desconfinamento nos Estados Unidos. Mas posso dizer que um dos projetos em que estamos a trabalhar é levar o "Invisible Tango", que fizemos em Los Angeles em 2019, para Nova Iorque, é um projeto que vai acontecer, é só uma questão de saber como e quando e esperemos que seja no próximo ano.. ana.meireles@dn.pt