Gauri van Gulik sorri e diz que tem "esperança". Essa é a notícia numa entrevista com a mulher, holandesa, que liderou a Amnistia Internacional (AI) Europa nos últimos tempos. É claro que o pessimismo também tem um papel, numa conversa que inclui a forma como estão a ser tratados os refugiados, as mortes no Mediterrâneo, o crescimento da extrema-direita, a desinformação. Mas Gauri, que deixa a AI no final de julho, garante que há "sinais de mudança"..E tem uma prioridade para o que vai fazer no futuro: combater a "criminalização da solidariedade". Até em problemas sérios, e persistentes, como o da violência doméstica em Portugal, mostra alguma confiança: "É uma questão de vontade política. Portugal pode, e deve, implementar o que está na Convenção de Istambul. É possível acabar com a violência doméstica.".Em Lisboa, onde está a convite do Centro de Estudos Sociais para participar num curso de verão sobre direitos humanos, Gauri van Gulik mostra as virtudes de algumas soluções para os problemas que temos: regular as plataformas online e retirar os migrantes em risco que estão detidos na Líbia são algumas das suas ideias. "Temos de ter soluções. Às vezes é fácil desesperarmos. Sentirmo-nos cercados, que é difícil haver progressos..." A mensagem que nos dá, na sua última entrevista como diretora da AI, é essa: se a ameaça é clara - racismo, populismo, liberdades em risco - a solução tem de existir..Como viu a forma como o Conselho Europeu decidiu nomear os líderes da Comissão e outros cargos relevantes para o futuro da União Europeia? O que se passou não foi muito subtil... É muito claro. Países como a Hungria e a Polónia sentiram-se ameaçados pela forma como Frans Timmermans os pressionava. Não que essa pressão fosse tão grande como alguns de nós gostaríamos, mas era mais do que esses países desejavam. Por isso bloquearam a sua nomeação. E isso não é só importante para a nomeação das pessoas que vão dirigir as instituições europeias, é importante também para a divisão que existe na Europa. O bloco de Visegrado de um lado e outros países do outro. Isso está a bloquear todo o progresso da Europa.Este foi um caso claro de retaliação? Parece-me claro. Esses países disseram que não o queriam porque não gostaram da forma como ele lidou com eles. A grande ameaça para a Europa não são, necessariamente, os partidos de extrema-direita. A grande ameaça são os partidos do centro, que adotam as políticas da extrema-direita para a tentar conter. Isso só levou ao aumento da extrema-direita e das suas opiniões. Só reforçou a narrativa porque ela ganhou espaço e credibilidade. Temos um número de países onde a extrema-direita ganhou o poder, mas temos um número ainda maior de países onde o centro se aliou a esses partidos. É quase a maioria na Europa, agora.Isso não existia em 2014, quando chegou à direção da Amnistia Internacional... Sim... Foram cinco anos incríveis... Havia uma ameaça clara, sentíamos que havia um crescimento das posições antidireitos humanos, mas esse não era o centro do debate. Por exemplo a ideia que existe em alguns países de que se deve criminalizar quem apoia a chegada de migrantes. Isso era uma posição marginal há cinco anos. Agora é a posição dominante no partido liberal da Holanda. Essa mudança é muito significativa. E resultou num retrato muito tóxico do que é hoje o debate político na Europa.Os temas relacionados com as migrações são os mais preocupantes? A migração é usada como assunto, agora, mas antes era o terrorismo. O que têm em comum é a forma como instalam o medo. Os políticos passaram de um discurso sobre os migrantes que era, antes, dominado pela ideia de que é impossível de gerir para outro, que é o da mudança cultural. É um discurso velado racista. E essa mudança é significativa. Mas quero contrariar a ideia de que as migrações são a causa do aumento do populismo. É a criação do medo sobre as migrações, que antes foi criada sobre o terrorismo, que causa o aumento dos populismos. Esse discurso identifica o caos e depois promete um regresso a um mítico passado glorioso que teremos tido - sozinhos, sem mais ninguém. Onde é que aconteceu esse passado glorioso? É uma ilusão..Como vê a criminalização da ajuda humanitária aos migrantes no Mediterrâneo? Para mim, essa é a maior prioridade. Impedir a criminalização da solidariedade. Não é só o caso dos barcos de salvamento no Mediterrâneo, e isso já seria suficiente. Temos, por exemplo, o caso de uma avó francesa que ajudou dois jovens do Afeganistão e foi acusada de tráfico. É revoltante. Ela levou os jovens a uma esquadra de polícia para os registar e é acusada. Há muitos exemplos de casos semelhantes. Dezenas e dezenas, não só na Europa, mas também nos EUA. Os governos não assumem a sua responsabilidade e as pessoas que tomam a responsabilidade de defender os direitos humanos são presas. O que é que isto nos diz sobre a nossa sociedade? Isto vai muito para lá da esfera política, isto toca uma parte importante do que somos, como vivemos, como trabalhamos. O facto de terem morrido pelo menos 40 migrantes num centro de detenção na Líbia está diretamente relacionado com estas políticas de alguns países europeus. Isso é doloroso..E como se ultrapassa isso? Temos de ter soluções. Às vezes é fácil desesperarmos. Sentirmo-nos cercados, que é difícil haver progressos... Temos de saber o que tem de acontecer, embora saibamos que não vai acontecer agora pela situação política. Mas as realidades políticas mudam. O que tem de acontecer é a evacuação dos centros de detenção da Líbia. As pessoas têm de ser retiradas de lá. Não quer dizer que todas tenham de vir para a Europa. Têm de ir para sítios seguros e ser-lhes dada a possibilidade de escolher um regresso seguro aos seus países de origem ou receberem vistos de países europeus. A Europa não acolhe demasiada gente, os números são claros, são muito mais baixos do que noutras regiões do mundo. Isto pode ser feito de forma segura, ordenada..Este foi precisamente o tema de uma das maiores campanhas de desinformação na Europa no último ano: o pacto da ONU para as migrações. Imaginava que isto seria usado como propaganda extremista de fake news? Sim. Penso que era claro, e nós não fomos rápidos a perceber. Desde o Brexit que sabíamos como as pessoas eram o alvo dessas campanhas e como tudo se propaga. O que não é claro é saber como resolver. Tem de haver um trabalho com as grandes plataformas..Como avalia a autorregulação que está em vigor? A autorregulação não chega. É óbvio que eu acredito na liberdade de expressão e que a regulação criminal deve ser evitada. Mas as plataformas devem ser vistas como são. Não é verdade que sejam apenas um reflexo da sociedade. O negócio das plataformas tem de mudar e os algoritmos também. O Facebook não pode continuar a defender o seu segredo comercial porque o mal causado à sociedade é enorme..Voltamos ao pessimismo... Vejo que estas ondas são cíclicas. É único neste período, mas já vivemos pior na Europa. A minha preocupação maior é a conjugação de três coisas: a luta contra as migrações, e a diferença, o que leva ao racismo; as medidas antiterroristas, que já não estão na ordem do dia, felizmente porque já há algum tempo que não se regista um ataque, mas houve uma mudança insidiosa nas leis que tornou criminosas coisas como o protesto e o discurso, e nos faz viver num estado policial soft; a última é o aumento do populismo. Mas sei que isto mudará. E nos últimos cinco anos também vi muito entusiasmo e participação das pessoas..É essa a razão para termos esperança? Quando os governos recuam e não fazem o que era suposto - tivemos uma crise económica que causou muito do que agora vivemos -, isso leva a que as pessoas se comprometam. Vi empresários na Hungria que decidiram ajudar refugiados, grupos enormes de mulheres que lutaram por leis antiviolação... Em toda a Europa há uma energia que pode levar à mudança..Que sinal vê agora na Europa dessa mudança? O ativismo - e não falo apenas de protestos - a alegria de participar em assuntos coletivos....Como as manifestações sobre as alterações climáticas? Exemplo perfeito. Jovens nas ruas. Isso é brilhante. É um ótimo sinal.