Saiu há um ano e três meses do cargo que ocupou durante 20 anos na Direção-Geral da Saúde (DGS). O tempo necessário para consolidar ideias, reflexões, estruturá-las e colocá-las na obra, que é editada pela Fundação Manuel dos Santos. Prevenir Doenças e Conservar a Saúde é um ensaio, um balanço sobre a obra que deixou feita na DGS, mas também do seu desempenho como médico especialista em saúde pública durante mais de 40 anos..A obra está dividida em vários capítulos, desde a prevenção aos tratamentos, passando por determinantes sociais e económicas. É assim que chega a várias fórmulas, uma delas, talvez a mais importante, sobre o que nos poderá dar melhor saúde e mais qualidade de vida durante mais anos. Uma fórmula que não integra só o cidadão ou só os profissionais. É a fórmula do futuro, aquela que integra também os políticos, as medidas sociais que poderão interferir com a vida de todos..Nesta entrevista, o ex-diretor-geral da Saúde e atual presidente da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) afirma que o viver bem não é só um problema da Saúde é de todos os ministérios. Francisco George diz ainda que uma das prioridades na Saúde é resolver o fosso social que se criou no acesso aos cuidados. Fala também dos movimentos grevistas, sobretudo na área da enfermagem, que têm vindo a realizar paralisações desordenadas. Diz que estas têm uma dimensão que nunca tiveram e que "estão a lesar os mais fracos e os vulneráveis",.Para Francisco George, agora com 71 anos, é preciso ser "muito exigente" no futuro. Nos próximos cinco anos, não será possível "admitir falhas ou deserções", "não será possível dispensar ninguém", porque "há respostas que são inadiáveis". .No final, e como presidente da CVP, diz estar feliz, apesar de a atividade humanitária ter de recuperar a confiança da população que foi abalada por situações menos transparentes..O livro que lança agora significa que ainda há muito a fazer na área da prevenção e da conservação da saúde em Portugal?.Não é propriamente isso. Entendo, e por uma questão de princípio, que quem desempenha cargos de natureza como o que eu desempenhei na Direção-Geral da Saúde [DGS] durante tantos anos deve no final do mandato fazer um trabalho escrito. Deve olhar para trás, ver o que foi feito e o que não foi e identificar as principais conclusões sobre tudo o que foi vivido. Foi nesse sentido que resolvi fazer este trabalho, que é necessariamente curto e de linguagem muito simples, para o publicar em livro..É então um balanço que surge um ano depois de ter saído da DGS....Sim, de certa forma. É um ensaio que reflete o pensamento de quem exerceu 45 anos de trabalho médico como especialista em saúde pública..O ensaio, a obra, termina com uma série de perguntas - Qual a situação de saúde dos portugueses? Como será o sistema de saúde nas próximas gerações? Será possível alcançar um sistema de saúde democrático, sem desigualdades, nem iniquidades? Há vontade política efetiva para tal? Até onde se expandirá o setor privado? Será possível prever o futuro? Ou será imprevisível? - para as quais diz não haver ainda respostas. Porque é que não há? São questões de há muito....As respostas com precisão só podem surgir do trabalho que foi feito e que realmente fica. Isto associado a uma série de determinantes e condicionantes políticas e até de outras com carácter económico e social. Podemos sempre formular as questões, mas as respostas corretas ainda não são possíveis. Por exemplo, um dos grandes problemas na saúde ainda é a resistência aos antibióticos. O sucesso do combate a esta situação só se conseguirá resolver com a participação de toda a sociedade e, em particular, dos médicos. Se isso não acontecer, o combate a uma situação destas continuará a não ter os resultados desejados..Pode explicar melhor?.Penso que nos próximos cinco anos temos de ser muito exigentes no cumprimento das respostas aos diferentes desafios que são enunciados no meu livro. Temos de ser muitos exigentes com a desaceleração das alterações climáticas, temos de ser muito exigentes no combate às resistências das bactérias e no uso dos antibióticos, e temos de ser muito exigentes com as doenças crónicas, como cancro, doenças cardiovasculares e cérebro vasculares, e com as doenças metabólicas, como a diabetes. É preciso ser muito exigente. Não é suficiente fazer-se um plano, escrevê-lo e colocá-lo num escaparate. É preciso fazer, concretizar, desenvolver e ir à luta..Mas quando repete que temos de ser muito exigentes refere-se a quem?.Refiro-me a todos. É preciso exigência por parte dos governantes, dos dirigentes da administração pública, dos profissionais - médicos, enfermeiros, farmacêuticos, população em geral, organizações da sociedade civil, etc. Não podemos tolerar faltas de atenção para responder aos desafios que nos estão a ser colocados..Que desafios?.Sobretudo de três eixos: dos efeitos em saúde pública que decorrem das alterações climáticas, as questões da resistência aos antibióticos e antivirais e das doenças crónicas. É preciso olhar para estes três eixos e pensar que teremos de desenvolver quase um combate ou uma luta napoleónica. Vai-se em frente, não se anda para trás. Há que ter a convicção de que se não trabalharmos neste sentido não haverá desenvolvimento no país..Quando diz que há que travar quase lutas napoleónicas, quer dizer que ainda há muito a fazer nalgumas áreas para se viver melhor e ter melhor saúde?.Há que criar respostas para cada um destes eixos, olhar para trás e ter um limite de tempo que perspetive uns cinco anos. Respostas para 2025..Mas já há planos de prevenção para cada uma das áreas que refere. O que falta ainda?.Falta não permitir falhas, desistências, deserções na implementação de todos esses planos. É preciso continuar o caminho de investimento na prevenção e no controlo destes problemas. Não se pode desviar a atenção deles, porque exigem respostas inadiáveis..Porque diz não ser possível aceitar falhas ou desistências? Refere-se ao SNS ou aos profissionais?.Refiro-me sobretudo aos que integram o SNS, mas também ao cidadão em geral. O desejo é que todos participem na resolução dos problemas. Não basta pedir aos funcionários do Ministério da Saúde que resolvam os problemas. Por isso, no ensaio que agora é publicado, defendo e aconselho responsabilidade individual, familiar, coletiva, para uma melhor saúde..É por isso que fala numa saúde individual e global?.Falo mais numa saúde familiar, comunitária, que com a redução de desigualdades e iniquidades poderá traduzir-se em viver mais e melhor. E também com mais democracia. O regime democrático não pode tolerar desigualdades nem iniquidades na saúde. O regime democrático impõe, por natureza, igualdade no acesso à prestação de cuidados de saúde, quer estes sejam preventivos, curativos ou de reinserção. Não pode haver diferenças. Temos de reduzir o fosso social que existe atualmente..Está a referir-se aos cuidados no SNS?.Refiro-me ao sistema de saúde, não só ao SNS. O acesso tem de ser verdadeiramente universal, sem desigualdades..A desigualdade no acesso é hoje o principal problema na saúde em Portugal?.É mesmo. Há que ter em conta este princípio, que, no fundo, tem que ver com a ética..O que está a acontecer nas unidades do SNS e privadas que o leva a dizer isso?.Ao longo dos últimos 20 anos, não me refiro a este governo, nem ao anterior, nem ao anterior, mas tem havido uma tendência, que é visível e que pode ser medida, de desigualdade no acesso. Esta tem vindo a acentuar-se. Ou seja, uma coisa é termos um acesso em condições de igualdade para todos os cidadãos, outra, completamente distinta, é a existência de desigualdade na prestação de cuidados, em termos de rapidez, eficácia, etc. Há um princípio que temos de ter sempre em conta que é o da igualdade de oportunidades para todos os cidadãos poderem beneficiar da prestação de cuidados que o sistema lhe oferece, sejam públicos ou privados, e é isso que não acontece..Refere-se a determinantes sociais que podem levar à desigualdade no acesso?.Construiu-se um fosso social que se tem acentuado....Vem aí uma nova Lei de Bases da Saúde. O que é preciso mudar?.Em primeiro lugar, o não aceitar-se qualquer tipo de desigualdades no acesso à prestação de cuidados. A saúde não convive com desigualdades. E se é verdade que todos nascem em condições de igualdade, os blocos de parto e os cuidados perinatais destinam-se a ricos e a pobres, sem qualquer tipo de discriminação, já não acontece o mesmo a partir da idade adulta. Nesta faixa, a igualdade no acesso ainda não foi alcançada..Falou em falhas, deserções e exigência. Ao fim de um ano da sua saída considera que o setor está muito agitado socialmente?.Os movimentos grevistas, sobretudo no setor da enfermagem, têm uma dimensão que nunca tiveram em termos históricos. Trata-se de uma forma de reivindicação desordenada, que, no plano do rigor e dos princípios de ética e da democracia, não são aceitáveis. Sobretudo as greves chamadas cirúrgicas que lesam e ferem os mais fracos e vulneráveis. Quando nasceram, os movimentos grevistas destinavam-se a lesar os interesses do patronato, mas este movimento não lesa os interesses do patronato, está a lesar os mais fracos e os mais vulneráveis. Aqueles que mais precisam de cuidados. Isso não é aceitável..Mas como explica que diretores de serviço e administrações se demitam por falta de condições e que declinem responsabilidade no que poderá correr mal..Há que pensar nisso. Não é tempo para dispensar ninguém. Os próximos cinco anos serão muito exigentes e com trabalhos que devem envolver todos..A contestação tem que ver com o facto de os profissionais terem atingido um estado de saturação pelas condições em que trabalham?.Naturalmente que estas questões têm que ver com as condições do país. Não podemos ter uma saúde com indicadores e exigência igual à de uma Suécia ou Noruega, e depois a economia ser diferente. Temos um comportamento em saúde pública muito mais elevado do que o comportamento da nossa economia. Não são as melhores condições. Houve atrasos, recuos, erros. E todos temos de compreender que estes não podem ser ignorados. A nossa exigência na saúde tem de ser acompanhada por uma outra economia..No seu livro inclui várias fórmulas, uma delas traduz a forma de como se poderá viver mais e melhor, vai desde a literacia às decisões políticas. Ainda há muito a mudar na política?.Claro, bastante. E em todos os departamentos do Estado. O viver bem não é um problema só do Ministério da Saúde é um problema que envolve outros ministérios, política fiscal, finanças, segurança social, educação, economia, agricultura etc. Este problema tem que ver com a perspetiva que existe hoje de que a saúde deve estar em todas as políticas setoriais. Qualquer medida tomada em relação à saúde da população tem de ser equacionada, tem de ser analisada, tem de se ver se terá impacto e como..Então concorda com os cientistas que dizem que as doenças do futuro serão aquelas que os políticos quiserem?.Exatamente. No futuro as doenças poderão ser moldadas, prevenidas, eliminadas e até atenuadas, mas há outras que ainda poderão surgir..É o timing certo para este livro?.Este ano foi o tempo necessário para consolidar ideias e organizar este ensaio..Há um ano na presidência da Cruz Vermelha Portuguesa sente-se feliz com o que está a fazer?.Sim, apesar de saber que há muito trabalho a fazer na área da atividade humanitária. O clima de confiança foi abalado com as notícias sobre Pedrógão e outras e tem de ser retomado. É preciso agir com muita transparência, só assim será possível retomar a confiança dos portugueses no apoio à atividade humanitária.