Como é que um casal continua apaixonado após a rodagem de uma longa metragem?.Maureen Fazendeiro (MF): Este foi o primeiro e, provavelmente, o último filme que fizemos juntos. (risos)..Miguel Gomes (MG)- Embora, curiosamente, não tenha corrido mal. Fora do contexto do filme, às vezes as coisas são mais complicadas. Na rodagem, o nosso entendimento não foi muito difícil. Aliás, o filme tem uma cena em que a personagem do realizador Miguel e da realizadora Maureen estão a discutir a questão do Cesare Pavese e do trator, onde ele quer filmar o trator e ela não, e isso é o que pode acontecer quando são duas pessoas a realizar um filme, trata-se de uma negociação e ali houve um empate..MF- E tudo aquilo era uma ficção - o trator não era uma ideia tua e o Pavese não era uma coisa minha, mesmo apesar de o ter referido..MG- Bem, o Pavese era teu! O que foi descoberto posteriormente foi o marmelo e é dos dois. Quem desempatou foi o marmelo. À parte de tudo isto, fazer um filme a dois é negociar. Tudo aquilo é encenado....Quando dizem encenado é importante realçar que este é um filme sem argumento....MF- Sim, não havia argumento escrito. Entre o momento em que tivemos a ideia de fazer o filme e o momento em que entrámos na casa para filmar, passaram apenas três meses. Apenas tínhamos uma estrutura pensada na primeira semana em que lá chegámos com a argumentista Mariana Ricardo. Foi uma semana para explorar um sítio e ver o que dali podíamos tirar. O que sabíamos já é que o filme iria andar para trás, voltando atrás no tempo, e que se iria filmar uma construção em forma de diário. O filme não foi escrito, foi estruturado para depois ser reorganizado a cada dia para integrar coisas que poderiam acontecer..Há uma sequência em que vemos um quadro com os acontecimentos da história..MF- Esse quadro era o nosso argumento....MG- Um quadro importante pois era lido da esquerda para a direita, ou seja, líamos nos dois sentidos do tempo, sobretudo porque rodámos cronologicamente. Grande parte da montagem foi feita com aquele quadro..O que vos deixou mesmo mais surpreendidos em todo esse processo de deixar os elementos e as ideias a surgir? O cinema ainda pode oferecer um espaço de surpresa?.MF- Os atores surpreenderam muitas vezes..MG- Como era um filme permeável também aos acontecimentos da nossa vida, logicamente, que a gravidez da Maureen foi marcante. Não estávamos à espera daquilo que se pode ver no filme....MF- Depois de uma semana de rodagem tive mesmo de parar e isso não é ficção: acompanhei a rodagem deitada num sofá com monitores. Não foi truque..MG- Tal como não foi também truque o dia em que saímos para ir à ecografia e deixámos os atores a filmar. A cena da casa de banho é da exclusiva responsabilidade dos atores. Quando chegámos nem sabíamos o que tinham filmado. Quando regressámos vimos a casa de banho do nosso quarto completamente de pantanas! Mas acho justo quando os realizadores abandonam o filme... Quando se deixa os atores filmar corre-se o risco de eles vandalizarem a nossa propriedade..Entre o exercício e o risco, pode-se dizer que Diários de Otsoga é um filme sem medo do vazio, de não acontecer nada?.MG- A produtora Filipa Reis estava um bocado preocupada com isso, perguntava o que nós iríamos inventar, enquanto que o Luís Urbano estava um pouco mais à vontade. Mas quando há atores, uma equipa, uma câmara para filmar, árvores, vento, cães, o cinema acontece sempre. Era uma coisa quase cinema dos Lumière. À medida que o filme recua acho que se aproxima quase do princípio do cinema. Temos uma atriz a ajudar uma cozinheira a cortar batatas e os seus problemas porque as batatas são para o bacalhau com natas e não para a caldeirada...Coisas muito simples e próximas da vida, aquilo que normalmente o cinema não filma. Mas também temos coisas completamente artificiais, como aquelas noites cuja iluminação é toda trabalhada de forma teatral....Depois sente-se a vantagem de ser filmado em película...A maneira como se capta o sol a bater na vegetação....MF- Tivemos o Mário Castanheira, que é um grande diretor de fotografia!.MG- E é um trabalho também da Kodak, uma grande película, capaz de fazer com que o contraste entre as sombras e luz seja completamente diferente daquele que se consegue no digital. Basta uma brisa para agitar as folhas das árvores para tudo se animar. Por isso, tivemos o cuidado de escolher os locais onde iríamos filmar, estudar a luz, o percurso do sol, os filtros pelas árvores, etc..O filme foi rodado o ano passado numa altura em que as regras quase que impediam filmar-se um beijo e toda a possibilidade da aproximação num plateau...E vocês filmam um beijo e colocam as personagens a dançar..MF- Por isso, quisemos colocar as discussões da equipa de como organizar a nossa pequena comunidade, como é o exemplo das regras para o pequeno-almoço..MG- Sim, coisas como tirar ou não o fato de banho na piscina..MF- Ou se podemos ou não usar as meias uns dos outros..MG- Estão lá os choques entre vontades individuais numa espécie de desejo de coletivo..Dormem para o lado que vos der melhor quando lhes chegam aos ouvidos que isto da equipa aparecer no filme era algo que o Miguel já tinha feito noutros filmes?.MG- Efeito de repetição? Pode haver tudo no mundo..MF- Não estávamos a pensar em Aquele Querido Mês de Agosto, mas sim no que tínhamos e o que tínhamos era muito pouco..MG- Tínhamos sobretudo uma série de pessoas que já trabalharam comigo antes. A discussão do pequeno-almoço com o Vasco Pimentel [responsável pelo som] parece rimar com uma cena de Aquele Querido Mês de Agosto mas a rima vem do próprio protagonista, ou seja, o Vasco é assim mesmo..Arrisca a tornar-se num dos grande comediantes do cinema português, não?.MG- Sim, aceito isso! Mas não sei se ele estará de acordo. Seja como for, foi o próprio quem começou a dizer que já havia queixas no pequeno-almoço de gente que o acusava de roubar o pão dos outros..dnot@dn.pt