Ficar à porta da história

Por que é que se diz que Manuel Reis foi um libertador? E por que é que isso parece encanitar tanto pessoas que provavelmente não negariam esse elogio a Herman e Esteves Cardoso?
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O que é o ar do tempo? O que é que define uma época? O que são vanguardas? Como se constrói a história? Quando pensei escrever neste espaço sobre os 20 anos do Lux-Frágil e do seu principal criador ocorreu-me falar dos "salões" onde, em tempos recuados, se discutiam e criavam ideias, conceitos, perspectivas que foram muito importantes para definir aquilo que se costuma denominar por "o espírito" das épocas. Reconhecer importância aos anfitriões que criaram ou propiciaram lugares ou ocasiões para encontros assim não tem nada de novo, como considerar que sem eles talvez certas ideias e movimentos - mais ou menos revolucionários -- não tivessem acontecido.

Acabaria por deixar de lado essa menção no texto final, publicado no início de março. Retomo-a por sentir que há demasiadas incompreensões naquilo que, infelizmente, se tornou uma discussão feia. Não temos, é claro, de ter todos a mesma opinião sobre uma pessoa e uma época; de considerar da mesma forma a respetiva importância, muito menos de gostar por igual. Não devemos é, para sustentar determinadas visões, afirmar falsidades ou inexatidões com base em apreciações distorcidas pela pressa, pela vontade de ir contra aquilo que se considera uma construção egocêntrica e elitista, ou por pura má fé.

Por que é que se diz que Manuel Reis foi um libertador? E por que é que isso parece encanitar tanto pessoas que provavelmente não negariam esse elogio a Herman e Esteves Cardoso (para manter as coisas no mesmo tempo e no âmbito das mentalidades)? Ao contrário do que sucede com o trabalho de humorista de Herman ou com o de MEC nas crónicas que escreveu nos anos 80 no Sete, reconhecidos por muitos como referências fundamentais do pós-25 de Abril e correspondendo ao abalar do profundo conservadorismo e cinzentismo da sociedade portuguesa e à vontade de derrisão de uma parte dela, há uma resistência à ideia de que o dono do Frágil e do Lux possa ter sido um fautor desse trabalho de libertação.

Há nas objeções que se foram afirmando várias ideias chave - a de que se tratou de um fenómeno "apenas lisboeta" (e aí vemos os costumeiros complexos de inferioridade com a capital e o que se identifica com as suas "elites"); a de que é ridículo ver em estabelecimentos noturnos uma influência cultural e ideológica; e, sobretudo, muita ignorância (peço desculpa; é a palavra) quanto aos factos e ao fenómeno em relação ao qual pretendem desenganar os outros.

Quando se afirma que Manuel Reis criou um lugar onde os excluídos eram acolhidos e festejados e há quem responda, com mofa, que a porta do Frágil deixava muita gente de fora e portanto era ela própria um fator de exclusão, faz-se, voluntariamente ou não, uma confusão entre conceitos: o de exclusão social e de critérios de admissão. Se o Frágil deixava muita gente de fora? Sim, deixava. Ao contrário do Lux, que pelas suas dimensões todas as noites admite milhares de pessoas e cobra entradas, o Frágil era um bar muito pequeno, não poderia admitir toda a gente. Mas o critério usado à porta nada tinha a ver com poder pagar (não havia "preço de entrada" nem cartões de consumo mínimo e podia-se ficar lá uma noite inteira sem beber nem ninguém chatear) nem tão-pouco, como se retira de muito do que se tem escrito e dito, de se ser "importante" ou parte de "uma elite reconhecida". Sei disso por experiência: a primeira vez que entrei no Frágil, em 1983, tinha 19 anos e ia com amigos da minha idade. Como quase toda a gente da minha geração, tinha muito pouco dinheiro para gastar (em bebidas ou outra coisa qualquer) e decerto não tinha "um nome". Era uma miúda de Vila Franca que gostava de um determinado tipo de música que na minha terra e mesmo na minha faculdade lisboeta ninguém conhecia (e que descobrira a ler MEC e a ouvir os programas de António Sérgio), de se vestir e pentear de modo que ofendia a maioria. No Frágil e noutro bar contemporâneo do Bairro Alto, o Rock House - com uma clientela mais jovem e mais ligada à música e que foi a minha porta de entrada para esse outro mundo - descobri lugares onde era bem-vinda e estava segura, onde ninguém me chateava pelo meu aspeto, onde não havia marialvas nem julgamentos moralistas e onde a expressão da individualidade era considerada uma forma de arte, em oposição à visão coletivista que imperava na época no país (e em alinhamento com o discurso pós-moderno "lá de fora").

Aí conheci o liberalismo nos costumes - o Frágil foi o primeiro lugar onde vi homens beijar homens e mulheres beijar mulheres como "normalidade" - e pessoas de idades e origens (sociais e geográficas) muito diferentes, unidas por uma rebeldia face ao convencional e conservador. Descobri um país que só sonhara poder existir. Como eu, fomos muitos, de muitos lados de Portugal, a viver essa experiência libertadora, esse ensaio geral para a vida que queríamos ter, para quem queríamos ser. E levámos isso connosco para todo o lado, para sempre.

Teríamos chegado aqui, ao Portugal de hoje, sem o Frágil e sem Manuel Reis? A questão não é essa, mesmo se não lhe podemos responder. A questão é se se pode negar que houve um lugar onde aquilo que hoje é consagrado pela lei foi a lei muito muito antes; se se pode negar que criar essa possibilidade correspondeu a uma visão do futuro e do bem, uma influência e um exemplo que são história.

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