Fibrose Quística: 25 doentes a ser tratados com Kaftrio: "Sinto-me um super-herói"
Aos 24 anos, Constança Bradell foi um exemplo de como a sociedade civil pode ter uma palavra a dizer nas decisões que são tomadas pelas instituições. Em fevereiro, Constança disse nas redes sociais: "Não quero morrer."
O apelo dirigia-se às autoridades de saúde, em particular ao instituto regulador do medicamento (Infarmed), a quem compete avaliar e validar o processo de autorização no mercado e de comparticipação do Estado do medicamento Kaftrio, que já é considerado pelos profissionais da área como o que está a "iniciar uma nova era na doença".
Na altura, o fármaco já estava a ser dado a dois doentes no Centro de Referência de Tratamento da Fibrose Quística (CRTFQ) do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, que integra o polo pediátrico e o de adultos, onde Constança era acompanhada, mas ainda não tinha chegado até ela nem a outros. E era preciso que o Infarmed acelerasse o processo. O apelo de Constança acabou por fazer história ao conseguir que fosse dada uma autorização de utilização excecional para ela e para outros doentes no país.
Neste momento, naquele centro há sete doentes com mais de 12 anos a ser tratados com Kaftrio, dois deles em idade pediátrica, mas, segundo garante Pilar Azevedo, a nível nacional "já há 25 doentes a serem tratados com este medicamento. Posso estar a errar, mas será só por um ou dois doentes, a tomar este fármaco".
Constança faleceu a 11 de julho, por complicações da sua saúde, já não assistiu a esta decisão, mas não será esquecida naquele centro de referência nem por todos os que sofrem da doença ou que venham a ser diagnosticados com ela. "Foi um exemplo de uma nova geração europeia, que entende que a sociedade civil pode ser mais interventiva e ter uma palavra a dizer nas tomadas de decisão", comenta a pneumologista, especialista em fibrose quística e médica de Constança.
O medicamento em causa foi aprovado nos EUA em 2019 e, desde logo, os profissionais perceberam o impacto que estava a ter no tratamento dos doentes. Chegou à Europa em 2020, após autorização da Agência Europeia de Medicamentos e logo em seguida o processo de autorização para Portugal deu entrada no Infarmed.
De uma forma ou de outra, a autorização iria chegar, mas poderia levar muito mais tempo, pois é do conhecimento geral que tais aprovações podem levar meses ou anos até os medicamentos poderem entrar no mercado. "O processo de mediatização levado a cabo pela Constança e pela família estava a ser acompanhado por nós e com grande intensidade. Ela conseguiu que o medicamento chegasse a ela e se estendesse a outros doentes, o que foi vivido por todos com uma alegria imensa", conta Pilar Azevedo, coordenadora da área de adultos. Mas com o anúncio de ontem ficará "um reconhecimento imenso e a gratidão de todos. Eu diria mesmo que é um momento indescritível de alegria, porque é uma das terapêuticas que vão fazer a diferença", sublinha a médica.
A chegada da terapêutica à Europa está a ser feita de forma gradual. Há países que já o têm, outros que acabaram de o ter e outros que ainda não o podem usar, mas a verdade é que para os cerca de 30 mil doentes de 35 países deste continente será um marco.
"O paradigma mudou. Se antes era tratar os sintomas da doença e controlá-los, agora é corrigir o defeito. Se não há defeito, não há sintomas. Portanto, a fibrose quística passa a ser uma doença crónica e, desde que medicado, o doente passa a viver sem sintomas e com uma esperança de vida longa", explica a especialista.
A partir daqui, o medicamento deixará de ser usado mediante a autorização de utilização excecional, que tinha sido concedida pelo Infarmed e que terminava no final de julho, ficando ao dispor dos doentes dos cinco centros que tratam esta doença no país.
DestaquedestaqueCusto do medicamento é de 140 mil euros por doente ao ano, mas terá a comparticipação do Estado, embora os centros de referência para tartar a fibrose quística ainda não saibam qual a fatia e que lhes vai caber pagar.
O medicamento, que representa um custo de 140 mil euros por doente anualmente, não estava a ser pago ao laboratório devido a esta autorização excecional. Agora que a sua entrada no mercado foi autorizada passará a ser, mas, ao que apurámos, a comparticipação do Estado ainda não está definida, não se sabendo ainda quanto é que as unidades do SNS vão ter de pagar por ele. O preço valerá cada dia que prolongue a vida destes doentes.
A coordenadora geral do CRTFQ do CHULN, Celeste Barreto, que assiste desde a década dos anos de 1980 às conquistas alcançadas por quem luta contra a doença, diz mesmo tratar-se de "um medicamento que dá mais vida aos doentes", reforçando: "É um medicamento que tem uma ação completamente diferente dos outros, que têm sido para tratamento sintomático. Este tenta prevenir a lesão pulmonar, atua ao nível da proteína que não consegue funcionar, como um canal de cloreto, e numa percentagem tal que permite controlar as secreções, as infeções e até a insuficiência pancreática."
A verdade é que ontem foi mais um dia de vitória para médicas como Celeste Barreto e Pilar Azevedo e para enfermeiras como Raquel Bolas, enfermeira-chefe da área da dos adultos, e para todos os profissionais que integram estas equipas, desde nutricionistas, psicólogos, assistentes sociais ou da área da investigação científica, e que ao longo do tempo têm vindo a lutar por melhorar os cuidados aos doentes.
Aliás, são dias como este que atenuam a tristeza da perda, de mais um doente, de mais uma vida, seja ela qual for. Aliás, e como referem ao DN estas profissionais, é a luta pelos outros, pelo futuro e pela sobrevivência que faz com que se sinta o sabor da vitória num dia como este e depois da vivência com a Constança.
Por isso, Pilar Azevedo faz questão de ler algumas das mensagens que têm recebido dos doentes após iniciaram o tratamento com Kaftrio, para mostrar, e mantendo o anonimato de quem escreve, o que é alguém sentir que "renasceu".
E começa: "No primeiro dia estive duas horas a tossir, libertando quantidade enorme de expetoração. A partir daí, tive uma expetoração completamente clarinha e fluida. Nunca tive a expetoração assim. É impressionante. Apetece-me comer fora de horas, há muito tempo que não sentia amor ao comer. Fiquei tão impressionada, que até me comovo. Engordei um quilo numa semana e já consigo fazer a minha vida. Desapareceu o cansaço constante, durmo melhor e consigo fazer caminhadas sem parecer uma velhinha. Comecei a tratar do jardim e da horta e não parei. Lavei a casa e não parei. Fiquei com um turbo que parece que tenho mais pulmões e não consigo lidar com ele. Comecei a andar melhor e a família também, o bem de um é o bem de todos."
Pilar de Azevedo olha para a folha de papel que tem na mão com a mensagem que acabou de imprimir do e-mail. A voz sai-lhe embargada, o que é normal para quem vive a vida dos doentes como da sua ou da dos seus se tratasse.
Mas há mais. "Ai meu Deus, agradeço tanto esta oportunidade. Estou cheio de vida de boa disposição e com intelecto para colocar ao serviço da comunidade. Estou tão feliz e agradecido que todas as palavras são poucas. Se Deus quiser não será preciso o transplante pulmonar. Tenho muita fé e sinto-me um super-herói com superpoderes."
Ou ainda: "Sinto-me bem, com uma melhoria significativa. Ontem, fiz uma hora de bicicleta sem tosse". As mensagens chegam de doentes com 40 anos, 30 ou de mais jovens. Algumas trazem apenas um "Obrigada do fundo do coração", mas todas têm o mesmo significado, o de uma vida diferente.
Celeste Barreto e Pilar Azevedo explicam que antes se pensava que a prevalência da fibrose quística em Portugal era semelhante à de outros países da Europa - a média era de um doente para 2500 a 3000 nascimentos - mas com o início do rastreio neonatal no nosso país, em 2013, e já com todos estes anos de resultados, sabe-se que "a nossa prevalência é de um para 7500 a 8000, o que quer dizer que, por ano, havendo cerca de 75 mil a 80 mil nascimentos, nasçam cerca de sete a dez crianças com fibrose quística", dizem. Um número diferente do que "tem sido repetido constantemente de uma prevalência de 30 a 40 doentes por ano".
Portugal tem cerca de 400 doentes. Só no centro de Lisboa Norte são acompanhados 116 (60 são adultos). Para alguns, o diagnóstico surge logo à nascença, através do rastreio neonatal, para outros mais tarde: "Para alguns é aos três ou quatro anos e até mais tarde". E também não é igual para todos. "A fibrose quística é uma doença genética. Existe porque há dois pais que são portadores do gene, que, muitas vezes, não sabem que são portadores", dizem.
É uma doença grave e rara que foi identificada nos anos 30 do século XX, que se manifesta "pela incapacidade que uma pessoa tem de formar uma proteína, chamada SFTR, a proteína da membrana das células, que é muito importante para uma série de funções e que está presente em todos os nossos órgãos. Ou seja, na fibrose quística ou esta proteína não sintetiza de todo ou é sintetizada, mas funciona mal. O órgão mais afetado é o pulmão e logo bastante cedo, depois podem ser afetados outros órgãos como o pâncreas, o intestino e o fígado", explica Pilar Azevedo.
Com a descoberta de fármacos de tipo do Kaftrio, cuja indicação é para pessoas com 12 ou mais anos, ou como o Orkambi, com indicação dos aos 12 anos, ou o Kalidec, que em Portugal só está a ser usado em dois doentes, com mutações raríssimas, a fibrose quística passa a ser tratada de forma mais eficaz. Aliás, como refere Pilar Azevedo, "eu diria que é umas cinco vezes mais eficaz do que os outros até agora usados. É um verdadeiro milagre, e quando administrado precocemente pode permitir que os doentes tenham uma vida boa".
O símbolo da borboleta nas folhas que sinalizam aquele centro de referência tem agora também um significado diferente. Antes era "uma vida curta, mas feliz". Agora, "uma vida que vai ser longa e feliz".