"Faz como Ortega. Fica em casa." O meme corre nas redes sociais na Nicarágua, onde o governo mantém escolas abertas e promove eventos que reúnem multidões, apesar dos alertas das organizações de saúde para o risco de coronavírus, mas onde o presidente sandinista não era visto em público há mais de um mês..Onde andava Daniel Ortega? Esta quarta-feira, reapareceu na televisão após 34 dias ausente para defender a estratégia do combate ao covid-19. "No meio desta pandemia, não se deixou de trabalhar, porque aqui se deixamos de trabalhar, o país morre", afirmou, alegando que o coronavírus é "um sinal de Deus" para dizer ao mundo que está a ir por um mau caminho..A última vez que o presidente tinha sido visto em público tinha sido a 21 de fevereiro, durante um evento militar que foi transmitido pela televisão. Depois disso, a 12 de março, participou numa videoconferência com outros líderes centro-americanos, por causa da resposta ao coronavírus. Mas, desde então, não se sabia onde estava..Ortega, de 74 anos, está no poder desde 2007, tendo também liderado o país entre 1979 e 1990, após a vitória da revolução sandinista que derrubou o ditador Anastasio Somoza Debalde..Segundo a Reuters, o ex-guerrilheiro sofreu dois ataques cardíacos no passado (um deles em 1994, tendo recuperado em Cuba) e tem o colesterol elevado e outros problemas de saúde. Isso lançou os rumores de que podia estar em quarentena, hospitalizado ou até morto. O governo recusou responder às perguntas da agência de notícias sobre o estado de saúde do presidente ou o seu paradeiro..Mas esta quarta-feira à noite reapareceu num discurso na televisão, ao lado da mulher, a vice-presidentr Rosario Murillo. Tinha olheiras pronunciadas e as mãos muito brancas..Falta de medidas criticada.A Nicarágua, ao contrário dos países vizinhos, não fechou escolas nem universidades (apesar de muitos alunos e estudantes terem decidido ficar em casa), e a própria fronteira está aberta. A quarentena só é obrigatória para quem chega do estrangeiro..Nem sequer medidas de distanciamento social foram tomadas ou promovidas pelas autoridades, havendo contudo muitas pessoas que, por sua iniciativa, tenham decidido adotá-las. Empresas fecharam ou optaram por teletrabalho e houve um aumento da procura das aplicações de entrega de comida, segundo a AP.."Ortega é o único líder da América Latina que não fez um único anúncio público sobre a forma como o seu governo ia responder à pandemia. A vice-presidente Rosario Murillo, que é casada com Ortega, disse aos nicaraguenses para manterem a calma e continuarem a trabalhar", tinha escrito a Human Rights Watch na semana passada, considerando "imprudente" a resposta do país ao covid-19..As festas da Páscoa decorreram como normalmente, apesar dos protestos da própria Igreja Católica (uma das vozes da oposição no país). O próprio governo tem promovido eventos com multidões, como a marcha Amor em Tempos de covid-19", há um mês.."Estamos preocupados com a falta de distância social, as reuniões de massas", disse a diretora da Organização de Saúde Pan-Americana e diretora para as Américas da Organização Mundial da Saúde, Carissa F. Etienne. "Temos preocupação com os testes, o estudo dos contactos sociais, o relatar de casos. Também estamos preocupados com a prevenção e o controlo desadequado e infeções", indicou à CNN..Todos os dias ao meio-dia é a vice-presidente e primeira-dama Rosario Murillo que informa sobre o avanço do covid-19 na Nicarágua, sempre com poucos detalhes e lembrando sempre Ortega. "O nosso comandante Daniel orienta-nos, dá-nos instruções, e ele mesmo está em contacto e coordenação com todas as nossas autoridades", disse numa dessas intervenções. Nas mesmas intervenções anuncia inaugurações e projetos..Oficialmente, a Nicarágua tem 11 casos de coronavírus e apenas uma morte, com o Ministério da Saúde a dizer que são todos casos importados. "Não temos transmissão local comunitária. Infinitas graças ao Senhor!", disse Rosario Murillo na sua intervenção de terça-feira. Dados de que os especialistas duvidam..Por comparação, o número de casos confirmados nas Honduras é de 419, com 31 mortes e nove recuperados, e na Costa Rica é de 618, com três mortes e 66 recuperados. Os dois países fazem fronteira com a Nicarágua e adotaram medidas para reduzir a circulação de pessoas e fecharam as fronteiras..Ausências não são novidade."Não é pouco comum que Ortega não apareça numa crise como esta. A estratégia de Rosario Murillo é convertê-lo numa espécie de divindade. Ele não dá más notícias. Ortega só aparece para dar boas notícias, instruções finais, tudo o resto serão outros a fazer", disse também à BBC o analista político Eliseo Núñez..Em 2014, também esteve um mês sem aparecer em público, entre maio e junho, e em março desse mesmo ano também tinha estado dez dias sem dar sinal de vida: "Você ressuscitou-me", disse quando reapareceu, para dar as boas-vindas ao recém-nomeado cardeal Leopoldo Brenes, que voltava de Roma, sem dar mais explicações..Já em abril de 2018, Ortega só apareceu quatro dias depois de iniciados os protestos contra o seu governo, numa altura em que já tinham morrido mais de 30 manifestantes - os protestos culminaram com a morte de pelo menos três centenas de pessoas e, segundo a Human Rights Watch, o despedimento de 400 médicos, enfermeiros e outros trabalhadores do setor da saúde por terem cuidados das vítimas dos confrontos entre manifestantes e autoridades..O jornal La Prensa (opositor) fala de um "plano macabro", alegando que o objetivo de Ortega é ter uma crise tão grave no país que faça esquecer os protestos de abril de 2018 e levar a comunidade internacional a retirar as suas sanções, "oxigenando a ditadura". No mesmo artigo cita um ex-ministro da Defesa, Avíl Ramírez, para lembrar que Ortega não deu uma única conferência de imprensa em 13 anos..A oposição acreditava que Ortega se preparava para reaparecer no Domingo de Páscoa, apontado para a imagem de ressurreição, mas tal não se confirmou. E, na semana anterior, não esteve no funeral do seu antigo companheiro de cela durante a ditadura de Somoza, um dos seus mais próximos aliados, Jacinto Suárez.."Onde está Ortega não é importante, porque ele tem estado desconectado da realidade da Nicarágua há muito tempo, voltando as costas ao povo em várias situações de crise", disse o politólogo opositor Félix Maradiaga, citado pelo jornal El Tiempo..De guerrilheiro a presidente.Ortega juntou-se no final dos anos 1960 à clandestina Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), que tinha nascido em 1961 inspirada pela Revolução Cubana e pela Teologia de Libertação. Tinha sido batizada em homenagem a Augusto César Sandino (líder da resistência contra a ocupação norte-americana da Nicarágua nos anos 1930)..Os Somoza - o poder começou no pai, Anastasio Somoza García, passando depois para os filhos Luis e Anastasio Somoza Debayle - controlavam as decisões políticas, económicas, militares, judiciais e sociais do país, contando com o apoio da Guarda Nacional, que reprimia com violência qualquer oposição. A família controlava ainda grande parte da riqueza - fazia parte do 1% de latifundiários que eram donos de 65% das terras da Nicarágua, recebendo milhões de dólares das empresas estrangeiras que atuavam no país..Era madrugada de 19 de julho de 1979 quando Anastasio Somoza Debayle renunciou ao cargo e fugiu de avião do aeroporto Las Mercedes de Manágua - acabaria por ser assassinado durante o exílio, no Paraguai, em 1980..Os militares que o tinham apoiado abandonaram os uniformes prontos para sair também do país, abrindo caminho aos festejos sandinistas e ao governo liderado pela Junta de Reconstrução Nacional, da qual Ortega fazia parte - e que na prática passou a liderar, a partir de 1981, sendo oficialmente eleito presidente nas eleições de 1984..A vitória foi um revés para o domínio dos EUA na região - os Somoza tinham consolidado o seu poder com o apoio dos norte-americanos, preocupados em plena Guerra Fria em conter os movimentos de esquerda na América Latina..Os sandinistas empreenderam uma série de reformas políticas, sociais e económicas, destinadas a garantir maior justiça social, sendo acusados pelos EUA de apoiarem movimentos revolucionários marxistas na região..O então presidente norte-americano Ronald Reagan, que considerou os sandinistas como "uma ameaça extraordinária para a segurança e a política externa dos EUA", autorizou então a CIA a financiar, armar e treinar um grupo de rebeldes - alguns pertencentes à antiga guarda dos Somoza -, numa tentativa de derrubar a antiga guerrilha. Ficaram conhecidos como os "contra"..A guerra civil e a crise económica acabariam por pressionar os sandinistas e, nas eleições de 1990, acordadas após a assinatura dos acordos de paz, Ortega perdeu para a União Nacional Opositora, liderada por Violeta Chamorro. A viúva do jornalista opositor Pedro Joaquín Chamorro Cardenal, diretor do jornal La Prensa, tinha feito parte da Junta de Reconstrução Nacional como membro independente, durante o primeiro ano da vitória da revolução..Depois de mais de 15 anos na oposição, Ortega voltaria ao poder também através das urnas, em 2007. Desde então, ganhou mais duas vezes, em 2011 e em 2016, esta última após ser aprovada uma emenda constitucional que permite a reeleição ilimitada. A sua mulher, Rosario Murillo, com quem se casou em 1978 e que apelida de "eternamente leal", foi eleita vice-presidente, com acusações de benefícios para a família. O atual mandato termina em 2022..(Notícia atualizada às 10.30 de quinta-feira, com reaparecimento do presidente)