Fabio Levi: "Falar do Holocausto é cada vez mais difícil"

O centenário do nascimento de Primo Levi é o momento para a primeira encenação nacional de <em>Se isto É Um Homem</em> e de questionamentos perante o esquecimento "clamoroso" na história mundial recente. O historiador Fabio Levi recorda o escritor e o seu diálogo pela memória em entrevista.
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Pela primeira vez, a obra de Primo Levi Se isto É Um Homem está a ser representada em Portugal. São 14 subidas ao palco do Teatro Joaquim Benite, em Almada, a que se juntam mais dois eventos para celebrar o centenário do nascimento do autor no nosso país.

Entre os espectadores da primeira representação na semana passada estava Fabio Levi, o diretor do Centro Internacional de Estudos Primo Levi, em Turim, que veio participar em alguns dos eventos, como a projeção do documentário Primo officio dell'uomo, de Peppino Ortoleva, que amanhã acontece no Instituto Italiano de Lisboa.

O programa de evocação do centenário do nascimento de Primo Levi conta com um pensamento do escritor tão premonitório como preocupante: "Dei-me então conta de que no liceu continuava a ler-se Se isto É Um Homem, mas os jovens tinham começado a considerar os factos descritos no livro como algo não acontecido neste continente neste século, mas como algo muito distante no espaço e no tempo."

Fabio Levi, que apesar do apelido não tem parentesco com Primo Levi, "não esperava" pela dimensão desta evocação, se bem "que fosse o meu desejo". Ao DN confirmou que o Centro que dirige tem mediado nos últimos dez anos muitos pedidos sobre a obra de Primo Levi, entre os quais as edições na China e no Vietname, e que o filho do escritor "estava muito interessado nesta representação teatral".

Fabio Levi aproximou-se da obra de Primo Levi devido aos seus próprios interesses historiográficos: "Sou historiador e os meus estudos convergiam com os do escritor." Considera que, cem anos após o nascimento de Primo Levi, o seu legado ainda é apreciado e que isso acontece em iniciativas em todo o mundo: "Primo Levi era uma pessoa muito amada e testemunha do Holocausto, mas reconhecido universalmente como um grande escritor e um homem do pensamento que soube afrontar questões cruciais da realidade contemporânea de um modo muito particular."

Segundo Fabio Levi, o escritor "tinha uma grande abertura e uma paz que sempre seduziu os seus leitores". Por isso diz: "A ligação com a sua obra é muito fácil porque Primo Levi não pretende a submissão do leitor, antes facilita o diálogo. Ele tentou sempre dialogar com todos os interlocutores possíveis durante a sua vida, e entre o público pelo qual se interessava estavam as escolas e o trato direto com os jovens." O mesmo se passava com os "interlocutores alemães, porque depois da II Guerra Mundial queria compreender como era este povo". Assim, diz, "construiu um diálogo que é reproduzido nos seus livros, que nos colocam constantemente perguntas, e os leitores sentem necessidade de dar resposta ao escritor. Esta relação de diálogo qualifica de uma forma especial Primo Levi e torna fácil a relação com ele".

O legado de Primo Levi mantém-se atual?
Sim, porque os argumentos que Primo Levi usou no testemunho sobre o Holocausto tocam em questões cruciais ao investigar o ser humano em certos aspetos fundamentais para a vida do homem a partir do livro Se isto É Um Homem, e continuou a fazê-lo por toda a vida. Primo Levi não escreveu "Se isto é um hebreu", mas Se isto É Um Homem, em que destaca questões que têm que ver com toda a dimensão universalista da sua obra. No entanto, não se limitou a estas questões, pois no decurso da sua vida colocou questões que são parte da cultura contemporânea, por exemplo a ciência. Ele era químico de formação, questionava os problemas que decorrem entre a ciência e a vida sob o olhar do homem comum e o que na vida quotidiana pode ser comparado com o empenho na investigação científica e tecnológica. Deste ponto de vista, é muito importante toda a reflexão relativamente ao uso de terminologia científica na literatura. Ele dizia que estava em vantagem perante os outros escritores porque conhecia a linguagem científica, que utilizavam sem saber exatamente o que significa. Este era um âmbito da cultura contemporânea que ele trabalhava e que o distancia do testemunho de Auschwitz. O tema do trabalho e a transformação da sociedade do pós-guerra é um tema que lhe interessou também, como trata o seu protagonista Faussone, um construtor de pontes que corre o mundo e faz um trabalho autónomo em função da sociedade industrial, em vez de ser um dos operários da cadeia de montagem fechados numa fábrica. Uma situação muito diferente do trabalho nos campos de concentração, onde o operário pode ser muito explorado mas todas as noites volta a casa.

A sua vida foi dedicada em muito à memória de Auschwitz. Era a única maneira de sobreviver após a libertação?
Ele dedicou uma boa parte da sua vida não só a manter a memória de Auschwitz mas a agregar interlocutores que pudessem ajudar nessa mensagem. Não ficou apenas reduzido a Auschwitz, teve uma vida total e desenvolveu a sua capacidade de escrever de um modo extraordinário. Ele queria ser um escritor provavelmente antes de Auschwitz, mas só se tornou escritor graças ao campo. No entanto, não se fechou nesse tema e escreveu sobre muitos outros. Afinal, é um dos autores mais importantes da literatura italiana contemporânea e o mais traduzido no mundo. É correto dizer que fazia questão que gerações sucessivas conhecessem o que aconteceu.

É cada vez mais difícil falar sobre o Holocausto?
Nunca foi fácil falar de Auschwitz. Se os jovens de hoje quase desconhecem este assunto é porque nas escolas não falam dele. Em Itália deixou de fazer parte das matérias obrigatórias a lecionar. Eu nasci no pós-guerra e no meu tempo falava-se muito pouco disso também, mesmo em minha casa. O Holocausto era então um acontecimento recente e hoje, tal como a II Guerra Mundial, está muito distante, e cada vez com menos testemunhos diretos. O mundo mudou e os meios de comunicação e os problemas do mundo também se alteraram. O horizonte alargou-se muito e é um mundo diferente, onde falar do Holocausto é cada vez mais difícil. É preciso ultrapassar obstáculos muito grandes mesmo que um autor como Primo Levi possa ajudar a superar esse vazio, porque a sua atenção é muito focada na alma humana e possui uma capacidade de tocar os sentimentos. É extraordinário constatar como através dos seus livros ele entra numa relação direta com gerações sucessivas. Um clássico da literatura toca sempre novas gerações, e Primo Levi era a favor da verdade, por isso impunha-se a quem estava perto ou distante ao apresentar problemas de carácter ético que vão além dos tempos, e como tinha uma capacidade de clareza na sua exposição isso ajudava qualquer um a compreender os factos.

Tem um livro sobre Primo Levi, Diálogos. Qual era o seu objetivo?
Acompanhei a sua determinação em visitar escolas. Ele não ia como escritor, antes dizia que era um químico que teve uma experiência terrível e que estava à disposição dos jovens para perguntas. Dei-me conta de que eram mais do que encontros com estudantes, tal era a forma como Primo Levi se colocava perante o diálogo com os interlocutores, e eu quis ressaltar esta dimensão dialogante. Primo Levi queria comunicar com o próximo e eu quis analisar como esta relação se manifestava, que foi refinada com o tempo e os diversos interlocutores.

Como se inicia Primo Levi, químico de profissão, na escrita?
Primo Levi escreve um primeiro texto em 1945 quando regressava a Itália com um colega preso, Leonardo Benedetto. Era um relatório sobre as condições higienossanitárias no campo de concentração a pedido dos russos que os libertaram. Eles achavam necessário estudar as razões de tantas mortes porque, creio, pensavam que era a falta de condições a explicação para tantas vítimas. Os russos atribuíam um pouco ingenuamente este número às más condições porque não tinham percebido que os nazis destruíam de forma maciça os deportados pela morte. A morte era o objetivo e não a consequência. Primo e Benedetto escreveram o relatório e publicaram-no em 1946 numa revista médica, tornando-se a primeira descrição de Auschwitz e do extermínio editada em Itália. Se isto É Um Homem veio depois, foi escrito entre 1946 e 1947.

O relatório foi-lhe pedido, o livro não?
É verdade, e a intenção era muito diferente da do relatório. Se isto É Um Homem nasce de outra forma, que Primo Levi disse ter sido assim: quando regressou de Auschwitz não podia evitar falar com toda a gente sobre o que viveu, tanto que a dado momento os seus amigos já estavam cansados e disseram-lhe para escrever isso. E ele escreveu. Começou a partir do último capítulo, as coisas mais recentes e que recordava melhor. Após ter escrito não se sentiu livre de Auschwitz, mas aliviado por pôr fora de si uma experiência tão traumática. Também disse que era uma espécie de prótese que era exterior ao seu corpo e até à sua memória, que ajudava a aliviar a memória de um peso excessivo. Ou seja, uma história psicológica do seu trauma de Auschwitz.

Como separou a emoção da realidade?
A narrativa é muito pacífica, não mostra ódio. Creio que para ele esse resultado não foi muito fácil, porque Primo Levi parecia que não se retratava e perante eventos clamorosos não se deixou levar pela emoção. Toda a sua calma no livro é fruto de um esforço em que teima não impor ao leitor as suas emoções. Espera que seja o leitor a sentir-se obrigado a pôr fora as suas próprias emoções perante o que o testemunho revelado.

Comemorações do centenário de Primo Levi em Portugal

Até dia 18, representação Se isto É Um Homem, no Teatro Joaquim Benite, em Almada.

Amanhã, dia 9, projeção do documentário Primo officio dell'uomo, no Instituto Italiano de Lisboa.

No sábado, dia 13, colóquio na Casa da Cerca, em Almada, sobre o tema "As palavras e o mundo na herança de Primo Levi".

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