A esquerda quer revolver o problema da despenalização da eutanásia até ao início das férias parlamentares, no verão. Os cinco projetos de lei apresentados - PS, BE, PAN, PEV e IL - serão discutidos na semana que vem (dia 20, quinta-feira), mas a votação que se seguirá será apenas na generalidade. Depois os projetos aprovados baixarão à comissão parlamentar de Saúde para discussão na especialidade, sendo o objetivo de todos os partidos com projeto apresentado conseguir-se um texto único, que depois regressará ao plenário para votação final global..Sabendo-se que há agora maioria para aprovar a despenalização da eutanásia - ao contrário do que aconteceu em 2018 -, sabe-se também que pelo menos a mesma maioria será contra a eventual realização de um referendo nacional, negando assim provimento a uma petição que está a ser dinamizada por movimentos católicos (e expressamente apoiada pela Conferência Episcopal Portuguesa)..Os olhos dos que se opõem à despenalização da eutanásia viram-se assim para a Presidência da República. Marcelo Rebelo de Sousa, um católico convicto que é contra a despenalização da eutanásia, terá uma palavra decisiva sobre o projeto de lei que for aprovado no Parlamento..São quatro as opções do Presidente: promulgação da lei (o que deixaria os opositores da despenalização profundamente dececionados); veto constitucional preventivo (pedir aos juízes do Tribunal Constitucional (TC) a fiscalização preventiva da conformidade com a Lei Fundamental); veto constitucional sucessivo (fiscalização pelos juízes constitucionais mas só depois de a lei entrar em vigor); e veto político (devolução do diploma ao Parlamento, podendo este reconfirmá-lo de novo, algo a que se seguiria uma promulgação obrigatória pelo Presidente da República).."No último segundo".Marcelo mantém-se em silêncio sobre o assunto - o que potencia preocupações dos que se movimentam para que a despenalização não vá avante e que contam com o seu empenho. E mais preocupados ficaram depois de dizer que só se pronunciará "no último segundo" porque "não é possível ter propriamente uma predeterminação sem saber se há decisão do Parlamento e qual é a decisão.".A opção de suscitar a fiscalização da constitucionalidade da lei - poder que, aliás, o Presidente não gosta de usar - conta no entanto com um adversário de peso: o próprio presidente do TC, o penalista de Coimbra Manuel Costa Andrade (que, como Marcelo, foi deputado do PSD na Assembleia Constituinte, de 1975 a 1976)..Se Marcelo enviar a lei para o Palácio Ratton, os juízes não terão outro remédio senão analisá-la, quer queiram quer não. Mas, em tempos - quando ainda era só professor universitário em Coimbra, sem a responsabilidade de presidir o TC -, Costa Andrade deixou bem claro o que pensava: "Isto não é um problema constitucional. É um problema de opção do legislador ordinário [no Código Penal].".Falando em julho de 2016 no Parlamento, quando em comissão se discutia uma petição pedindo a despenalização da morte assistida, Costa Andrade considerou "que qualquer das soluções é constitucional, tanto a admissão da eutanásia como a da negação." Ou, dito de outra forma: não é pela Constituição que há um problema numa eventual despenalização da eutanásia. A Lei Fundamental permite, na visão de Costa Andrade, tanto a solução que está em vigor (ver caixa ao lado) - que aliás o penalista presidente do TC defende - como nenhuma penalização..Num eventual julgamento constitucional de um diploma aprovado na Assembleia da República, o que estará sobretudo em causa é o n.º 1 do artigo 24.º da Constituição ("Direito à vida"). O qual diz simplesmente isto: "A vida humana é inviolável." É aliás o mesmo artigo que, no n.º 2, diz que "em caso algum haverá pena de morte". O número 1 do artigo seguinte, 25.º, ("Direito à integridade pessoal") também poderá ser usado: "A integridade moral e física das pessoas é inviolável.".Dois juízes de esquerda a menos.Resta saber se a visão de Costa Andrade - que no fundo legitima a constitucionalidade da despenalização da eutanásia - é acompanhada ou não pelos restantes juízes em funções. O que se sabe do elenco do Tribunal Constitucional é que a esquerda está "coxa", dadas as saídas recentes - ainda sem substituição - de Clara Sottomayor (indicada pelo BE) e de Cláudio Monteiro (indicado pelo PS)..Na próxima semana, assim que chegar da visita à Índia que iniciou na quinta-feira, o Presidente vai receber em Belém apoiantes do "não": "Um grupo de líderes religiosos de várias confissões, bem como do bastonário da Ordem dos Médicos", segundo foi anunciado no site da Presidência..Médicos e enfermeiros contra.A Ordem dos Médicos já enviou um parecer ao Parlamento em que rejeita todos os projetos apresentados. Tanta a eutanásia como o suicídio assistido "não poderão ter lugar na prática médica segundo a legis artis e a ética e a deontologia médicas". São práticas "que se situam fora dos princípios da medicina"..A Ordem dos Enfermeiros também já enviou o seu parecer e também está contra. No seu entender, os conceitos de morte medicamente assistida e de suicídio assistido "carecem de maior clarificação e maturação quer quanto à regulação quer, essencialmente, quanto ao fundamento". "Até que se obtenha um consenso ético relativamente a estas matérias", esta discussão "não pode ou deve sobrepor-se ou antecipar-se à necessidade de assegurar uma rede nacional de cuidados continuados e paliativos adequada.".Já os conselhos superiores da Magistratura e do Ministério Público preferiram não se pronunciar pelo sim ou pelo não dizendo que isso não lhes compete..Hospitais privados dizem não.Um aspeto quase unânime nos cinco projetos - exceto no do PEV - é a possibilidade de a eutanásia ser feita tanto em estabelecimentos de saúde públicos como privados ou sociais (IPSS)..Ontem, os grupos hospitalares privados José de Mello Saúde e Luz Saúde anunciaram que nos seus estabelecimentos não haverá eutanásia - em ambos os casos por decisão dos respetivos conselhos de administração..O Grupo José de Mello Saúde explicou a decisão num comunicado interno enviado aos trabalhadores: "No âmbito da discussão na Assembleia da República sobre a despenalização da morte medicamente assistida, a José de Mello Saúde e os seus Conselho Médico e Conselho de Enfermagem vêm reafirmar o compromisso com o seu Código de Ética, aplicável a todas as unidades da rede CUF, que consagra o princípio do respeito absoluto pela vida humana e pela dignidade da pessoa.".Prisão até cinco anos.Há pelo menos três artigos no Código Penal segundo os quais a eutanásia ou o suicídio assistido podem ser punidos..Artigo 133.º Homicídio privilegiado Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos..Artigo 134.º Homicídio a pedido da vítima 1 - Quem matar outra pessoa determinado por pedido sério, instante e expresso que ela lhe tenha feito é punido com pena de prisão até 3 anos. 2 - A tentativa é punível..Artigo 135.º Incitamento ou ajuda ao suicídio 1 - Quem incitar outra pessoa a suicidar-se, ou lhe prestar ajuda para esse fim, é punido com pena de prisão até 3 anos, se o suicídio vier efetivamente a ser tentado ou a consumar-se. 2 - Se a pessoa incitada ou a quem se presta ajuda for menor de 16 anos ou tiver, por qualquer motivo, a sua capacidade de valoração ou de determinação sensivelmente diminuída, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.Outros países.Holanda e Bélgica A Holanda foi o primeiro país europeu a legalizar a eutanásia, em abril de 2002, dando contornos legais a uma prática que já era tolerada. O processo implica o acordo de dois médicos e é restrito a cidadãos holandeses. A eutanásia pode ser pedida por menores a partir dos 12 anos, com o consentimento dos pais. Na Bélgica, estas práticas foram aprovados também em 2002. As exigências eram as mesmas do país vizinho. Mas, em 2014, a Bélgica avançou com uma alteração à legislação que a tornou um caso único: a permissão da prática de eutanásia a menores de qualquer idade, impondo que sejam vítimas de uma doença incurável, mas com capacidade de discernimento. O pedido tem de partir do doente e dos seus representantes legais..Luxemburgo A prática de eutanásia e suicídio assistido estão legisladas desde 2009. No ano passado, o governo anunciou que tais práticas passavam a ser consideradas como morte natural. Para pedirem que lhes seja posto termo à vida, os doentes têm de estar numa situação médica sem saída..Suíça e Austrália A Suíça é o país que proíbe a eutanásia mas que aceitou o suicídio assistido. Esta formulação legal permitiu que empresas como a Dignitas e a Exit exerçam a sua atividade, já apontada como "turismo da morte", a nacionais ou a estrangeiros. No estado de Vitória, na Austrália, em junho de 2019, entrou em vigor a lei que permite o suicídio assistido, mas só a nacionais e a doentes em fase terminal com mais de 18 anos e com uma expectativa de sobrevivência inferior a seis meses ou menos de um ano para as pessoas que sofrem esclerose múltipla ou doenças neuromotoras..EUA, Canadá, Colômbia e Uruguai Nos EUA, a eutanásia é criminalizada, mas o suicídio assistido é permitido em cinco estados, Oregon, Vermont, Washington, Montana e Califórnia. No estado do Oregon, esta prática é anterior à da Holanda, data de 1997 e resulta de um referendo em que 51% dos eleitores aprovaram a Lei da Morte com Dignidade. No Canadá, a situação é recente. Foi em 2016 que o país legalizou a eutanásia só para doentes em fase terminal. Os juízes do país consideraram, de forma unânime, que o direito à vida não obriga a uma absoluta proibição da morte assistida. A Colômbia e o Uruguai também adotaram normas legais para a despenalização judicial do que definiram como "homicídio piedoso" pedido por um doente em estado terminal.