Foi a acenar com uma profunda reforma da Organização das Nações Unidas que António Guterres chegou ao cargo de secretário-geral da instituição. Quase três anos depois, a ONU cumpre 75 anos num ambiente dominado pela impotência causada por fatores externos como a crise climática e a pandemia, mas também pela tensão entre Pequim e Washington.."O problema é que grande parte do mundo questiona se a ONU ainda é relevante aos 75 anos", comentou ao The Guardian Sherine Tadros, a chefe do gabinete da Amnistia Internacional nas Nações Unidas. "Para utilizar uma analogia da covid-19, é uma questão de saber se tem demasiadas condições pré-existentes subjacentes para passar por este próximo período.".Pela primeira vez na história, a Assembleia Geral da ONU, palco quer de históricos quer de soporíferos discursos decorre quase sem representantes na sede em Nova Iorque. Devido à pandemia, os chefes de governo e de Estado dos 193 membros da organização dirigem-se à assembleia através de mensagens em vídeo.."Num mundo virado do avesso, este salão da Assembleia Geral está entre os cenários mais estranhos de todos", comentou Guterres na abertura do debate geral, que dura uma semana..De seguida o dirigente português lançou um alerta sobre o perigo de uma nova guerra fria que volte a dividir o mundo num momento em que a união é indispensável.."Estamos a avançar numa direção muito perigosa. O nosso mundo não pode ter um futuro onde as duas maiores economias dividem o globo numa grande fratura - cada uma com as suas próprias regras comerciais e financeiras e recursos de inteligência artificial e internet", advertiu o secretário-geral.."Uma fratura tecnológica e económica arrisca-se inevitavelmente a transformar-se numa fratura geoestratégica e militar. Temos de evitar isto a todo o custo", exortou..Sob a liderança de Donald Trump a Casa Branca seguiu o caminho da desvalorização de organizações internacionais como a NATO, a União Europeia e as Nações Unidas e respetivas agências, como a Organização Mundial de Saúde, e retirou-se de tratados como o "unilateral" e "injusto" Acordo de Paris sobre o clima ou o "horrível" acordo nuclear com o Irão, como classificou durante o seu discurso à assembleia geral..Na mensagem, Donald Trump manteve a sua abordagem pouco diplomática, ao mencionar o novo coronavírus como o "vírus da China" tendo requerido às Nações Unidas a "pedirem responsabilidades à China" pela sua atuação na fase inicial da expansão da pandemia de covid-19, ou nas suas palavras, por ter "libertado esta praga"..Na sua intervenção o presidente norte-americano acusou Pequim de não ter alertado para os riscos reais da propagação do novo coronavírus e de ter "ocultado factos relevantes" sobre a crise sanitária, pelo que defende sanções da ONU à China..Por fim apontou o dedo aos chineses na área ambiental, tendo acusado o governo chinês de ser o principal poluidor dos oceanos, com o depósito de toneladas de plástico nas águas.."Aqueles que atacam o registo ambiental excecional da América enquanto ignoram a poluição desenfreada da China não estão interessados no ambiente", disse Trump pouco antes de ser transmitido o discurso do homólogo, Xi Jinping. Trump não explicou em que medida os EUA mantêm um registo ambiental "excecional", mas é digno de registo que no mesmo dia dois ex-diretores da Agência de Proteção do Ambiente na era de George W. Bush (Christine Whitman e William Reilly) tenham anunciado que devido às políticas nefastas para o meio ambiente e ao combate às alterações climáticas irão trocar fidelidade aos republicanos pelo voto em Joe Biden, noticiou o Washington Post..O futuro dos EUA no Acordo de Paris será determinado nas eleições de 3 de novembro, uma vez que o candidato democrata comprometeu-se a regressar ao tratado, bem como em avançar para uma sociedade com neutralidade de carbono até 2050..Até às eleições, pelo menos, não se descortina um alívio nas relações com a China. Para Pequim, os EUA são culpados por "obstruir" a luta global contra as emissões de CO2, em contramão com a China, que se comprometeu em tornar-se neutro em carbono no prazo de 40 anos..No seu discurso à ONU, Xi Jinping apresentou a China - o maior poluidor do planeta, responsável por 25% dos gases com efeito de estufa que se refletem no aumento das temperaturas - como campeão da luta contra as alterações climáticas e do multilateralismo, ao dizer que o acordo de Paris "delineia os passos mínimos a serem dados para proteger a Terra", e que "todos os países devem tomar medidas decisivas para honrar este acordo", uma ferroada aos EUA..A China pretende ter "um pico de emissões de C02 antes de 2030 e atingir a neutralidade de carbono antes de 2060", anunciou Xi..Se a China atingir a neutralidade de carbono até 2060, poderá reduzir o aquecimento global previsto em 0,2 a 0,3 graus Celsius, o maior potencial de queda desde que o Acordo de Paris foi subscrito em 2015, comentou a ong Climate Action Tracker..Sob o mandato de Trump, os Estados Unidos - o segundo maior poluidor do mundo - retiraram-se do acordo, tendo culpado a China de criar um impasse no combate às emissões globais.."Isto claramente obstrui seriamente o progresso da redução das emissões globais", disse o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China, Wang Wenbin. "Que qualificações tem um tal país para criticar a China", perguntou, citando a sede americana por plásticos e a sua exportação de resíduos..Wang salienta que a China alimenta quase 15% das suas necessidades energéticas com combustíveis não fósseis e que a "instalação de energia renovável na China representa 30% do total mundial"..As críticas aos EUA e a Trump não ficaram pela questão ambiental, numa altura em que os dois países se engalfinham não só pela guerra comercial iniciada pela Casa Branca, mas também tecnológica (5G, Huawei, TikTok), pelos direitos humanos atropelados em Hong Kong e Xinjiang, e por questões de geoestratégia relacionadas com Taiwan ou o Mar do Sul da China..Apesar de nunca ter mencionado o alvo das farpas, Xi, líder de um regime comunista, criticou o "unilateralismo", que não é mais do que "um beco sem saída" e o "protecionismo" e referiu-se à Segunda Guerra Mundial como a "guerra mundial antifascista". Não foi gaffe decerto: a administração Trump tem vindo a denegrir e procurado proibir os manifestantes antifascistas (antifa)..Antifa. Os ativistas de extrema-esquerda que Trump quer banir."Enterrar a cabeça na areia como uma avestruz perante a globalização económica ou tentar combatê-la com a lança de Dom Quixote vai contra o curso da história", disse Xi. "O mundo jamais voltará ao isolamento, e ninguém poderá cortar os laços entre países.".O presidente francês, Emmanuel Macron, respondeu em nome das outras potências, também em vídeo para a Assembleia Geral das Nações Unidas, ao afirmar que o planeta "não pode ser reduzido à rivalidade" entre a China e os Estados Unidos, razão pela qual é necessário construir "novas alianças"..O chefe de Estado francês acrescentou que os restantes países não podem ser reduzidos a "nada mais do que lamentáveis espectadores de uma impotência coletiva"..Nesse sentido, a Alemanha, o Brasil, a Índia e o Japão exigiram um lugar permanente no Conselho de Segurança. "Estamos empenhados em relançar as discussões sobre a reforma do Conselho de Segurança" da ONU, declararam em comunicado conjunto os ministros nos Negócios Estrangeiros do Brasil, Ernesto Araújo, do Japão, Motegi Toshimitsu, da Índia, Subrahmanyam Jaishankar, e o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, Niels Annen..Estes quatro países consideraram que "o mundo hoje é muito diferente daquele que viu a criação das Nações Unidas há 75 anos". Há "mais países, mais pessoas, mais desafios, mas também há mais soluções", acrescentaram os chefes da diplomacia..Os Estados-membros permanentes deste organismo emergem, como as Nações Unidas, da ordem mundial subsequente à Segunda Guerra Mundial, tendo dado primazia aos vencedores, Estados Unidos da América, a Rússia (herdeira da URSS) e o Reino Unido, bem como a França. Em 1971, a admissão da República Popular da China na ONU, em troca com a República da China (Formosa ou Taiwan), concede de imediato um lugar permanente no Conselho de Segurança ao país mais populoso..Há outros dez países a integrar o órgão, mas nenhum tem o direito de veto, poder reservado aos cinco permanentes. Estão são escolhidos para um mandato de dois anos, mas cinco são renovados em cada ano..A Alemanha é um dos países que integra este órgão da ONU até ao final do ano, enquanto a Índia deverá ocupar o seu lugar no início de janeiro, por um período de dois anos..A África do Sul, fora desta jogada das quatro potências, e a cumprir o segundo ano como membro não permanente do Conselho de Segurança, pediu através do presidente Cyril Ramaphosa uma maior representação africana no Conselho de Segurança. "A composição atual do Conselho de Segurança não reflete o mundo em que vivemos", disse Ramaphosa. "Reiteramos o nosso apelo a uma maior representação dos países africanos no Conselho de Segurança, e que este seja abordado com urgência nas negociações intergovernamentais. Só através de um Conselho de Segurança da ONU reformado e inclusivo poderemos resolver coletivamente alguns dos conflitos mais prolongados do mundo", proferiu no vídeo..Também os quatro países signatários pela reforma - a única maneira de "preservar a sua credibilidade e criar o apoio político necessário à resolução pacífica das crises internacionais" - consideram necessário ampliar o número de Estados-membros permanentes no Conselho de Segurança, para que seja "mais representativo, mais legítimo e eficaz". Caso contrário, este organismo ficará "obsoleto"..A ambição, já antiga, de alguns estados, dificilmente se materializará..O presidente russo, Vladimir Putin reconheceu a necessidade de adaptar a ONU aos dias de hoje, mas foi claro ao afirmar a sua oposição a mudanças no Conselho de Segurança, onde é uma dos cinco membros permanentes e tem poder de veto..Putin disse que, para que o Conselho continue a ser o "pilar da governança global", é essencial que esses cinco países, todas elas potências nucleares, mantenham o privilégio do direito de veto.