A vida não é um sopro, a juventude não acaba aos 30 e 60 anos também é idade para começar a estudar. É o que provam Adrião, Alfredo e Francisco, a quem foi negado o acesso ao ensino superior quando ainda eram jovens, passando décadas das suas vidas dedicados a trabalhos que não foram aqueles com que sonharam. A esperança não morreu com a idade e, depois da reforma, candidataram-se a universidades para darem asas a sonhos perdidos. O DN conta a história destes estudantes..Perseguir o palco da infância.Da infância em Moçambique, Alfredo Cristelo, atualmente com 70 anos, guarda a memória de uma educação austera, na figura do seu pai. Unia-os a paixão por mecânica e, por isso, o progenitor não quis que Alfredo exercesse outra profissão senão engenheiro mecânico. Ignorou as suas vontades próprias para seguir este caminho e, com 18 anos, inicia um curso, equivalente a um bacharelato, em Eletrotecnia e Máquinas, em Maputo. O que poderia ter sido um caminho de sucesso foi interrompido por uma decisão abrupta e surpreendente para Alfredo, lembra. "No 1.º ano, o meu pai um dia chegou a casa e disse-me que eu tinha de deixar de estudar para trabalhar. 'Meu menino, com a tua idade já trabalhava. Por isso, tens de trabalhar também. Queres estudar, isso é problema teu', disse-me.".Era o segundo sonho travado a fundo, depois de o pai lhe ter negado o jeito e a vontade para estar em cima de um palco a fazer teatro. "Na altura, comecei a fazer umas peças de teatro, que o meu pai proibiu veementemente quando descobriu, porque não queria ter o filho a fazer teatro.".Não demorou até que abandonasse a terra onde nasceu, deixando para trás o rasto desta mesma infância. Em 1967, a poucos anos de irromper a revolução de Abril, ruma em direção a Portugal, mais propriamente a uma "pequena aldeia perto de Rio Maior", já casado e com filhos. Foi por "pressão familiar da minha sogra" e com a profissão de analista programador, um trabalho que conquistou através de um concurso da empresa de caminhos-de-ferro onde trabalhou, que entretanto abriu vagas para se subir de posto na empresa..Tudo tem o seu acaso. Pouco depois de ter aterrado as malas em Portugal, Alfredo depara-se com a carta que mudaria o rumo e novamente a morada da sua vida. "Uma carta da Universidade de Trás-os-Montes [UTAD], a chamar-me para trabalhar com eles num centro de cálculo que iriam criar. Arrisquei e fui", e ainda revolucionou a instituição, lembra. "Quis que não fosse só um departamento dedicado ao cálculo científico, por isso estendi à parte administrativa e a coisa cresceu." Dali, só seguiria para a reforma..Parar, do dia para a noite, deixou mazelas num homem habituado a uma vida ativa. "Foi complicado, porque estava habituado a uma rotina. Nos primeiros tempos, aproveitei para viajar, para passar mais tempo com a minha irmã em Lisboa, com familiares na Alemanha", recorda. Mas não chegava e, com o passar do tempo, a velocidade dos ponteiros desacelerava, os dias custavam a passar, sem trazer consigo qualquer sonho. "Mas a morte da minha cadela, que me ia fazendo companhia, com quem ia falando, fez a diferença. Daí em diante, passava os dias inteiros calado.".É num jantar com uma funcionária da UTAD que a proposta é feita pela primeira vez e semeada no seu consciente: a inscrição numa licenciatura poderia mudar o rumo dos seus dias. Confessa: "Primeiro, hesitei. Depois, achei a ideia interessante." "Estava indeciso entre o curso de Comunicação Social, porque me dizia qualquer coisa, e o de Teatro - não tendo qualquer ideia de voltar à vida ativa, poderia aprender mais e colaborar em peças, regressar ao antigamente", conta. Acabaria por escolher o que deixou lá perdido na infância: Teatro e Artes Performativas..Apesar dos cabelos grisalhos, não destoou entre a camada mais jovem que ocupa em maioria os corredores da universidade. Garantindo que não sentiu um choque de gerações, admite que a sorte também foi semeada à sua porta, depois de se ter cruzado com "colegas jovens do melhor que há no mundo". De Alfredo passaria rapidamente a "vovô Fredo", como ainda hoje é conhecido. "Costumo dizer que a minha idade não bate certo com a minha forma de estar na vida.".Durante três anos, garante, aprendeu "uma nova forma de se relacionar com gente jovem" e descobriu "determinados assuntos, como o próprio início do teatro, os diversos tipos e autores". "Foi muito gratificante", não hesita. A experiência domou o medo e a vontade, por isso Alfredo já está a pensar na pós-graduação..Adrião escolhe viajar para o futuro.Quem o vê, de cabelo e bigode grisalhos, rosto engelhado, não lhe adivinha a vida que trilhou nos últimos 16 anos. Aos 65, Adrião Pereira da Cunha trava a fundo numa carreira de décadas ao serviço de empresas, nacionais e estrangeiras, como comercial. Ter-se casado cedo, aos 20 anos, não lhe permitiu sonhar muito mais, nem com cursos intensivos nem com licenciaturas. "Quem se casa quer casa" e, por isso, sentiu imediatamente necessidade de se "lançar ao mundo do trabalho" para cobrir as suas despesas, conta. Uma missão que só terminou na entrada para a reforma, aos 65 anos..Com a reforma, "um vazio grande" abala os seus dias. "O que vou fazer agora?", questionava-se, certo de que parar não seria o seu destino. "Tenho uma propriedade agrícola e pensei em dedicar-me àquilo, mas continuava a sentir um vazio enorme. Concluí logo que tinha era necessidade de ter um desafio intelectual, da mesma maneira que sempre cultivei o desafio físico na minha vida", lembra. Não lhe ocorreu de imediato ingressar numa universidade. Pelo menos, não uma das tradicionais. Numa primeira tentativa, procurou as designadas universidades de terceira idade e não tardou até compreender que aquele não era o seu lugar nem o desafio que ambicionava. "Senti-me velhíssimo, ao lado de um grupo de indivíduos que faziam aquilo apenas para entreter o tempo." Adrião queria era a missão intelectual da sua vida..Encontrá-la-ia em 2008, numa matrícula espontânea como aluno da Faculdade de Letras da Universidade do Porto da licenciatura de História - "uma paixão antiga", embora "não fosse um aluno brilhante no liceu". Inicialmente, foi apenas "apalpar terreno, ver que notas conseguia alcançar", tirar as teimas e saber, afinal, se ser estudante universitário era, além de um sonho perdido, também um sonho fora do seu alcance. Adrião dá o veredicto: "Fiz tudo dentro do tempo, correu tão bem que segui para mestrado.".Parte do seu sucesso académico, garante Adrião, está na disponibilidade que depressa mostrou para descalçar os sapatos que o colocavam no alto das suas longas décadas de vida para "ser um igual entre iguais". "Foi como ser jovem outra vez", desabafa. E foi exatamente como um jovem que quis viver a vida académica, sendo presença ativa na Queima das Fitas e até no cortejo de final de ano, em que milhares de jovens percorrem o centro da cidade exaltando os seus trajes - uns uma T-shirt das praxes por lavar desde o primeiro dia de licenciatura, outros um imaculado fato preto. Em 2010, puxou da sua cartola de finalista e inverteu a tradição: "Normalmente, nos cortejos, os pais vão ver os filhos e eu tive os meus filhos a verem o pai.".Não se ficou pelo mestrado. Adrião já provou à vida que leva a dele sempre avante. Há uns anos, quando a internet começava a florescer e via os seus filhos a funcionar com computadores, onde num ecrã robusto surgiam gráficos e números que lhe pareciam uma língua tão distante, deu corda aos sapatos e foi pedir umas explicações de informática. Ficar para trás estava fora de questão. Adrião diz estar consciente de que "o tempo passou". E "a pessoa que não assiste à evolução e que não tenta integrar-se no tempo que está a viver morre antes desse tempo", por isso "há indivíduos que morreram ontem e não deram fé", diz, como quem admite o lema de uma vida..Um lema que exige constantes movimentos e viver consoante a sede de conhecimento. Por isso é que, aos 81 anos, Adrião não é apenas licenciado e mestre, mas também doutorado. Admite que só não estudou mais porque já foi até ao fim da linha académica. "Só tenho pena de ter feito tudo tão depressa", lamenta. Mas porque parar continua fora dos seus planos, Adrião já lançou dois livros desde que é aluno e atua agora como investigador na Universidade do Porto..Toda a idade é idade para contribuir para o mundo.A ideia remoía dentro de si há décadas: um dia, quando houver possibilidades financeiras para tal, Francisco Calado iria ser estudante do ensino superior. Talvez já não médico-cirurgião, como sonhou naqueles dias quentes de verão alentejano, a apreciar a anatomia dos animais da sua terra. Mas seria certamente profissional de uma área que apelava igualmente às suas maiores paixões..Aos 67 anos, não tem dúvidas de que o ingresso no ensino superior tinha de ser adiado na juventude. "Desde a minha infância, no Alentejo, tinha os meus sonhos, como todas as crianças, mas quando cresci percebi que não eram realizáveis", lamenta. Para entrar e completar o ensino secundário em Beja, necessitou da ajuda de "uns padrinhos". Foi para a antiga Escola Industrial e Comercial de Beja, onde escolheu estudar Comércio. "Pensei que tinha de começar imediatamente a trabalhar, por isso fui para um curso profissional.".O que se seguiu foi uma carreira saltando de escritório em escritório - apenas suspensa, no arranque, pela obrigatoriedade do serviço militar. Quando regressou, não teve "coragem para retirar o lugar ao rapaz que o estava ali substituir", por isso seguiu em frente. "Fui trabalhar para os escritórios de umas cooperativas comunistas, na Herdade do Pinheiro. Entretanto, aquilo é intervencionado, devolvido ao dono, que queria regressar ao antigamente e ter apenas trabalhadores sazonais, tendo na mira o lucro. Opus-me, porque sabia de uma lei de 1965 que ditava que os direitos adquiridos não podem ser retirados. Perdi esta batalha e fui despedido", conta..Passaria depois pela EDP, mas 31 anos do resto da sua carreira foram dedicados à Caixa Geral de Depósitos. Um emprego que lhe permitia algum espírito de desafio. Durante os anos em que lá exerceu, diz que lhe passou pela cabeça retomar os estudos "e tentar ingressar num curso de Gestão, para subir nos quadros da empresa". O tempo tramou os planos, depois de a mulher ter sido diagnosticada com "uns problemas de saúde graves e desanimei dos estudos". Mas "ideia ficou a doer cá dentro"..Acabaria por reformar-se aos 59 anos, mas com objetivos de 30. A reforma deu-lhe tempo para olhar mais em redor. "Na minha terra, Ferreira, havia muitas estações arqueológicas. Pensei: ora aqui está uma coisa em que posso ser útil, contribuir para a sociedade, de forma ativa. Então, inscrevi-me em Património Cultural e Arqueologia", em 2015-16, na Universidade do Algarve, zona para onde se mudou entretanto, através do concurso Maiores de 23 anos. Parar é que não seria plano: "Não gosto de estar parado, da vida de café.".Por isso, a licenciatura apenas não bastou. Para ser independente no seu trabalho como arqueólogo, Francisco percebeu que precisava também do grau de mestre. "Só como licenciado tenho de ter sempre alguém a supervisionar o trabalho. Se for mestre, já sou mais autónomo, posso submeter eu mesmo projetos. Por isso, inscrevi-me em mestrado." Espera entregar a sua tese em fevereiro do próximo ano, já aos 67 anos de vida.