"Escolas deviam testar a qualidade do ar"
Janelas e portas abertas. Esta vai continuar a ser a "tática" para renovar o ar nas salas de aula das escolas nacionais num momento em que se discute a necessidade de ter uma melhor qualidade do ar em locais fechados como forma de prevenir os contágios por SARS-CoV-2.
Ao contrário de Inglaterra, onde no início de setembro vão começar a ser colocados medidores dessa qualidade do ar na escolas, em Portugal o início das aulas (agendado para a semana de 14 a 17) deverá acontecer com as mesmas regras do ano letivo passado: máscaras, sistema de bolha na turma ("um erro", segundo Manuel Gameiro da Silva, professor catedrático da Universidade de Coimbra) e janelas e portas abertas para facilitar a renovação do ar. Mesmo que faça frio ou chuva. Situação, aliás, que nem é nova para muitos dos alunos do país, já habituados a usar casaco ou mantas durante as aulas.
"Os medidores de CO2 fazem sentido nas escolas e em qualquer edifício. Com a variante Delta, a qualidade do ar assume uma importância ainda maior", explica ao DN Manuel Gameiro da Silva, também especialista em qualidade ambiental nos edifícios, que acrescenta: "As recomendações da DGS que dizem que devemos ter ventilação natural não estão totalmente corretas. Quando temos ventilação natural, o valor máximo da taxa de renovação que conseguimos é de 2,5 a três renovações por hora. Quando queremos chegar às seis renovações, precisamos de ventilação mecânica", diz. Apesar da mais-valia da vacinação, continua, "que diminui a possibilidade de infeção e garante uma letalidade menor, a verdade é que a transmissão não se altera se ficarmos infetados".
"O que nós estamos a verificar é que há três semanas que andamos com mais de 2 mil infetados por dia. Claro que há menos internamentos, mas temos de ter cuidado enquanto os números não baixarem significativamente. Retirar as máscaras, por exemplo, seria um erro e não olhar para a questão da qualidade do ar também o seria. Acresce ainda a questão dos transportes públicos, que tem sido desvalorizada erradamente. Os níveis de CO2 em alguns transportes são preocupantes", afirma.
Questionado sobre a existência ou não de níveis mínimos de qualidade do ar nas escolas portuguesas, Manuel Gameiro da Silva não avança uma resposta concreta. Isto porque "em 2013, acabou-se com a obrigatoriedade das auditorias e, neste momento, deixámos de ter a possibilidade de saber o que é a qualidade do ar dos nossos edifícios. Deixámos de ter um sistema que nos permita fazer essa vigilância. Temos um contrassenso que é a existência de legislação das concentrações que não podem ser excedidas, mas depois nada disso é verificado na prática porque não há auditorias. Se as coisas não são verificadas, não sabemos o que temos nos nossos edifícios", refere.
O especialista em qualidade ambiental nos edifícios salienta o exemplo da Suécia, "semelhante a Portugal em número de habitantes". "Os suecos optaram por uma forma de abordar a pandemia com menos medidas restritivas e, ao fim deste tempo, temos quase o mesmo nível de indicadores em número de infetados e de óbitos. A grande diferença é que, na Suécia, desde a década de 1980, todos os edifícios são verificados no que se refere à ventilação e qualidade do ar. Deve ter tido um efeito notório na diminuição de risco de contágio. E nos outros países nórdicos, como Noruega, Dinamarca e Finlândia, com medidas mais restritivas, mas também com o mesmo sistema de controlo da qualidade do ar, os números de infeções e óbitos são muito menos expressivos do que em Portugal" explica.
Para Manuel Gameiro da Silva, no último ano letivo "a forma como foi dito que as escolas deviam ser geridas em termos de qualidade do ar foi um processo muito desenhado admitindo que grande parte do contágio seria na transmissão por contacto". "Neste momento, já não tenho dúvidas de que o principal veículo de transmissão da covid-19 é através de aerossóis", afirma, defendendo um menor tempo de concentração de alunos dentro de espaços fechados. "Imaginemos que entra um aluno contaminado, a inalação de vírus pelos outros é muito maior na segunda hora em que estão em conjunto do que na primeira. Portanto, colocar alunos uma manhã inteira numa sala, sem intervalos, para evitar cruzamento de turmas é um erro. Uma asneira. É importante que os tempos em conjunto não sejam muito elevados. Nos intervalos, devem abrir-se janelas e portas, limpar os espaços e não se ultrapassar o tempo de uma hora sem intervalo", sublinha.
O professor catedrático da Universidade de Coimbra acredita ainda que a utilização de medidores de CO2 seria "uma grande ajuda no combate à pandemia". "Os medidores não são caros. Por cem euros já se compra um bom equipamento e não é necessário instalar um medidor em cada sala, pois a ventilação e o sistema existente num espaço é normalmente igual às outras salas numa mesma escola. Os diretores podem fazer essas medições e, sabendo analisar os dados, é possível perceber que medidas podem tomar", avança.
Manuel Gameiro da Silva frisa ainda não ser necessário desligar o sistema de aquecimento. "O aquecimento não é uma fonte de vírus. Dar isso como recomendação geral, como foi feito até agora, é um erro", afiança. O especialista salienta a necessidade de uma boa qualidade do ar, "não apenas no contexto pandémico, mas em qualquer altura, pois o próprio rendimento das atividades intelectuais depende da qualidade do ar". "Ter alunos com muito frio, por exemplo, é perder níveis de concentração. O mesmo se passa nas empresas. Se os trabalhadores não estiverem confortáveis e não tiverem boa qualidade do ar nos seus postos de trabalho, a produtividade vai diminuir", conclui.
Já André Pestana, coordenador do Sindicato de Todos os Professores (STOP), defende não ser possível garantir uma boa qualidade do ar mantendo-se o número de alunos por turma. "A questão central que temos vindo a falar mesmo antes da pandemia é a do número de alunos por turma. Além da questão da aprendizagem, temos em algumas regiões do país situações em que se se abre a janela para renovar o ar, os alunos não aguentam o frio. Não há, também, como manter medidas de segurança com a atual ocupação das salas e não se entende a falta de verbas para se avançar com uma redução em contexto de pandemia", explica, referindo-se ainda à recuperação de aprendizagens, que diz estar em causa quando "estruturalmente o número de alunos se vai manter igual". Para o dirigente, o próximo ano letivo "vai manter os mesmos problemas no que se refere à ventilação e vai continuar a ser duvidosa a garantia da qualidade do ar". "Abrir as janelas vai ter consequências para os alunos, pois o grau de atenção, com desconforto térmico, não é positivo", sustenta.
Jorge Ascenção, dirigente da Confap (Confederação Nacional das Associações de Pais), recorda que "o problema dos contágios em contexto escolar poderá ser mitigado com a campanha de vacinação". Contudo, diz, "será necessário arejar as salas em cada intervalo, como foi feito até aqui". "O problema não será a qualidade do ar, mas sim do número de alunos por metro quadrado. Deve ser uma preocupação do Ministério da Educação. O que aconteceu no ano passado é que havia casos em que não se conseguia arejar as salas, principalmente em locais com um inverno mais rigoroso. Põe-se todos os anos esse problema. Muitas vezes, não há aquecimento e era preciso melhorar as condições das escolas", refere.
Jorge Ascenção pede ainda uma melhoria na comunicação. "É essencial haver transparência e proximidade. Com a pandemia houve muita incerteza e fatores que nos ultrapassaram. A gestão da comunicação não foi a melhor. Muitas vezes, as pessoas ficaram na dúvida. Espero que isso esteja ultrapassado, temos de ser claros na informação que estamos a passar", frisa.
Sistema de "bolha", horários concentrados e desfasados, circuitos de circulação interna alternados, lotação limitada de espaços comuns, salas alocadas à mesma turma ou a mesma estratégia para ventilar as salas de aulas (janelas e portas abertas). Serão estas as medidas que, ao que tudo indica, se irão manter no próximo ano letivo.
David Sousa, vice-presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), prevê ter "os mesmos problemas do ano letivo anterior". "Teremos de agir como no ano que passou. Esta questão da qualidade do ar não tem que ver só com a pandemia. É um problema estrutural dos edifícios escolares. Há muitas escolas onde existe desconforto térmico nas situações de extremo calor ou de extremo frio", explica, afirmando que estes problemas existem "até nas escolas intervencionadas pela Parque Escolar". "Houve dificuldades de gestão do arejamento das salas de aula. O que foi feito foi um arejamento muito nos intervalos. O problema da qualidade do ar nas salas de aulas já se arrasta há muito tempo. Nos locais onde funcionam, houve uma melhoria com a colocação dos equipamentos para conforto térmico, mas com a covid foram desligados e teve de se recorrer ao arejamento natural. Não foi ultrapassado o problema. Foi uma gestão à portuguesa", sublinha.
Contudo, o responsável não vê condições para reduzir o número de alunos por turma, uma das medidas que poderiam "ajudar a combater a falta de qualidade do ar". "Neste momento, temos de ser realistas. Uma redução de alunos é impossível de fazer por falta de espaço físico e de professores. Temos um grande número de escolas em zonas urbanas em situação de lotação e sobrelotação e há uma impossibilidade de, sem um programa estruturado e pensado a longo prazo, se reduzir alunos por turma. O ideal era ter 15 alunos numa sala de 40 metros quadrados. Levaria a uma explosão de número de turmas e de professores, incomportável à situação atual."
David Sousa diz ser necessário olhar para "problemas mais urgentes neste momento". "A qualidade do ar é importante, mas há coisas urgentes a que temos de acudir primeiro. O programa 21-23 de recuperação de aprendizagens diz às escolas que têm de fazer mais com os mesmos recursos. Vamos ter de canalizar os recursos para onde são mais urgentes: para os 2.º e 3.º anos de escolaridade. Há muitos alunos de 2.º ano com escrita e leitura muito rudimentares. Há relatos de alunos de 2.º ano que não sabem escrever o nome. É para esses que são necessários recursos. Neste momento, temos os mesmos recursos do ano passado. A grande preocupação é fazer a gestão de crédito horário como se fossem cuidados intensivos", frisa. Para David Sousa, é também premente trabalhar-se na "questão emocional dos alunos que estiveram um ano e meio a bloquear contactos e muito tempo em casa sem socializar".
Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública (ANMSP), também salienta que a garantia da qualidade do ar é "importante mesmo sem o contexto pandémico". "Assistimos todos os anos a problemas térmicos, com crianças que levam mantas para a escola e o inverso também. Não são situações ideais. A ventilação é um recurso útil neste momento, mas no inverno torna-se mais difícil de implementar. Contudo, salienta a previsão de um risco mais reduzido de contágio "não só porque crianças e jovens estão a ser vacinados, mas porque os familiares diretos também foram inoculados".
Já no que se refere à possível mudança na utilização obrigatória de máscara em espaços abertos, o presidente da ANMSP defende a sua manutenção. "As máscaras nas escolas ou noutros locais acaba por ser um mecanismo que reduz o risco e permite continuar as atividades. As máscaras continuarão a ser essenciais. Em alguns grupos, a utilização de máscaras até deveria continuar mesmo após a pandemia, designadamente nos grupos mais vulneráveis", salienta. Sobre a possibilidade de vacinar os menores de 12 anos, Mexia avança estarem já a "fazer ensaios nessa faixa etária". "Sabemos que nas crianças mais jovens o risco é mais baixo, mas se houver benefício não vejo porque não tomar essa decisão", conclui.
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