Um papa-prémios como há muito não se via. Primeiro, a consagração nos prémios da Academia europeia, depois a vitória nos círculos de críticos das cidades americanas; a vitória nos BAFTA e, agora, o Óscar de melhor filme internacional, isto sem contar com a vitória moral de colocar Thomas Vinterberg na corrida de melhor realizador. Apetece perguntar o que tem este filme de especial. Apetece dizer: tem tudo! Após A Festa (1998), The Hunt - A Caça (2012) e A Comuna (2016), outra obra de excelência deste cineasta dinamarquês, alguém capaz de sobreviver nesta indústria cruzando um cinema mais pessoal com encomendas a pensar em públicos mais vastos..Mais Uma Rodada nasce de um projeto íntimo do realizador, uma tragicomédia sobre a arte de superarmos a nossa infelicidade. Quatro professores de uma escola secundária dinamarquesa estão numa crise de meia-idade profunda. Depois de uma jantarada decidem colocar em prática uma teoria muito concreta: ensinar com um certo nível de álcool no sangue. Acreditam que as suas aulas vão melhorar e que o ser humano precisa de estar menos sóbrio. A princípio, tudo resulta bem: os professores soltam-se e as aulas ganham maior vida, mesmo nas suas casas o quotidiano parece menos monótono. O que não estavam à espera é que a dependência do álcool começasse a ficar mais forte e a intensificar-se. A festa do álcool torna-se um problema de vício que afeta as suas vidas pessoais e torna-se notório quer nos seus lares quer na escola, em especial com o professor Martin (Mads Mikkelsen), a viver um período crítico no seu casamento. Um homem que precisa de um despertar de uma vida que parece já ter tido todos os seus objetivos cumpridos..Mais do que ser um olhar em forma de sermão sobre os perigos da dependência, Another Round é porventura um relato sobre uma possibilidade de reinvenção pessoal e íntima. Vinterberg rejeita o vínculo do objeto de autoajuda e encena esta descida à perdição através do álcool como uma espécie de aventura humana. Se eles bebem para estarem vivos, também é verdade que a ressaca lhes ensina a moral do equilíbrio entre a sanidade e a fuga. Nesse sentido, é também um filme sobre uma cultura do álcool, não só como arte dessa fuga mas também como tradição de um desígnio muito nórdico. O dinamarquês ébrio como símbolo de uma sociedade que inclui os copos como estado de alma. E é aí que se torna exemplar o desvio do professor Martin, homem invisível antes da experiência de catarse. Um homem que passa ao lado dos alunos, da vida familiar e mesmo do prazer da camaradagem masculina..Noutro sentido, é também um filme que brinda à vida, uma celebração ao ato de estar vivo e ao prazer de uma euforia interior. Sobre cair, tropeçar, levantar e voltar a cair para depois aprendermos a ficar à tona. Mas, e isso é mais importante, não é moralista mesmo quando lida com a moral. Nem mesmo quando vai fundo na decadência destes quatro amigos autores deste pacto. Jamais se pede ao espectador para se render à comiseração, antes pelo contrário: ficamos cúmplices desta viagem, tanto que a câmara e as emoções fortes do filme fazem-nos desconfiar da nossa sobriedade. Sem ser explícito, é ainda um objeto complacente com os prazeres da bebida e desse estado de euforia, por muito que isso possa invocar os chamados problemas do primeiro mundo. E é precisamente por isso que esse sopro de vida depois acaba por ter um efeito universal. Todos nós podemos ser um daqueles professores e estarmos a precisar de uma explosão na vida que nos obrigue a dançar na rua - ajuda se for ao som da música do clímax final, Scarlet Pleasure - What a Life, provavelmente uma das erupções de alegria mais contagiantes que o cinema moderno nos deu....YouTubeyoutubei0Hsxrl6wYc.Com as devidas distâncias, o argumento de Thobias Lindholm e Thomas Vinterberg evoca um certo espírito de identificação com as lições de O Clube dos Poetas Mortos. Se no filme de Peter Weir havia a dádiva de aprendermos a desfrutar do presente, em Mais Uma Rodada há uma seta que nos faz acreditar que é importante acordar e procurar a vida. Neste conto (sempre realista) de um homem temporariamente quebrado essa mensagem de esperança, vinque-se bem, é tudo menos romantizada, sobretudo porque o desespero da personagem tem uma secura que é contundente. Não esquecer que todo o processo das filmagens sucedeu após a trágica morte da filha de Vinterberg num acidente. Para o realizador, levar este projeto até ao fim foi uma mistura de terapia de luto como gesto de homenagem à filha adolescente..Numa altura em que Hollywood já anunciou um remake com Leonardo DiCaprio no papel principal, importa sobretudo fazer o elogio a Mads Mikkelsen, ator que dá a este professor uma carga humana à flor da pele. De certa forma, é como se a sua performance se abrisse a uma liberdade de movimentos. Performance, costuma dizer-se, mas é mais do que isso, talvez transcendência pura..Mais Uma Rodada é mesmo um dos filmes obrigatórios do lote dos vencedores dos Óscares....dnot@dn.pt