Há aqui muito sofrimento, não é? Há muitas vidas sofridas." José Pedro Soares foi um dos mais de 2500 presos políticos na Fortaleza de Peniche. Saiu no dia 27 de abril de 1974. É, também, um dos 50 sobreviventes. Memória viva de um tempo que é homenageado no novo Museu Nacional da Resistência e da Liberdade, feito no forte, depois da polémica que anunciou ir ser um hotel. A inauguração, como não podia deixar de ser, é no próximo dia 25 de Abril..José Pedro Soares é membro da União de Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP) e pertence à Comissão de Instalação dos Conteúdos e da Apresentação Museológica (CICAM) do Museu Nacional da Resistência e da Liberdade. Ele também contribuiu para que o edifício fosse transformado em qualquer coisa que preservasse a sua memória. Este grupo, que reúne antigos presos políticos e historiadores, desenhou o guião do novo museu, onde haverá um memorial à entrada com os nomes dos que por aqui passaram. Ou penaram..José Pedro e outros resistentes têm mergulhado na documentação, na Torre do Tombo e noutros arquivos, e nas suas memórias, participando na conceção da exposição que abre o museu, Por Teu Livre Pensamento. O título vem do primeiro verso do Fado de Peniche - de Alain Oulman e David Mourão Ferreira, homenageado por Amália. Tem, por isso, passado muitos dias aqui - nunca imaginou tantos, outra vez, mas desta vez por bons motivos. Nota as diferenças enquanto caminha pelo corredor que dá para as celas. "Isto era mais baixo, tiraram as madeiras." As obras estão em curso e vão continuar mesmo depois da inauguração nesta semana, diz a diretora-geral do Património Cultural, Paula Silva, ao DN..E José Pedro percorreu corredores e celas do edifício amarelo que lhe eram familiares. As más memórias voltaram. "Entrei algemado..." e as boas também. "Depois, saímos pela porta grande, com as pessoas todas a receber-nos numa alegria imensa. Foi espetacular o 25 de Abril", conta. "Quando saímos era este largo todo [cheio]... As pessoas cantavam, batiam palmas.".Do 25 de Abril soube numa cela no terceiro piso da Fortaleza de Peniche."Procurámos logo falar com o chefe dos guardas e eles diziam: mantenham-se calmos. Não temos muita informação, mas vocês vão ser libertados", conta. "Às 11.00 veio uma guarnição que tomou logo conta, mas não entrou. E só a 26 é que chegou um outro comando militar para nos libertar. Havia formalidades a preencher e foi já ao fim do dia 26 para 27 fomos libertados", continua. "Mas ao fim do dia, nessa noite, já não dormimos, arrumámos as nossas coisas, fizemos as malas, ficámos à espera, minuto a minuto.".José Pedro passou "cerca de um ano" naquele cubículo. "Andava de um lado para o outro, com as mãos atrás das costas, deitava-me um bocadinho na cama, a porta estava fechada, sempre que necessitava tocava à campainha para o guarda vir. À noite éramos fechados. Para fazer chichi tínhamos um balde", descreve. Da janela vê-se o mar. Naquela época, não. "Era de vidro martelado. Não dava para ver nada.".Os sons são os mesmos. "Os sons das traineiras, das gaivotas, do vento, do mar... Estes sons são os que nos acompanharam toda a vida da cadeia." Fala do tempo livre - uma hora por dia no recreio, para jogar - e da alimentação, "muito má": "Na última semana recusámos a alimentação por duas vezes. Eram uns rabos de carapaus, umas batatas e um molho...".Torturado antes de ir para Peniche.A chegada a Peniche de José Pedro Soares, resistente antifascista, foi precedida por dois interrogatórios na sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, em Lisboa. ("Estive seis dias e seis noites e depois estive seis dias e seis noites"). Findos os interrogatórios na sede, tudo transitou para o forte de Caxias. "Fui preso como militar, fui posto em isolamento e depois submetido a interrogatórios. Dos mais brutais que existem", lembra. Tinha 21 anos. Submeteram-no à tortura do sono. "Devo ter sido dos presos que tiveram mais tempo de tortura de sono." Um dia levaram-no para a sala de interrogatórios. Era dia 6 de agosto. "Só saí de lá no dia 27. Estive durante 21 dias na sala de interrogatórios, só dormi uma noite." Explica: "Fechei a boca, nunca disse nada, recusei-me, levei muita pancada.".A família através do vidro.Na exposição que inaugura o Museu da Resistência e da Liberdade haverá uma secção dedicada aos testemunhos das famílias dos presos políticos. Estará numa sala separada das demais pelas estruturas envidraçadas. É de novo José Pedro Soares quem conta o que aqui se passava: "A esta sala chamávamos o parlatório. Era o sítio de encontro das famílias. Era aqui que se encontravam com os familiares de primeiro grau - pais, filhos, avós." Simula o encontro - um de cada lado do vidro, os presos vinham do corredor das celas. "Falávamos mas não nos tocávamos", diz. Havia sempre um vidro de permeio.."Nós tínhamos de falar alto, se não o familiar não ouvia", conta, mostrando os quatro pontos de visita. "Havia sempre guardas. Havia uma fiscalização da parte dos presos e da parte dos familiares. Isto causava uma certa inibição de falar, as próprias crianças... a menina que punha assim a mão olhava para o guarda a ver o que ele dizia, se ralhava, o que é que acontecia. Portanto, este encontro era um momento sempre esperado da parte do preso, da parte da família, tão desejado, mas depois era sempre pouco à vontade e com dificuldade em falar da vida, das coisas correntes..Uma memória que José Pedro Soares mantém viva é a de uma menina ao colo da mãe com a mão encostada ao vidro. Do outro lado, o pai fingia fazer-lhe festas. "Não havia contacto com as crianças, mesmo os filhos. Só quando havia aniversários, alguém fazia anos, pedíamos uma visita especial e lá tínhamos oportunidade de estar em comum. Mas as visitas eram sempre assim.".O parlatório data de 1967 e é muito mais recente do que a prisão da Fortaleza de Peniche, uma cadeia destinada apenas a homens. Alguns homens foram presos com as companheiras. Mas elas ficavam em Caxias. "Para poderem corresponder-se e visitar-se tinham de demonstrar que eram casados. Então, realizaram-se aqui alguns casamentos. Do professor Borges Coelho, do Domingos Abrantes e creio que mais alguns", conta José Pedro. " Vinha alguém do Governo Civil, era ali que as pessoas se juntavam, os familiares mais próximos, e realizava-se o casamento. E a partir dessa data podiam corresponder-se e encontrar-se de vez em quando com condições para poderem encontrar-se.".O futuro museu irá exprimir o que aconteceu nessa altura, esses casamentos, com algumas fotografias, com a caras das pessoas e contando a história também. E com o testemunho dos filhos, crianças então, adultos hoje..Fugas históricas.Duas fugas marcam a história da Fortaleza de Peniche. A de Álvaro Cunhal em 1960 e a de Dias Lourenço em 1954. "Quando os presos eram castigados eram metidos no fortim redondo, aquilo é uma coisa muito baixinha, sem luz, apenas era dado à noite um tapete para eles se deitarem, muitas vezes era pão e água", explica José Pedro Soares. Não foi o único, mas fê-lo em circunstâncias diferentes. "Estava numa cela e combinou com os colegas armar uma zaragata para ser castigado. Os presos eram despidos antes de ir para lá, mas ele levou uma naifazinha escondida." Era dezembro, muito frio, quando fugiu pelo mar..Fortaleza, prisão, alojamento, museu.A fortaleza, castelo desde o século XVI, recebeu os primeiros presos ainda no século XIX. Em 1824, mais de uma centena de liberais foram aqui encarcerados. Depois do 25 de Abril, as celas de Peniche receberam agentes da PIDE que foram presos e, em 1977, pessoas que vinham das antigas províncias ultramarinas..Em 1934, o Estado Novo prendeu aqui os presos políticos. Em 1945, as instalações são entregues à PVDE (antiga designação da PIDE). Após o 25 de Abril, o forte foi ocupado por retornados. E em meados dos anos 1980 a câmara transformou alguns dos edifícios em museu para, como hoje, proteger a memória.