"Parece que estamos em estado de sítio." O desabafo de Sonia, uma eleitora na fila para votar na passada terça-feira, em Nova Iorque, resume em poucas palavras o sentimento de um país em suspenso. Ao contrário do desejo dos democratas e de muitos analistas, Joe Biden não obteve uma vitória esmagadora nas eleições presidenciais nos EUA, bem pelo contrário. Em cada estado, condado, assembleia, conta-se voto a voto, numa indefinição que está a deixar os norte-americanos à beira de um ataque de nervos. Aos apelos de paciência responderam protestos isolados em várias cidades: a pedir a suspensão da contagem dos votos, do lado de Donald Trump; a lembrar que cada voto conta, do lado de Joe Biden..A coligação Protect the Results, que junta dezenas de organizações para defender os resultados eleitorais, avisava no seu site, na passada quinta-feira, que não estava a apelar a uma mobilização nacional - ainda. Mas acrescentava: "Estejam prontos.".Em entrevista à TSF, o presidente do movimento Black Lives Matter (BLM) em Nova Iorque, Hawk Newsome, já tinha acusado Donald Trump de estar "a alimentar um fogo", promovendo a divisão, e prometia uma resposta em caso de violência. "Temos de defender as nossas comunidades a todo o custo", afirmou Newsome, sem esclarecer se à violência o BLM responderia com violência..Como uma panela de pressão a aquecer em lume brando, "a violência está no ar", dizia ainda Sonia, na mesma altura em que as lojas e os hotéis na luxuosa Manhattan cobriam as montras e as fachadas, para se precaverem contra eventuais protestos e confrontos. Começando no Soho - onde, em junho, muitos comerciantes registaram prejuízos nos protestos contra a morte do afro-americano George Floyd -, a onda de contraplacados de madeira a tapar as montras estendeu-se pelas principais avenidas até chegar à Trump Tower, onde a polícia mantém um forte e visível dispositivo de segurança. Além das fachadas cobertas de grandes marcas como Louis Vuitton, Sacks, Armani, Tiffany ou Van Cleff, alguns acessos à Trump Tower foram cortados, foram colocadas grades junto aos passeios e camiões da polícia em frente ao arranha-céus, símbolo do império Trump em Nova Iorque. "É como se nos estivéssemos preparar para um furacão", assinala uma nova-iorquina.."O medo é o sentimento que, neste momento, grassa mais junto das populações", descreve o diretor do jornal Luso-Americano, Luís Pires, antigo correspondente da RTP e da TVI, a viver há quase 40 anos nos EUA. "Custa-me percorrer as ruas vazias de Nova Iorque. É uma cidade que vive com medo dos conflitos raciais, da violência, de uma possível guerra civil, que não está fora de questão", alerta. Em ano de covid-19, Luís Pires também está preocupado com os efeitos da pandemia. "Já há fome, haverá mais em dezembro. Se não houver uma vacina, será o caos neste país", realça o jornalista residente em Newark, onde se concentra a maioria da comunidade portuguesa da região..O novo coronavírus, que já vitimou cerca de 235 mil norte-americanos, teve um papel decisivo nas eleições. Não só no recorde histórico de votos antecipados - mais de cem milhões de eleitores -, mas também no sentido de voto. Junto à urna depositada junto à City Hall de Newark, Aaron Gibbs, de 44 anos, revelava que estava a votar em tributo à mãe, morta no verão, vítima de covid-19. "Estou a votar pela minha mãe e por todos os que perderam os que lhes são mais queridos durante esta pandemia, que deixou toda a gente perturbada." O afro-americano, funcionário nos comboios de Nova Jérsia, escolheu Joe Biden, explicando que "precisamos de alguém com cabeça fria que traga o mundo de volta àquilo que era antes. Temos de fazer a diferença, temos de trazer de volta a humanidade, o amor uns pelos outros"..Entre os críticos de Donald Trump contam-se também muitos republicanos desiludidos. Dan Eckman, do movimento de eleitores republicanos contra Trump (RVAT), considera que Trump "não representa nenhum dos valores do Partido Republicano. É um pedaço de lixo como ser humano, meteu-se na Sala Oval porque gosta de fama, poder e dinheiro. Não se interessa por ninguém a não ser ele próprio". Para que o partido possa renascer, Dan Eckman desejava que os republicanos fossem "dizimados", porque "uma vitória de Biden daria a oportunidade ao partido de se reconstruir, de se livrar de alguns dos candidatos lunáticos que entraram com Trump, de limpar a casa e voltarmos a portar-nos como adultos"..Já entre os defensores do presidente, Carlos, o porta-voz de um pequeno grupo de jovens apoiantes de Trump, destaca a recuperação da economia e a criação de empregos durante a administração dos últimos quatro anos. Em Nova Iorque, o jovem de Puerto Rico foi dos poucos que saíram à rua na noite de terça-feira, exibindo uma bandeira vermelha com o slogan trumpista "Make America great again". Mas a paragem na icónica Times Square foi breve. Na madrugada eleitoral, as ruas de Nova Iorque ficaram desertas, como a calmaria antes da tempestade..Nos últimos dias, a ansiedade e o nervosismo contidos tomaram conta dos nova-iorquinos, enquanto todos aguardam o resultado das eleições. Alguns já não conseguem ouvir falar no tema. Saturados da espera interminável, desligam a televisão, o rádio e as redes sociais, numa tentativa de aliviar o stress eleitoral. "Esta eleição não tem comparação com nenhuma outra, e eu votei em todas as eleições presidenciais desde 1948", salienta Meredith Mayor, com 95 anos, pousando o livro que lhe faz companhia no parque da Washington Square. Ali bem perto, na livraria Strand, também quase centenária, a proprietária Nancy Bass Wyden verbaliza um desejo partilhado: "Acho que todos queremos que este ano acabe. Queremos que as eleições passem. Estamos todos esfomeados por um sentimento de normalidade. E os livros podem dar-nos isso." Assim se escrevam as próximas páginas desta história..Enviada da TSF a Nova Iorque