Vera* fez nesta segunda-feira 41 anos. Do outro lado do telefone, a voz soa calma, a esperança. É um dia bom, ao contrário de todos aqueles que tem vivido desde que decidiu sair de casa com as duas filhas, de 7 e 14 anos. Acusa o ex-companheiro de violência doméstica - o pai das crianças está ainda acusado, pelo Ministério Público, de ofensa à integridade física qualificada. Terá agredido a filha mais nova à frente da mãe, a quem terá ameaçado de morte muitas vezes. Vera diz que vive com medo. O ex-marido é agente da divisão de trânsito da PSP e todos os dias tem acesso a uma arma. Como única medida de proteção, a vítima tem um botão de pânico..O julgamento está marcado para o dia 15 de maio e o tribunal quer ouvir Vera, as duas filhas e ainda a sua melhor amiga e madrinha de uma das crianças, a quem o agente da PSP terá também ameaçado de morte. O inquérito interno na PSP foi aberto há quase um ano - mas ainda não conheceu conclusão. A única medida instaurada foi a de retirar a arma ao agente quando este não está de serviço, segundo o Ministério Público. Até então, nunca a largara. "Dormia com ela debaixo da almofada, o cano apontado para mim", conta Vera, vários cenários na sua mente, o medo como denominador comum. "E se eu tenho um acidente de carro? E se é ele que é chamado a intervir?", questiona..Moram na mesma cidade - o ex-marido ficou a viver na casa de família, e já terá refeito a vida. Vera também tem um novo companheiro, mas as perseguições, garante, não cessaram. "A mim, às minhas filhas, às pessoas de quem eu gosto", diz. Já teve vergonha, mas o medo impôs-se. Quer contar, voltar a contar e repetir as vezes que forem precisas. "Quanto mais gente souber, mais bem protegida estarei", quer acreditar.."Só não és prostituta porque não recebes dinheiro".Os episódios de violência psicológica e física terão continuado mesmo depois de Vera ter saído de casa, no ano passado. "Perseguiu-me de moto quando eu estava a conduzir e com as minhas filhas dentro do carro. Fazia sinais com a mão, como a dizer 'Vais morrer´", conta. O agente da PSP terá chegado a fazer perseguições à ex-companheira com a viatura da PSP, acusa Vera. "Já percebi um carro da polícia atrás de mim, quando levava a minha filha ao ballet - ela reconheceu o pai, mas eu só me lembrei de fugir. Ele anda armado e eu não sei o que me pode fazer", argumenta..A 14 de março de 2018 apresentou queixa do marido pelo crime de violência doméstica e as duas filhas foram sinalizadas pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ). No mesmo dia, a própria PSP considerou Vera uma vítima de violência doméstica e classificou o seu risco como "elevado". Na sétima pergunta do formulário em que é feita a avaliação de riscos, à pergunta "O/A ofensor/a já utilizou/ameaçou usar algum tipo de arma contra a vítima ou outro familiar ou tem acesso fácil a arma de fogo?", a resposta "Ameaçou utilizar" foi indicada..História antiga: relação durou 23 anos.Vera e o ex-marido começaram a namorar quando ela tinha 16 e ele 19 anos. Estiveram juntos 23 anos. Foi em 2009 que a mulher começou a perceber diferenças no comportamento do companheiro. "Não tinha nenhuma iniciativa positiva na nossa relação, não era um pai presente", descreve. Apesar disso, em 2011, Vera decidiu engravidar de novo. "Tinha esperança de que as coisas melhorassem, mas tudo piorou", recorda. Começaram os insultos, os ciúmes infundados, uma espiral de violência psicológica que Vera não consegue, ainda hoje, entender. ."Dizia-me que se eu quisesse encontrar outra pessoa que o fizesse"..Vera lembra-se dos insultos, da vergonha e da humilhação. A pergunta parece impor-se, mas a narrativa da violência doméstica nunca é linear. Nunca pensou em sair de casa antes? Vera abana a cabeça e assume que tentou ficar porque "gostava dele" e não queria desistir da família..Em 2014, decidiu fazer algo por si mesma e inscreveu-se no ginásio. "Queria sobretudo estar longe de casa e das barbaridades que ouvia", diz. "Ele meteu na cabeça que eu andava com alguém. Dizia-me que se eu não confirmasse esse envolvimento que acabaria com [a vida] dos dois." Visitava-a no local de trabalho - Vera trabalha numa instituição pública -, "as pessoas viam-no completamente transtornado". O agente da PSP terá mesmo ido buscar um amigo da mulher a casa e a proibi-lo de contactar Vera.."És uma puta", "Vaca", "Só não és prostituta porque não recebes dinheiro", "Não vales nada", "És nojenta". Estes eram os insultos, "todos os dias" durante o último ano do casamento. Vera acusa o ex-marido de, em dezembro de 2017, a ter agredido na cozinha. No mesmo ano, e durante o jantar de Natal, "em frente à minha família inteira, disse que quem andava comigo deveria dar-me melhor tratamento", recorda. De súbito, Vera para o discurso, vira o rosto para o outro lado e chora..Agressão à filha mais nova: criança tinha 6 anos."Lembro-me da data - 9 de fevereiro de 2018 - porque era o dia do desfile de Carnaval na escola da minha filha mais nova", começa por contar. O ex-marido pediu para tirar uma fotografia, mas a criança, então com 6 anos, recusou. "Virou bicho, ficou completamente alterado. Agrediu a minha filha e não me deixava chegar até ela. Eu gritei para que ela fugisse para o meu carro, abri as portas com o comando à distância e atirei o telemóvel ao chão na direção dela. Disse-lhe para ligar à polícia, enquanto impedia a passagem para que ele não pudesse alcançá-la." Conseguiram fugir..As duas filhas de Vera continuam a ter acompanhamento psicológico. Segundo a mãe, "têm medo do pai e recusam-se a estar com ele". Vera conta que a mais nova tem pesadelos e já "fez chichi nas calças" várias vezes depois de ter assistido a comportamentos violentos por parte do pai..Após o episódio de agressão, Vera foi ouvida na APAV, e decidiu ir buscar as suas coisas - e as das duas filhas - à casa de família. Pediu à sua advogada para a acompanhar, mas acabou por permanecer na habitação, sem coragem de sair em definitivo. Até ao dia em que foi acordada, "aos gritos", pelo marido: "Ameaçava-me a dizer que tinha fotografias comprometedoras e que a partir do dia seguinte a minha vida iria ficar exposta."."No dia 14 de março de 2018, pelas 02.00, no domicílio comum, quando a vítima se encontrava a dormir, o arguido acordou-a, gritando, dizendo que andava com todos e mais alguns, que os pais da vítima iam saber de tudo, que ia fazer da vida da vítima um inferno, (...) que ela não ia ficar cá para se rir", lê-se no despacho da acusação do Ministério Público. Nesse mesmo dia Vera saiu de casa com as filhas..Ministério Público remete para a PSP esclarecimentos sobre agente.Desde que decidiu denunciar o ex-marido, Vera já contou a história à PSP - quer para apresentar queixa quer para dar início ao inquérito interno ao agente - e ao Ministério Público. Já foi ouvida pela CPCJ e pelo Centro de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental (COFAP) - onde foi feita uma tentativa de convívio das crianças com o pai acompanhados por uma técnica. "Não correu bem, elas não querem estar com ele", sustenta Vera. Por agora, as filhas estão entregues à mãe, um regime provisório decretado pelo tribunal..Ao DN, em resposta à pergunta sobre as medidas de proteção à vítima que foram acionadas, o Ministério Público indicou que "a vitima beneficia de medida de proteção por teleassistência", acrescentando que o Ministério Público requereu, na acusação, "a aplicação da pena acessória de proibição de contactos com a vítima, a ser fiscalizada por meios de controlo à distância"..Foi ainda indicado que "a PSP tomou medidas relativas ao acesso do arguido à arma", remetendo mais esclarecimentos à força de segurança, também no que diz respeito ao inquérito interno daquela polícia..Ao DN, a PSP disse que "o processo disciplinar está em curso e aguarda a resolução do processo crime, embora tenhamos tido conhecimento da acusação do MP em sede de processo judicial" e que, apesar de não ter existido "decisão da autoridade judicial para retirada da arma de serviço", a PSP determinou "o desarmamento fora da hora de serviço" do agente em causa..* O nome foi alterado para proteger a identidade da vítima. Todos os documentos citados foram consultados pelo DN..(Notícia atualizada dia 30 de abril às 11:00 com os esclarecimentos da PSP).