A americana Michelle ri-se quando fala de liderar navios em caça a piratas e até inspirar filmes com Tom Hanks; Mae, também dos Estados Unidos, tenta convencer-me de que ir ao espaço não é nada de especial; Shireen recusa ver-se como heroína das iranianas e inimiga do peito dos ayatollas; Beyalnesh desdramatiza a fuga da Etiópia para Israel no tempo de Mengistu e prefere falar do regresso feliz já como embaixadora; a indiana Tara é tão humilde no que diz respeito ao peso do apelido que só consegue realçar a condição de neta de Gandhi, avô que viu matarem tinha ela 13 anos..Conversei com estas mulheres ao longo dos anos: a primeira almirante de quatro estrelas da marinha americana, a primeira astronauta negra, a primeira Nobel da Paz muçulmana, a primeira etíope a ser embaixadora israelita, a neta preferida do Mahatma, ativista social indiana. Todas elas são exemplos de determinação, basta notar como a palavra primeira se repete..Exemplo é também Michelle, cuja família foi perseguida pela ditadura de Pinochet e ela própria presa e torturada. Mais tarde seria por duas vezes eleita presidente do Chile, a primeira mulher no cargo. E hoje é alta-comissária dos Direitos Humanos. Entrevistada por escrito para o DN antes de visitar Portugal da última vez, foi-me apresentada durante o doutoramento honoris causa em Évora. E de novo a recusa de ser vista como modelo, mesmo que inspire tanta gente mundo fora. "Sem dúvida que a chegada de mulheres a altos cargos mostrou que não há nenhuma razão para haver lugares vedados para nós", disse-me..Comecei por referi-las, de uma Michelle a outra, pelo nome próprio, que cria mais ligação. Façamos agora as apresentações formais:Michelle Howard, 58 anos, almirante dos Estados Unidos recém-passada à reserva depois de ter comandado o flanco sul da NATO. Filha de um sargento, nasceu numa base na Califórnia. Decidida a seguir a carreira militar, alistou-se na Marinha e chegou a servir na Guerra do Golfo de 1991. Aos 39 anos assumiu o comando do USS Rushmore, sendo promovida a almirante de uma, duas, três e quatro estrelas. Já nessa condição liderou uma operação no Índico contra piratas somalis, que surge no filme Capitão Phillips..Mae Jemison, 62 anos, antiga astronauta agora dedicada à educação. Nasceu no Alabama, nos tempos da segregação racial no sul dos Estados Unidos, mas os pais mudaram-se era ela pequena para o Illinois a fim de lhe oferecer melhor educação. E que educação: formou-se como médica e engenheira e antes de ser convidada a entrar na NASA foi voluntária do Peace Corps em África. Foi em setembro de 1992 que foi ao espaço no Endeavor, oito dias passados a olhar ocasionalmente para a Terra, em busca dessa Chicago onde cresceu e chegou a conhecer Barack Obama. Na sua autobiografia é Martin Luther King o grande herói de juventude..Shirin Ebadi, advogada de 71 anos, Nobel em 2003. Tornou-se a primeira juíza do Irão na era do xá, tentou melhorar por dentro a república islâmica fundada por Khomeini em 1979, recorrendo à lei do próprio regime para poder voltar aos tribunais. Defensora dos direitos humanos, acabou por ser repudiada pelas autoridades, mesmo que sejam os colaboradores, não protegidos pela fama, quem mais sofre. Desde 2009 vive na Grã-Bretanha, mas os ayatollahs ainda a pressionam, molestando familiares ou indo ao banco apreender a sua medalha Nobel..Belaynesh Zevadia, nascida em 1967 numa aldeia judaica do norte da Etiópia nos tempos do imperador Hailé Sellasié, emigrou para Israel aos 15 anos depois da tomada de poder por Mengistu, quando o novo líder comunista perseguiu as religiões, incluindo o cristianismo copta que é maioritário. Não falava hebraico, mas fez tudo para se integrar, sabendo que se chegou a Israel de avião, com uma bolsa de estudos, a irmã teve de fazer centenas de quilómetros a pé com os filhos até aos campos de refugiados no Sudão onde, de noite e em segredo, os judeus etíopes eram resgatados por aviões israelitas. Diz que a cor de pele foi menos problema no novo país do que a mudança completa de sociedade, que afetou sobretudo o pai e a mãe, que um dia também fizeram a alyah..Tara Gandhi é filha do mais novo dos quatro filhos de Mohandas Gandhi, a quem um dia o poeta Tagore chamou Mahatma ou "Grande Alma" pelo seu papel na luta pela independência da Índia e pela convivência pacífica entre hindus, muçulmanos, sikhs e cristãos. Ela era adolescente quando o avô foi assassinado por um extremista hindu, que não perdoou a Gandhi nem o discurso integrador dos muçulmanos nem as críticas ao sistema de castas. Ativista social até hoje, Tara luta pela melhoria da condição feminina, mas na realidade contra todas as injustiças..Michelle Bachelet, 67 anos, médica exilada política na era Pinochet, presidente do Chile entre 2006 e 2010 e de 2014 a 2018 (a Constituição proíbe a reeleição imediata), hoje alta-comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Antes, foi a primeira a desempenhar a liderança da ONU Mulheres..Do que cada uma destas mulheres me disse, é talvez a frase que deu título à entrevista à almirante Howard a que mais sintetiza todo o ideal de igualdade: "A bordo não se importam se sou mulher ou negra, os marinheiros importam-se, sim, se sou competente e se tenho espírito guerreiro." De Mae Jemison destaco a busca por inspiração mais do que por modelos, afinal: "Se eu tivesse precisado de uma afro-americana para ser astronauta nunca teria sido, não é? Demasiadas vezes limitamos o que pode ser inspirador. É possível encontrar inspiração em muito do que nos rodeia." E tenta transmitir isso às crianças pelos países onde passa, como Portugal..Quanto ao que ouvi da Nobel iraniana, destaco a frase sobre o lugar das mulheres no islão: "Se tivermos a interpretação correta do islão teremos os direitos das mulheres, assim como democracia", afirmou, recordando que já houve presidentes e chefes de governo muçulmanas.. Já falei do riso da almirante Howard, falo agora do riso da embaixadora Zevadia. E de como a sorrir contou histórias tristes de discriminação. "Tenho tanto a dizer sobre o regime de Mengistu. O meu irmão esteve preso. E foi torturado. Esteve preso três anos e meio só por ensinar hebraico. Era muito difícil ser judeu nessa época. Perseguiam a religião. Quando vieram buscar o meu irmão a casa foi terrível para a família.". De Bachelet fica talvez a mensagem mais dura e mais apelativa: "É preciso mudar esta realidade, acabar com a sobrecarga de trabalho, a discriminação, os estereótipos, a injustiça. E temos de fazê-lo rapidamente, porque podemos esperar outros 70 ou 80 anos para que as coisas comecem a ser mais equitativas. Temos de ser mais decididos em travar a violência doméstica ou no lar; em acabar com o assédio na rua ou no trabalho; em equiparar os salários; em poder trabalhar e conciliar o trabalho com a vida no lar, sem estar sempre esgotadas.".Não, não me esqueci de Tara Gandhi. Dela ficou esta frase, que não é sobre homens ou mulheres, é sobre à humanidade: "Para o meu avô, Deus era o mesmo para todos e nas suas orações tanto lia trechos da Bíblia como do Alcorão, ou dos textos sagrados hindus e sikhs." Guardo ainda a fotografia que me ofereceu dela em criança com o avô.