Eduardo Lourenço, o ausente de si mesmo

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Eduardo Lourenço soube tão bem identificar os seus irmãos de alma num Montaigne ou num Kierkegaard quanto reconhecer a sua orfandade face à ortodoxia católica em que nasceu e foi criado e da qual o exercício de pensar o exilou. Essa ausência de si mesmo pela ausência de Deus confere ao percurso da sua odisseia um inconformismo radical com qualquer dos sistemas em que procuremos sossegar a nossa angústia, dispensando-nos do risco de pensar. Nem o catolicismo tradicional e fechado da Igreja constantinista e antimoderna que se casara com o Estado Novo nem o marxismo mecanicista que surgira para encabeçar a luta revolucionária dos oprimidos poderiam responder à exigência do seu pensamento. Eduardo Lourenço aprendera com Kierkegaard que ser cristão só pode significar a angústia de não poder chegar a ser cristão e compreendera na própria leitura do mundo que o marxismo na sua versão da época, tal como a filosofia de Hegel para o pensador dinamarquês, construía um palácio no seu sistema de pensamento para viver numa cabana na vida verdadeira. A pobre cabana do socialismo real face ao palácio do sistema marxista-leninista, a falsidade farisaica da vivência cristã face à mensagem revolucionária de Cristo, ambas levaram Eduardo Lourenço para o difícil caminho dos heterodoxos.

Quem considerou o seu próprio afastamento das certezas católicas como uma deserção não poderia deixar de reagir com agastamento quando, ao aproximar-se dos seus companheiros de geração marxistas, é por eles qualificado (como o fez, num inicial equívoco, Óscar Lopes) enquanto pensador católico. Antes se veria na imagem do "espião de Deus" com que crismou Kierkegaard. Espião é aquele que ilude as fronteiras e se faz agente duplo entre a lucidez e a ilusão. E nesse papel de espião de um Deus ausente e de malicioso indisciplinador do nosso pensamento se instalou Eduardo Lourenço.

A Revolução de 1974 foi seguida por ele com aquela curiosidade disponível e recetiva que toda a vida o caracterizou. Longe das páginas ressentidas de muitos dos seus companheiros de geração e de posicionamento, como Jorge de Sena ou Vergílio Ferreira, longe também das ilusões redentoras de tantos de nós, Eduardo Lourenço quis acima de tudo compreender sem renunciar ao entusiasmo. A releitura dos seus artigos de 1975 reunidos em O Fascismo Nunca Existiu (título irónico e muito adequado aos dias de hoje) revela alguém que pensa as coisas até ao fim, mas sem deixar que a lucidez mate em si o encantamento pelo novo e o sentimento da solidariedade.

Sempre atento ao acontecer, a sua profunda imersão na historicidade, até ao nível do mais banal quotidiano, dava-lhe aquela maliciosa alegria de descobrir, como Blake, "o infinito num grão de areia", fosse embora esse grão de areia o mais fútil dos nossos divertimentos. Ele aprendera com Kierkegaard que a mais grave das nossas ocupações não passa de "tagarelice quotidiana" face à exigência radical do pensamento.

O seu encontro com o outro genial indisciplinador de almas que foi Fernando Pessoa não poderia deixar de ter consequências profundas em Eduardo Lourenço. Ele viu a extrema novidade de Pessoa na poesia e no pensamento da nossa modernidade e inscreveu-o como rei da Baviera do nosso imaginário. A poesia e a literatura foram para Eduardo Lourenço o lugar para onde levou o seu confronto final com os limites do pensamento. E foi também na poesia e na literatura que encenou a tragicomédia do ser português, querendo-se antes desfazedor de ilusões do que criador de mitos.

Talvez seja aqui que Eduardo Lourenço foi mais profundamente incompreendido, só por ter tido a bondade e a delicadeza de não nos desmentir quando lhe oferecemos o papel de intérprete da nossa portugalidade. E logo a ele, que sobretudo quisera abalar a insegurança da nossa identidade mítica. Com aquele sorriso de quem viveu muito e atravessou com o seu pensamento "selvas, mares, areias do deserto" (como dizia o seu querido Antero), Eduardo Lourenço deixou-se levar para essa imagem de áugure nacional, com a ironia de quem sabe até ao fim a funda irrisão de todas as imagens que deixamos.

Escritor e diplomata

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