Venha a hipérbole: Rolling Thunder é o documentário musical mais importante dos últimos anos. Não é um testemunho de uma época, uma mera descrição de uma digressão ou um tomar do pulso da América a festejar o seu bicentenário. É tudo isso e muito mais, sendo que esse "muito mais" talvez passe por dar ao espectador acesso a um estado de espírito, precisamente o de Bob Dylan, feliz fora e dento do palco. O Dylan trovador e músico, mas também o Dylan que se abre à câmara de Scorsese para dizer que "não se lembra da Rolling Thunder Revue, ainda não tinha nascido"..Usando imagens de arquivo que demoraram 40 anos a ser montadas e uma fórmula de depoimentos do "antes" (feitas na altura) e do "depois" (recolhidas ao longo dos anos e mais recentemente), o documentário de Scorsese é de uma magnificência que as quatro horas de No Direction Home: Bob Dylan não tinham..O cerne deste material são as imagens do cineasta Stephan von Dorp a partir da digressão de Rolling Thunder Revue, conceito de Bob Dylan que quis levar a pequenas cidades americanas em salas de espetáculo não muito grandes a sua música e dos seus colegas como Roger McGuinn, T Bone Burnett, Joan Baez, mas também a poesia de Allen Grinsberg e, mais tarde, Joni Mitchell. Uma digressão para celebrar a cultura folk de uma América em mudança entre 1975 e 1976..O filme está dividido entre imagens dos concertos, em especial das atuações sublimes de Dylan, e uma entrevista longa sua feita agora e em que se percebe que "o não me lembro" era, afinal, boutade. "A vida é sobre criarmo-nos a nós próprios" é uma das frases que diz quando fala ao jornalista Larry "Ratso" Sloman em plena digressão. Mas há também depoimentos de cúmplices como Jim Gianpulos (o produtor da tour), Sam Shepard, Allen Grinsberg, Joni Mitchell, Patti Smith, Sharon Stone (supostamente uma fã que fez parte da entourage) e, sobretudo, Joan Baez, que, segundo Dylan, tinha uma voz que lhe aparecia nos sonhos (ou sonos)....Entre o mito, o facto e a ficção, há material que prova que Dylan conduzia a carrinha e que os Kiss podem ter sido a inspiração para o músico se pintar de branco no palco. Dylan que nestes concertos estava com a voz no seu auge e que diz agora que a máscara que por vezes usava era um instrumento de verdade: "Quem usa a máscara só fala a verdade." De algum modo, este jogo de espelhos com o passado operado por Martin Scorsese é um "conto" de Dylan e a sua verdade..O que é notável no documentário é a forma como se intui que neste período o "trovão" do homem da pandeireta nunca se escondia. O resultado oferece a fãs e a iniciados uma celebração do mundo Dylan num bloco de notas assumidamente com truques de ficção e capaz de pintar um retrato que nunca pretender revelar o enigma do músico ou do homem. É do mito que se trata e por isso há uma sensação de roleta de saudades e afetos, em que o episódio de amor entre ele e Joan Baez ganha uma perturbante carga romântica..Mas se a ficção é possibilidade de performance, a memória que Scorsese evoca é a de um génio em busca de um cálice sagrado. Naqueles concertos adivinha-se que a existência comunitária era a experiência de Dylan. Uma experiência que agora, pelas artes mágicas de Scorsese (que sem ser por acaso começa o filme com um "truque" de George Méliès), pode ficar património de um memorial por uma América que estava "ocupada em nascer".. Classificação: 4