O divertimento começava logo no genérico, com uma animação de Terry Gilliam ao som da marcha The Liberty Bell e um enorme pé que tudo esmagava: eis Os Malucos do Circo - título dasérie Monty Python's Flying Circus em Portugal, que se estreou na RTP a 12 de abril de 1975, às 20.00. Enquanto no primeiro canal o Telejornal mostrava o país em pleno processo revolucionário, a caminho das eleições para a Assembleia Constituinte, o segundo canal dava-nos a conhecer o grupo de seis humoristas britânicos: Terry Jones, Michael Palin, Eric Idle, John Cleese, Graham Chapman e Terry Gilliam. Na verdade, o humor dos Python chegava-nos com algum atraso: o Flying Circus tinha-se estreado na BBC1 a 5 de outubro de 1969.."Os Malucos do Circo é um desfile de humor, humor inglês, pop. Frio e exaltado. Excêntrico e circunspecto. A loucura que anuncia o fim do mundo para depois de amanhã à tarde. Uma mulher nua com cabeça de polícia londrino, de bigodes e capacete. Um cemitério movediço e outras coisas mais..." - era assim que a imprensa portuguesa explicava o que aí vinha e que ninguém sabia muito bem o que era. Por esses dias, à frente de um ecrã de televisão, estava um rapaz de 12 anos chamado Nuno Artur Silva. "A minha vida não seria a mesma se não tivesse visto os Monty Python", haveria de dizer, anos mais tarde, o argumentista e fundador das Produções Fictícias quando se encontrou com um dos seus ídolos, Terry Jones. "Era de facto algo completamente diferente. Foi uma revolução na cultura popular e foi também uma revolução para mim. Pouco depois, muito cedo, comecei a escrever sketches de comédia." O humorista Nuno Markl, que viu a série em 1987, quando ela voltou a passar na RTP2, haveria de recordar esse momento: "Quando vi pela primeira vez a série Monty Python Flying Circus, eu vi a luz."Entretanto, os Monty Python chegavam ao cinema com três filmes - Monty Python e o Cálice Sagrado (1975), A Vida de Brian (1979) e O Sentido da Vida (1983) - que, como era habitual, se estrearam nas salas portuguesas com anos de atraso e sem grandes parangonas. O primeiro foi ignorado pelos críticos de cinema do DN quando se estreou a 27 de outubro de 1978. Os seguintes - A Vida de Brian chegou a Portugal a 14 de novembro de 1980 e O Sentido da Vida a 24 de maio de 1984 - foram arrasados pelo crítico de cinema João Lopes nas páginas do DN, que sobre este último escreveu que "acaba por ser o mais vulgar e conformista dos filmes". Lauro António também não lhe deu muita atenção, referindo-se apenas a uma linha de "humor cáustico e corrosivo" e lembrando que tinha ganho com "alguma polémica" o Prémio Especial do Júri no Festival de Cannes de 1983. "Como sentir o abalo feliz do riso num filme que quase sempre confunde o disparate com a graça?", perguntava João Lopes a propósito de A Vida de Brian. Uma opinião, aliás, partilhada por muita da crítica internacional nos anos de 1980..Em 1996, Nuno Artur Silva, então assessor criativo do diretor de programas da RTP, Joaquim Vieira, propôs repor o Flying Circus numa rubrica intitulada TV Nostalgia, para assim mostrar a genialidade do grupo a uma nova geração: "Há muito que não víamos os Monty Python!", explica. Mas seria preciso esperar pelo novo milénio - e pelos canais de cabo, o YouTube e os serviços de streaming - para que os Monty Python deixassem de ser uns cómicos ingleses que só algumas pessoas conheciam para passarem a ser oficialmente cool e verdadeiramente populares..Do ecrã para os palcos.Algures em 2005. O compositor Luís Tinoco aceita uma encomenda da Orquestra Metropolitana para o projeto Contos Narrados. A ideia era escolher alguns contos, criar música original e pôr de pé um espetáculo no São Luiz Teatro Municipal. Lembrou-se de uns livros ilustrados, de Terry Jones, que tinha comprado há uns tempos: "Fui reler os contos e gostei imenso deles", recorda Luís Tinoco. "Ele tinha escrito estes contos no início da década de 80 para ler à filha, porque achava que os livros infantis que havia ou eram demasiado infantis ou demasiado assustadores. Os contos do Terry Jones não simplificam nada, são inteligentes e desafiadores e ao mesmo tempo com muito sentido de humor." Luís Tinoco enviou um mail à agente dos Monty Python e recebeu uma resposta do próprio Terry Jones: que fizesse o que quisesse. Foi assim que nasceu o espetáculo Fantastic Tales. Nos meses seguintes, entre trocas de mails, Tinoco encontrou-se com Jones em Londres e convidou-o para vir à estreia. Ele tinha outros compromissos nesse dia, mas aceitou vir a Lisboa na véspera, para o ensaio geral. "O Terry divertiu-se imenso, fartou-se de rir. E no final disse-me: vamos ter de fazer mais coisas juntos." Luís Tinoco não cabia em si de contente e o diretor do São Luiz, Jorge Salaviza, abraçou a ideia. Quando o espetáculo com três contos fantásticos de Terry Jones se estreou a 10 de março de 2006 já todos sabiam que iriam voltar a encontrar-se. Ainda algures em 2005. A produtora de espetáculo Sandra Faria vê em Espanha um espetáculo em que um grupo de atores interpretava sketches dos Monty Python e fica com vontade de fazer algo parecido em Portugal. Tratou logo de pôr mãos à obra para conseguir os direitos dos textos e pediu ao humorista Nuno Markl, fã dos Monty Python, para fazer a tradução.."Não existia um texto, eram vários sketches e não só era preciso traduzi-los o melhor possível como depois fazer um alinhamento, colá-los uns aos outros para fazer um espetáculo", recorda a produtora que na altura trabalhava na UAU. António Feio assegurou a encenação e era um dos atores, ao lado de José Pedro Gomes, Miguel Guilherme, Jorge Mourato e Bruno Nogueira. O espetáculo Os Melhores Sketches dos Monty Python estreou-se em setembro de 2007, no Auditório dos Oceanos, no Casino Lisboa. "Foi um enorme sucesso. Acabámos por estender a carreira do espetáculo e depois fazer uma longa digressão pelo país", conta..Um Monty Python em Lisboa.O reencontro entre Terry Jones e Luís Tinoco não tardou a concretizar-se. A ideia era fazer um espetáculo musical, intitulado Evil Machines: Terry escrevia o texto ao mesmo tempo que Luís fazia a música, mais uma vez com muito correio eletrónico pelo meio. Nuno Carinhas deveria fazer a encenação mas rapidamente se percebeu que o inglês "estava cheio de vontade de encenar o espetáculo". "Foi um processo extremamente interativo, ele estava sempre a ter ideias e a alterar as coisas", lembra o compositor..A partir de setembro de 2007, Terry Jones instalou-se em Lisboa. Primeiro, intermitentemente, mas nos últimos dois meses de trabalho numa casa arrendada no Chiado, com a mulher e a cadela, que acabou por ganhar o nome de Nancy, a protagonista de Evil Machines. Nuno Artur Silva lembra-se de que andou a passear Terry Jones por Lisboa e que o levou ao Museu Nacional de Arte Antiga porque sabia que ele gostava muito de história medieval: "Ficou encantado com o Bosch, ficou uns 15 minutos parado à frente das Tentações de Santo Antão." Jorge Salavisa levou-o ao Casino para ver o espetáculo Os Melhores Sketches dos Monty Python. "Ao início ele estava um pouco reticente, por não perceber português mas depois divertiu-se bastante", recorda. Todos os que conheceram o Monty Python nessa altura contam como ele era "simpático e descontraído", nada armado em estrela. "Às vezes, quando lhe pediam um autógrafo, ele assinava como John Cleese, só por brincadeira", conta Luís Tinoco. Aproveitando a presença de Terry Jones em Lisboa, a editora Oficina do Livro lançou o livro Autobiografia de Monty Python, assinado pelos vários elementos do grupo - desta vez, Nuno Markl não traduziu mas voltou a escrever o prefácio. Evil Machines ("máquinas diabólicas") era uma "fantasia musical" com 12 cantores, uma orquestra e várias máquinas malucas em palco, com figurinos originais e muito humor. O espetáculo estreou-se a 12 de janeiro de 2008, no São Luiz, e foi um sucesso..E a história continua.Depois de Terry Jones, continuámos a ter, em Portugal, outras notícias dos Monty Pyhton. Em 2015, a Editora Planeta lançou a autobiografia de John Cleese, Ora Como Eu Dizia. O autor deu várias entrevistas a jornalistas portugueses por videoconferência, incluindo uma ao DN, na qual descartava a hipótese de um regresso dos Monty Python (apesar do sucesso dos espetáculos na O2 Arena) porque "seria necessário um grande investimento e quem tem o dinheiro ficaria muito nervoso com a nossa forma louca de trabalhar". Para Terry Gilliam, Portugal deve ser um pesadelo. Começou com os desentendimentos com Paulo Branco, que ia produzir o seu filme O Homem Que Matou Dom Quixote (desentendimentos que continuam, nos tribunais e nas redes sociais), e continuou, já durante as filmagens, em junho de 2017, quando começaram a surgir notícias de que a produção teria danificado o Convento de Cristo, em Tomar. Também em 2017, Michael Palin esteve em Portugal para participar no Festival Literário de Viseu, Tinto no Branco, onde teve uma conversa pública com o humorista Ricardo Araújo Pereira e falou sobre os seus livros e as suas viagens. Numa entrevista ao DN, Palin lembrava o sucesso dos Monty Python: "Éramos o que éramos. O mais extraordinário foi o facto de seis pessoas se juntarem em 1969, adotarem aquele nome e tentarem criar algo que ainda não se esqueceu. Nem sei como este tipo de humor resistiu tanto. Agrada-nos ter feito algo duradouro, que nos fará ser lembrados e inspiradores.".Ainda neste ano, poderemos ver o filme Citizen Jones. Em 2007 e 2008, o realizador e encenador Frederico Corado acompanhou todo o processo de criação de Evil Machines com o objetivo de fazer um making of do espetáculo. Mas o filme acabou por mudar de rumo: "Fiquei fascinado logo no primeiro dia com a forma de trabalhar do Terry Jones, muito organizado dentro do caos, era como ver um génio a criar. Depois entrevistei-o e ficámos várias horas a conversar. Ele é tão hipnotizante a falar, gostei tanto que achei que o filme deveria ser sobre ele", conta. O projeto acabou por ficar perdido entre outros trabalhos mas, há dois anos, quando soube que Jones estava doente, Frederico, fã antigo dos Monty Pyhton, daqueles que têm a obra toda em VHS e DVD, sentiu que tinha a responsabilidade de terminar este filme: "Tenho de mostrar isto, de alguma forma, às pessoas", diz. "Não como uma homenagem mas porque é importante passar este legado do Terry Jones." E, assim, depois de uma campanha de crowdfunding e de muitas horas na mesa de montagem, Frederico Corado pode garantir que em breve iremos conhecer este Citizen Jones.