Doentes com covid estudados para se descobrir por que têm uns doença grave e outros não

Ana Espada de Sousa é médica especialista em medicina interna, mas deixou a prática clínica há mais de dez anos para se dedicar à investigação. Hoje lidera o Laboratório de Imunologia Clínica da Faculdade de Medicina de Lisboa e uma equipa de investigação do Instituto de Medicina Molecular, que "fez o confinamento no hospital e no laboratório" para estudar doentes com covid-19. O objetivo é descobrir o que leva a que uns desenvolvam a doença de forma grave e outros não. A descoberta pode ser a chave para um novo medicamento e para a redução da mortalidade.
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Quais são os mecanismos imunológicos que fazem com que uma percentagem de doentes com covid-19 desenvolva a doença de forma mais grave e a necessitar de cuidados intensivos e de ventilação mecânica? Esta é a pergunta a que a equipa da médica e investigadora Ana Espada de Sousa fez no início de março e para qual procura respostas desde então. Ainda não há resultados, "estamos agora a fazer as primeiras análises preliminares, mas daqui a um par de meses penso que já estaremos em condições de os divulgar", disse ao DN.

Se obtiverem os resultados pretendidos, a equipa de cientistas do Laboratório de Imunologia Clínica da Faculdade de Medicina de Lisboa e do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes, estará assim a contribuir para uma melhor perceção das alterações no sistema imunológico que diferencia os doentes. E aqueles que tiverem tendência para desenvolver a doença na sua forma mais grave, poderão ser tratados de forma mais adequada para que tal não aconteça. O objetivo é reduzir a mortalidade associada à doença e abrir portas para a descoberta de novos medicamentos.

"Apesar de ser uma percentagem pequena de doentes que desenvolve a doença na sua forma mais grave, é também esta que determina a mortalidade. Portanto, se conseguirmos descobrir as características imunológicas que podem levar um doente à forma mais grave da doença, evitaremos que tal aconteça com melhor tratamento e conseguiremos reduzir a mortalidade", explica Ana Espada de Sousa.

Para chegar a esta descoberta o Laboratório de Imunologia Clínica, que integra médicos, farmacêuticos, bioquímicos, biólogos e biologistas computacionais, está a trabalhar desde março sem parar. "Confinámos no hospital e no laboratório para estudarmos os doentes e analisar amostras", sublinha a investigadora a rir.

Neste momento, têm em mãos dois projetos de investigação que estão a decorrer em paralelo liderados por duas médicas investigadoras doutoradas, um por Susana Fernandes, médica da Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) do Hospital de Santa Maria, e outro por Amélia Trombetta, e para obterem resultados o mais rápido possível toda a equipa de profissionais está a colaborar neles, desde o investigador sénior ao jovem bolseiro.

O primeiro projeto, que tem uma abordagem mais global, já estava em curso mesmo antes da pandemia. "A Susana Fernandes estava a desenvolver um estudo com doentes já na área da falência respiratória aguda associada a infeções virais, como gripe e outras, quando aparece a covid-19, decidimos que deveríamos coaptar o projeto para investigar a nova doença e através dele tentar perceber o que tem de diferente em relação às outras doenças."

O segundo está a ser desenvolvido desde o aparecimento da doença e foca-se mais "no papel que podem ter determinadas células do sistema imunitário, os monócitos, que são células muito importantes na inflamação, para se perceber quais são as alterações que tais células sofrem e se estas contribuem ou não para um processo inflamatório mais grave.

Ambos foram aceites e estão a ser financiados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), no âmbito das candidaturas lançadas no início da pandemia para apoiar a investigação e o combate à covid-19.

Ana Espada de Sousa explica ao DN que o trabalho da sua equipa tem sido estudar doentes que entram no Hospital de Santa Maria com covid-19 com pneumonia e a sua evolução. "Há duas categorias de doentes, aqueles em que a pneumonia se resolve com os medicamentos que estão a ser usados e os que acabam por ter necessidade de ventilação mecânica e de cuidados intensivos. Neste grupo, ainda temos os doentes que mesmo na UCI melhoram, regressam à enfermaria e têm alta para casa, e os que acabam por morrer. O nosso trabalho é estudar todas as fases pelas quais os doentes passam, pois precisamos de comparar a evolução clínica e imunológica e perceber quais são os parâmetros que estão a contribuir para o bom ou para o mau prognóstico".

Para esta médica, que até aqui dedicava a sua investigação ao estudo da imunodeficiência humana com o objetivo de identificar estratégias de reconstituição imunológica, sobretudo na área do VIH e imunodeficiências congénitas, confirma não ter ainda dados para divulgar, a investigação que o seu laboratório está a levar a cabo, e apesar de saber que existem outros estudos paralelos a nível nacional e internacional, "é fundamental, porque associa a componente clínica ao trabalho de laboratório. Este estudo decorre obviamente com o consentimento dos doentes e o seu contributo tem sido fundamental para o desenvolvimento atempado do projeto.

Aliás, e como médica de formação base, sublinha que para ela, uma das particularidades da covid-19 é precisamente "o mostrar como é importante a relação entre a investigação clínica e a investigação básica em laboratório", salientando que a equipa do projeto se estende desde os médicos que explicam ao doente o que é o estudo e como está a ser feito e recolhem os dados clínicos, até ao processamento das amostras de sangue no laboratório e à discussão em conjunto dos resultados.

"Após o doente consentir participar no estudo, é através dos médicos que seguem o doente que ficamos a saber as suas manifestações clínicas e os tratamentos que recebeu. Depois, da recolha destes dados, passamos à fase complementar com a investigação em laboratório a partir da recolha de uma simples amostra de sangue do doente. É através do sangue do doente que estudamos vários marcadores nas diferentes populações de células. E são estes que nos vão dar a noção das alterações que as células sofreram ou que outras vias também se encontram alteradas".

A partir desta descoberta, tudo poderá ser mais fácil no tratamento da covid-19. Ou, pelo menos, tudo poderá ser mais eficaz, porque, à partida, se poderá saber quem são os doentes que vão desenvolver a forma mais grave da doença e o tratamento pode, desde o início da doença, ser definido com base nesta premissa e ser mais eficaz, podendo evitar-se mais doentes graves e menos mortes.

Em busca de um fármaco milagroso

Até agora, um dos caminhos na luta contra a doença que apareceu oficialmente apenas no final de dezembro de 2019 na China tem sido o da investigação por um fármaco milagroso. Embora, a luta contra a covid-19 "não esteja a ser feita apenas um caminho, mas por vários", refere Ana Espada de Sousa.

Neste momento, há um caminho que está a ser feito em busca de fármacos com capacidade antiviral, que são os que conseguem travar a replicação do vírus. "A abordagem que se tem feito até agora à doença tem sido complementar. O tratamento de sintomas com medicamentos que já existem com potencial atividade antiviral, como o remdisivir, e alguns têm revelado resultados promissores apesar dos ensaios clínicos ainda estarem em curso, mas tenho muita fé que irão aparecer novos antivirais eficazes".

Mas também há ensaios clínicos a decorrer em busca de fármacos anti-inflamatórios e dirigidos para outras alterações do sistema imunitário, que se observam nos doentes com doença mais grave e que poderão por isso ser muito uteis para reduzir o tempo de estadia nos hospitais e a mortalidade, como é o caso da dexametasona. Isto porque o distúrbio imunológico provocado pelo vírus, que desencadeia a inflamação, é tanto mais importante controlar quanto se sabe que é a partir daqui que a doença toma ou não a sua forma mais grave.

Por fim, há os tratamentos que têm por objetivo reforçar a resposta especifica do sistema imunitário contra o vírus como é o caso de anticorpos capazes de neutralizar o vírus isolados de doentes e expandidos nos laboratórios ou mesmo o uso de plasma de doentes recuperados que tenha concentração elevada destes anticorpos.

A covid-19 têm outra particularidade que tem vindo a mostrar ao longo dos seis meses em que tem vindo a inundar o mundo: é que afeta os doentes de várias formas. Como diz a investigadora do IMM, "sabemos que a maioria dos doentes infetados não necessitará destes medicamentos porque desenvolve a doença apenas na sua forma ligeira". Ainda há os doentes assintomáticos, os que não desenvolvem sintomas, mas que podem transmitir o vírus. "A resposta à doença terá de ser personalizada. Primeiro, temos de identificar os vários padrões da doença, definir os grupos de doentes e só depois definir quais as terapêuticas mais adequadas a cada grupo".

Não há resultados da investigação que a equipa de Ana Espada de Sousa está a levar a cabo. "Estes só poderão ser libertados quando houver segurança estatística", argumenta, mas a investigadora acredita que este estudo trará resultados fundamentais para se tratar a doença. O objetivo é que "cada doente possa ser tratado da melhor forma".

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