O Império do Mali foi certamente o maior portento em África na Idade Média, tendo como referência principal Mansa Musa, considerado o homem mais rico de todos os tempos, com uma fortuna calculada em mais de 400 mil milhões de dólares americanos. Territorialmente, o Império do Rei/(Mansa) Musa Keita I, estendia-se dos atuais Mauritânia/Senegal ao Níger, embora existam documentos que o estiquem até ao Chade/Nigéria, por via da famosa Peregrinação a Meca de Mansa Musa em 1324. Esta demonstração de poder, que colocou o Mali, Império e nome no mapa, incluiu 60 mil súbditos, nos quais se incluíam 12 mil escravos, com toda a comitiva vestida de brocado e seda da Pérsia. Os registos dizem que a mesma demorava dois meses a passar, ao longo do percurso de 6400 km, de Niani a Meca. Quando parou no Cairo, envergonhou o Sultão Al-Nasir com 80 camelos carregados com 136 kg de ouro cada. A distribuição do metal em jeito de caridade foi tal ao longo do percurso, sobretudo no Cairo e em Meca, que o ouro desvalorizou de tal forma, que só 15 anos depois voltou aos valores anteriores a esta Peregrinação épica..Esta é a África Ocidental e Saheliana pré-colonial, da qual restam apenas vestígios arquitetónicos como a Grande Mesquita de Tombuktu e a de Gao, mandadas construir pessoalmente por Mansa Musa, com tijolos cozidos, uma novidade para a época. É a partir daqui, cerca de 1327, que Tombuktu se torna no entreposto comercial e cultural que aprendemos na Escola..O Mali inicia o seu período colonial, como Sudão Francês, inserido na Federação da África Ocidental Francesa, logo após a Conferência de Berlim (1884-85). Independente em 1960, o Mali sempre deu "água pela barba" aos franceses, sobretudo pela questão tuaregue, no norte, vulgo Azawad para os independentistas. E o comportamento francês foi praticamente o mesmo na década de 50 e em 2011 com os tuaregues, usando o engodo da possibilidade de secessão do norte face ao Poder Central de Bamako..O fim de Kadhafi.Era fundamental impedir que o Batalhão Tuaregue do Coronel Mohamed Ag Nagim, integrado no Regimento baseado em Bani Walid e comandado por Khamis Kadhafi, seguisse com este para Trípoli em auxílio de seu pai, o Coronel Muammar Kadhafi. Este Batalhão do Coronel Nagim era composto por cerca de 400 tuaregues, maioritariamente das tribos Idnan e Chamanamas, com 160 veículos e todo o tipo de armamento. Será normal supor que os Serviços franceses, tenham convencido estes 400 a desertarem do "Regimento Khamis" e a seguirem em direção a Kidal, com a promessa de um Azawad independente no caos regional que seria o pós-Kadhafi. Esta liderança de Nagim era também a base do "novo MNLA" que viria a ser das peças mais importantes do novo equilíbrio de forças maliano e o preferido dos franceses em cada negociação e em múltiplos tabuleiros..O MNLA forma-se oficialmente em outubro de 2011, uma evolução do Movimento Nacional d'Azawad (MNA), entretanto criado em 2010 por jovens estudantes tuaregues, os quais se aliam aos "desertores líbios" e aos homens de Ibrahim Ag Bahanga, um dos últimos heróis das derradeiras rebeliões dos anos 2000 e vitima mortal dum misterioso acidente de carro, pouco tempo antes das hostilidades do MNLA se iniciarem em 2012..Quando entra em Azawad, em Janeiro de 2012, tem um apoio considerável, mas nada comparado ao apoio que as rebeliões da década de 90 tiveram. O MNLA sempre foi muito mais popular no leste, do que na zona de Tombuktu. Depois, as populações começam a perceber que o seu projeto e caminhos não são claros, sobretudo ao aliar-se estrategicamente ao Ansar Eddine, após a declaração de independência a 6 de abril de 2012. Antes disso, há também registos que todos os ataques a cidades, salvo o primeiro a Menaka, a 17 de janeiro, foram conjuntos e coordenados com o Ansar Eddine e AQMI (Al-Qaeda no Magrebe Islâmico), o que manchou a reputação deste movimento dito independentista. Como exemplo mais bárbaro, menciono o da cidade de Aguelhoc, região de Kidal, onde foi efetuada uma degola coletiva de cerca de 100 soldados malianos, a 24 de janeiro..Por outro lado, a resistência das gentes do oeste de Azawad, nomeadamente da tribo Kel Ansar de Tombuktu, prende-se com o facto de terem percebido que a atuação no terreno dos homens deste movimento também dito laico, não ser assim tão diferente do niilismo dos movimentos islamistas. Ou seja, por onde passam partem tudo, demonstrando uma ignorância e uma falta de visão sobre o próprio futuro, inaceitável para quem tem um património histórico de séculos a defender e preservar, como é o caso dos habitantes de Tombuktu..Ao nível tribal, há a assinalar o momento da rutura entre 2 coronéis. Em maio/junho de 2012, o Coronel Assalat Ag Habi, Chamanamas, não aceita o comando do Coronel Mohamed Ag Nagim, Idnan e alia-se ao Ansar Eddine, liderado por Iyad Ag Ghaly, de quem já era próximo..2013, ano-chave.Início da Operação Serval dos franceses, o que pulveriza ainda mais os grupos e os alinhamentos, desaguando os mesmos na situação atual e ano também da assinatura do Acordo para a Paz e Reconciliação Nacional, entre a República do Mali, já com Ibrahim Boubakar Keita (IBK) como Presidente (PR) e a Coordenação dos Movimentos de Azawad..Este Acordo fez a população acreditar na possibilidade da paz e, 5 anos passados, a questão securitária nunca esteve tão precária, já que o número de grupos e grupúsculos armados de cariz radical-islamista, na orla da "Internacional Terrorista" aumentou, mas também de milícias de defesa étnicas para fazerem face ao vazio deixado pelo Estado no vasto e desértico Azawad, o que também permitiu uma deslocalização dessa violência anteriormente exclusiva do Norte, para o Centro, no sentido do Mali sub-sahariano e da Capital Bamako. Pode aliás dizer-se que o PR IBK apenas controla entre 20% e 25% da totalidade do território a que preside..Juntar a este sentimento de insegurança para uns e de impunidade para outros, o agravar da crise económica com a pandemia covid, a qual fez também saltar os níveis de corrupção para o patamar do insustentável para quem passa a vida a ver o "machibombo" passar e não quer, aqui fica a explicação deste salto de junho de 2015 para julho de 2020..Primavera Maliana, sim ou não?.Sim e não, mas, comparativamente ao Movimento Social que varreu o Norte de África e Médio Oriente em 2011, há muitas semelhanças. Sim, porque:.- Diferentes estratos sociais representativos de diferentes interesses, todos debaixo do mesmo "chapéu-de-chuva" legitimador e enquadrador do ponto de vista organizacional e legal também. O M5-RFP e principalmente o CMAS, conferem credibilidade a uma mobilização espontânea, isenta de estatutos e de hierarquias rígidas, mas que precisa de emitir comunicados oficializadores das suas ações a todo o momento;.- Esta informalidade organizacional vem tornar eficaz todo o processo, quase anárquico da ocupação das vias rodoviárias, o caso das pontes, fundamental no acesso ao centro de Bamako, ocupação de órgãos de comunicação social, instituições-chave, acessos a aeroportos/portos/ferrovias, etc;.- Mobilização e comunicação através das redes sociais, importantíssimo elemento galvanizador das multidões ao nível dos diferentes bairros, cidades e objetivos a atingir. "Nacionaliza-se" uma manifestação com um telemóvel;.- Apresentação de um objetivo político a atingir e não um programa de reformas por fases. O fim do regime. IBK terá que "fazer as malas" e partir que, posteriormente, dentro do quadro das organizações regionais, continental e internacionais, se organizarão de novo eleições;.- Ao ser apresentado pelos insurgentes o fim do regime como objetivo último, é precisamente nas organizações regionais que os acossados se vão ancorar, como é o caso atual da ação de IBK, ao ouvir a CEDEAO e agir em conformidade com as recomendações destes..Não, porque:.- O já referido CMAS (Coordenação dos Movimentos, Associações e Simpatizantes), é mais conhecido pelo "CMAS do Imam Mahmoud Dicko", uma negação de um princípio que orientou as "Primaveras Árabes" a partir de janeiro/fevereiro de 2011, a sua base laica enquanto ponto de partida. Claro que depois precisaram sempre do Amén dos religiosos, o que se justificou pela necessidade da legitimação e abrangência de todo um território, mas a "casa de partida" foi laica e laicizante..Este Movimento é lançado por este ex-aliado de IBK, em setembro de 2019, precisamente para denunciar a "governança catastrófica" do seu "amigo", não obedecendo ao espontâneo mas ao calculado..Quem é o Imam Mahmoud Dicko?.66 anos, natural de Tombuktu, foi entre janeiro de 2008 e Abril de 2019 Presidente do Alto Conselho Islâmico do Mali. Precisamente a 18 desse abril de 2019 é demitido do cargo pelo Primeiro-Ministro (PM) Soumeylou Boubèye Maïga, minutos antes do próprio PM apresentar a sua demissão ao PR IBK, o que nos dá uma ideia do ambiente político no Mali, que tem praticamente vivido de governos anuais. É a partir daqui que as ambições presidenciais do Imam Dicko se tornam mais claras e a verve também se torna elegantemente mais agressiva ao mencionar "os traidores do Povo" e a "corrupção endémica e a céu aberto", rematada com a humildade dos simples de quem não é "fazedor nem de reis nem de presidentes, mas sim da paz"..Precisamente a paz, que conseguiu segurar, por vezes, ao ser enviado do atual PR nas negociações com os grupos jihadistas, tem muito que se lhe diga. Formado na Arábia Saudita, trata-se naturalmente de um wahabita sem aspas, que segundo o Coordenador-Geral do CMAS, em resposta floreada à clássica e obrigatória questão se há ambições no Movimento em tornar-se num Partido Político, lá disse que "o CMAS tem por ideais as visões religiosas, societais e políticas do Imam Dicko", o que decifrado significa "deem-me o Poder e eu dar-vos-ei o Paraíso"!.E não será muito complicado fazê-lo, já que basta seguir o modelo de paraíso do PR anterior, Amadou Toumani Touré, o qual fez do Azawad uma "colónia de férias jihadista". Ou seja, fiquem por aí, garantam que não atacam em solo maliano e eu jamais vos incomodarei. O mesmo modelo também de Blaise Compaoré no Burkina Faso..Os próximos dias serão deveras interessantes em seguir, já que há que contar com os franceses e com o que terão a dizer sobre este assunto, sabendo-se também desde já, que com Dicko vencedor neste confronto, a França verá a porta aberta à saída do território, já que um "religioso sério" nunca perderá oportunidade em capitalizar assunto tão popular junto dos seus. A impopularidade do ex-colonizador fardado na ex-colónia!.Politólogo/Arabista.www.maghreb-machrek.pt