Jorge Coelho tem o jornal desportivo aberto na mesa. Foi Carlos Andrade, o moderador do programa Quadratura do Círculo, quem lhe disse para ir comprar o Record, "que tenho aqui à minha frente", diz o socialista, antigo ministro, atual gestor e comentador. "É verdade", conta Coelho, "o homem que nunca ligou nada a futebol, que não sabe nada, tem direito na primeira vez que tem uma reportagem sobre futebol a uma primeira página e às páginas centrais".."Pacheco Pereira já gosta de futebol" - e o socialista lê o título da reportagem e de um outro artigo, "Eu nem sei o que é um fora-de-jogo". E Jorge Coelho não tira o pé do acelerador, contando que o historiador e antigo dirigente do PSD foi visto a protestar vivamente contra o árbitro num jogo. "Vocês fazem-me a folha", replicou timidamente Pacheco Pereira, entre os risos do moderador e do outro comentador, Lobo Xavier, gestor, também antigo dirigente do CDS, que lá introduz um apontamento mais racional à conversa - afinal, Pacheco Pereira apoia, através da associação Ephemera, a equipa de veteranos do clube da terra onde instalou a sua biblioteca, a Marmeleira, Rio Maior..É este o tom de florete com que os três residentes no programa que na quinta-feira foi exibido pela última vez na SIC Notícias - e que entretanto terá continuidade na TVI com o nome de Circulatura do Quadrado - vão comentando a atualidade. O programa, que começou nos idos de 1989, na TSF, como Flashback, mudou-se para a televisão, já teve vários comentadores e dois moderadores e só Pacheco Pereira resiste da equipa fundadora, "é o único que continua a carregar essa pipa", diz Magalhães, que estava na equipa inicial até 2005, saindo então para ir para o governo..No início, o programa era mais karaté e menos florete, argumenta aquele que é hoje deputado do PS. Era um "programa-camaleão, que foi mudando de feição à medida que mudavam as características e qualidades dos participantes e as conjunturas", aponta José Magalhães..Quando surgiu em setembro de 1989, vivia-se a primeira maioria do cavaquismo, "o contexto in illo tempore era o do debate chatinho, cinzentinho, bem-comportadinho, em que cada orador esperava beatamente pela sua altura de falar e depois refutava na sua altura o outro". Com o Flashback "introduziu-se o karaté, praticou-se ali muito karaté dialético", recorda José Magalhães. E ele era "um dos mais ferozes praticantes" desse karaté..Pode recuar-se a 1988 para se perceber o que diz Magalhães, que à época era ainda militante e deputado comunista. Nas páginas do Diário de Lisboa, José Pacheco Pereira e José Magalhães foram publicados os argumentos acesos trocados no Parlamento por causa da revisão constitucional em curso. Pacheco dizia que ainda não estava vacinado "contra a capacidade" de se surpreender pelo "tom insultuoso, insolente e arrogante" de intervenções anteriores - como a de Magalhães. O deputado comunista voltou a carregar na dose da vacina que faltava a Pacheco Pereira: "Ou compra uma bisnaga de Hirudoid ou fica perfeitamente esmoído", atacava Magalhães, frase puxada para título do vespertino..Há quem identifique nesta guerra de palavras parlamentares a vontade de Emídio Rangel, fundador da TSF e criador do programa, em estender o tapete de karaté na antena da rádio..A cara pintada de preto à índio.Em 1995, no Parlamento dos 115-115 (houve um empate entre deputados eleitos pelo PS e pela oposição), Magalhães está a pouco tempo de ir para o governo de António Guterres - mas não sai do programa, ao contrário do que fez em 2005. O governante comentador dá-se mal com uma previsão.."Quando estive como governante aconteceram coisas extraordinárias, uma das quais foi ter-me enganado numa previsão e ter pintado a cara de preto, à índio, saiu em jornais estrangeiros, russos... Julgo que fui dos poucos membros de governo que alguma vez pintaram a cara de preto." A culpa foi do défice. "Fiz uma previsão com carácter infalível, "garanto que não sei o quê", e arrisquei. De modo que antes que me criticassem, fiz eu a autocrítica." Pintadinho de preto..Para Magalhães esta é uma marca de um programa em que se podia fazer coisas impensáveis noutros programas. O programa foi pioneiro, argumenta o atual deputado socialista, em coisas que hoje são banais no dia-a-dia das televisões, como o facto de muitas vezes Lobo Xavier entrar a partir dos estúdios do Porto e Pacheco e Magalhães estarem sentados em Lisboa. Ou emissões gravadas a partir da Marmeleira - ou com Magalhães a entrar a partir de Macau.."Um desastre! Esse programa de Macau foi um desastre... E onde se discutiu o famoso fax de Macau", admite ao DN. Para entrar na hora do programa, José Magalhães falou "a uma hora completamente tardia, tive de gravar durante a madrugada, portanto estava meio acordado, meio a dormir, a debater um tema altamente explosivo". Resultado: "Apanhei, mas apanhei porrada, de norte a sul, uma coisa de uma violência absolutamente enorme.".Já com a equipa atual de comentadores, os participantes do programa fecharam uma emissão de narizes vermelhos postos na cara, num gesto de solidariedade pela campanha do Nariz Vermelho..Mas um "episódio caricato, realmente caricato", relembra o deputado, foi a "guerra dos corredores", no Parlamento, quando Pacheco Pereira tentou condicionar a circulação dos jornalistas parlamentares pelos corredores de São Bento. "Aí tínhamos a enorme vantagem de o protagonista da guerra estar lá. Imagine o que era o jovem Magalhães a saltar à jugular do protagonista [e replica o gesto com um sorriso], podendo bater-lhe desenfreadamente, com as costas quentes, que era o apoio dos jornalistas.".A internet, que Magalhães conheceu em 1992 nos Estados Unidos, foi a sua "arma secreta e uma grande arma", a partir dessa altura, na preparação dos debates semanais, ao poder aceder a jornais estrangeiros. E com o advento da internet, o deputado fez-se profeta: "Passei a usar o programa para fazer evangelização" da rede.."Até consegui convencer Pacheco Pereira a não ter medo de utilizar os infernais modems que eram necessários para aceder à internet nesses tempos de linha telefónica e de internet primitiva. Ele achava que aquilo era tudo ilegal, que eu andava com uns manejos estranhos que violavam a lei. Felizmente, essa história acabou em bem, com ele a ser não só um grande utilizador como até um difusor de conteúdos. É uma história que começou mal, mas acabou muito bem.".Fora do programa, a política podia ser servida à mesa dos almoços que iam acontecendo - quando o programa era ao domingo de manhã -, mas em geral fazia-se uma pausa do combate aceso de ideias. "Tanto o Pacheco, depois o Lobo Xavier, são bons garfos. E o Carlos Andrade é um gourmet inveterado." Com humor e sem karaté: cada qual no seu estilo, o humor é uma característica dos participantes, acrescenta Magalhães. "Absolutamente. Sem isso, aliás, parte do sal e da pimenta do programa perder-se-ia. Seria um daqueles debates trombudos, choques de trombudos, que são a parte mais detestável do debate político atual.".Emídio Rangel "queria sangue e pugilato" no debate. "Nós demos-lhe muito sangue e muito pugilato", reconhece José Magalhães. "Hoje em dia, menos: está um jogo de florete. Mesmo quando lá vou, é mais florete... Quanto muito espada, mas não mais."