Notre Ami Ben Ali, de Jean-Pierre Tuquoi e Nicolas Beau, teve a sua primeira publicação em 1999 e, como "plagiaram" o título de Notre Ami Le Roi, 1990, e sobre o reinado de Hassan II, de Gilles Perrault, naturalmente convidaram-no para escrever o prefácio desta biografia do presidente (PR) da Tunísia e da sua relação com França. Começa Perrault a prefaciar: "A bota de Hitler e o tamanco de Mussolini, dizia De Gaulle em Londres. Passar de Hassan II a Ben Ali é também descer da aristocracia do crime à mediocridade sombria de um bandido de subprefeitura." Resumo esclarecedor sobre 24 anos da Tunísia de Ben Ali..A Tunísia, com a Revolução de Jasmim de 2011, termina de facto com um regime policial, liderado por um polícia que soube tocar nos botões-chave para provocar o que ficou conhecido por um "golpe de Estado médico" e assumir o poder, na sequência de um relatório assinado por sete médicos (dos quais dois eram militares), na noite de 6 de novembro de 1987, o qual confirmava a incapacidade mental do primeiro PR da Tunísia para melhor conduzir os assuntos de Estado..Até lá chegar, o botão principal que havia para pressionar, num mundo pré-Twitter, era a imprensa escrita, principalmente a fotografia e "as gordas" da primeira página. Várias vezes, Ben Ali fez-se fotografar à cabeceira da cama em que um Bourguiba senil aguardava pela sua hora. Desta cabeceira para a primeira página de cerca de 90 quotidianos distanciava um dia, cuja foto era sempre acompanhada do diálogo estabelecido entre PR deitado e primeiro-ministro (PM) de pé e saudável. Este diálogo também era sempre o mesmo. Bourguiba assumia-se como "pai da nação", vendo a seu lado a constante presença do seu "filho predileto". De tal forma o "delfim" de Bourguiba insistiu nesta tecla, que logo começaram a surgir anedotas sobre o diálogo estabelecido entre ambos, sendo talvez a mais interessante a que diz que Bourguiba disse que "de facto, sendo eu o pai da nação, só encontro em ti meu filho um sucessor à altura, já que tens três pontos em comum com o nosso Profeta. Ben Ali, entusiasmado pergunta: 'Quais meu pai, o que tenho em comum com o Mensageiro de Alá?' Pintas o cabelo, só conseguiste ter filhas e és analfabeto!".A Revolução de Jasmim, no âmbito das Primaveras Árabes, marca um regresso a esse "bourguibismo memória" e que se materializava na educação e nas liberdades individuais, sobretudo através da emancipação da mulher, cuja constituição era a única no chamado mundo árabe que garantia uma paridade entre homens e mulheres. Há, aliás, três teorias que justificam o porquê de ter sido a Tunísia a "faiscar" o início destas "Primaveras" de contestação social, sendo a primeira a de que tudo se deve ao grau de instrução desta população, que à data da sua independência, em 1956, tinha mais de 300 licenciados e bacharéis, número que suplantava Marrocos e Argélia juntos, aquando destas independências. Este dado marca a diferença comparativa entre estes três países, já que a Tunísia apostou na universidade como pilar no processo de construção nacional, enquanto Marrocos e Argélia apostaram nas polícias e nas forças armadas, como pilares do referido processo pós-independências..A segunda teoria, mais conspirativa, aponta para um plano francês gizado pelo PR Sarkozy, que visava uma "queima de arquivo" chamado Muammar Kadhafi e, para tal, a Tunísia serviria de plataforma de projeção de força para o subsequente ataque à Líbia, que eliminaria o principal financiador da campanha eleitoral que em 2007 facilitou a eleição do então PR francês, cujo cheque assinado pelo "grande líder" tinha marcado 50 milhões de euros, enquanto nas contas oficiais da campanha Sarkozy apenas constavam 20 milhões de euros de despesas/investimento..A terceira teoria, não menos interessante, a necessidade de se ganhar profundidade estratégica através da Líbia, para se chegar ao norte do Chade, não pelo petróleo, mas pela água do Sistema Aquífero do Arenito Núbio, o maior aquífero de água fóssil do mundo..Dito isto, fica claro que no pós-revolução a tensão sobre o futuro da "nova Tunísia" iria materializar-se entre bourguibistas e islamistas, que regressaram do exílio convencidos do "agora é que é". Venceram os primeiros pela concessão inteligente dos segundos. Para manterem o poder, aliás conquistado democraticamente, os islamistas do Ennahdha permitiram um regresso constitucional ao "espírito Bourguiba" na aprovação da nova Constituição, cuja originalidade remete, pela primeira vez na história das constituições arábico-islâmicas, o religioso para a tutela do Estado, nos artigos 1.º e 2.º, reafirmando a Tunísia como um Estado civil, fundado na cidadania, na vontade do povo e no Estado de direito. Estes artigos não estão sujeitos a revisões constitucionais futuras, pelo que será necessária nova revolução para serem expurgados da Tunísia do século XXI..Hosni Mubarak permaneceu 29 anos e quatro meses no poder, que terminaram às 18.00 do dia 11 de fevereiro de 2011, anunciado via rádio e televisão pelo então recém-nomeado vice-presidente Omar Suleiman, provocando júbilo numa Praça Tahrir à pinha, fazendo jus ao nome desta, já que era de Libertação que se tratava esta comemoração..Uma primeira nota para o general Omar Suleiman, solução encontrada pelo ainda PR Mubarak, a 29 de janeiro, para o poder não cair na rua. Suleiman era o diretor da Diretoria-Geral da Inteligência do Egito e, responsável pelo dossiê israelo-palestiniano há mais de dez anos, o qual deveria ser salvaguardado a todo o custo. Foi vice-presidente durante 13 dias, desconhecendo-se até hoje os motivos exatos da sua morte..A Praça Tahrir, mesmo que o vice-presidente não tivesse morrido, rejeitá-lo-ia já que significaria a continuidade dos militares no poder. Suleiman era aliás o candidato dos militares para as eleições presidenciais programadas para setembro de 2011, nas quais o clã Mubarak apostava também na continuidade através da candidatura de Gamal Mubarak, cujo projeto para o país se ancorava num liberalismo económico de privatizações, que colocaria em risco os monopólios económicos dos militares, desde o fabrico do pão às telecomunicações e obras públicas. Por outro lado, a juventude mais letrada e cosmopolita apostava em Mohamed El-Baradei, que internacionalmente colhia os frutos da gestão do dossiê nuclear iraniano, mas desconhecido do cidadão comum egípcio..A mobilização da Praça Tahrir assentou em três pilares algo negligenciados pelas opiniões públicas ocidentais e que são os seguintes: os jovens do Movimento 6 de Abril, herdeiros do Movimento Kefaya, Basta, de 2005 e que, desde 2008 recebiam formação na Sérvia, através dos dinheiros de George Soros, junto do Movimento Estudantil Otpor, Resistência, foram fundamentais para uma mobilização eficaz na afluência à praça, a partir das saídas das mesquitas a cada sexta-feira de contestação; a Irmandade Muçulmana (IM), cuja experiência de resistência clandestina, lhes permitiu acionar os canais e redes do grupo para permitir o acampamento na praça de cerca de 250 mil pessoas que precisam de comer, beber e ir à casa de banho; os adeptos dos clubes de futebol, Al-Ahly e Zamalek, o Benfica e o Sporting do Cairo. Os duros que tinham experiência no confronto direto com a polícia..O Supremo Conselho das Forças Armadas egípcias, após a queda de Mubarak e a morte de Suleiman, tomam conta do processo de transição, na figura do general Tantawi ,e, pressionados pela administração Obama, que jogou a carta da cooperação técnico-militar entre os dois países, obrigou este diretório a seguir a via democrática e a convocar eleições, sabendo todos da inevitabilidade da vitória da IM nas legislativas com o Partido Justiça e Liberdade (PJL) e nas presidenciais com Mohamed Morsi. O Egito, entre junho de 2012 e julho de 2013, teve um governo, uma maioria e um presidente islamista e não conseguiu governar. Porquê? Para além de todo o boicote interno e externo, não respeitou os militares, substituindo-os a gosto, sem estratégia, acertando contas antigas, aliando-se no parlamento aos salafistas do Al-Nour, provocando uma divisão profunda no país que o deixou à beira da guerra civil e de uma imprevisível opção islamista pelas armas e pelas bombas, pelo que os militares jogaram a carta que melhor sabem. Suspenderam a Constituição, depuseram o PR eleito, ilegalizaram a IM e nomearam o general Abdel Fattah Al-Sisi como novo PR..Esta normalização do processo e da vida do país pode hoje considerar-se como a aplicação de "vacina anti-islamista", a qual tem travado as ambições políticas da IM noutros cenários. Por outro lado, a administração Obama, para não perder a influência que ainda mantém nesta república árabe, nunca considerou a deposição do PR Morsi como um golpe de Estado, mas sim como um military takeover, já que não negoceia com regimes saídos de golpes e assim mantém a cooperação técnico-militar com o Egito, cujo valor do cheque nunca foi revelado..A revolta líbia, "entalada" entre a queda de Ben Ali na Tunísia e de Mubarak no Egito, inicia-se no leste do país, na Cirenaica precisamente, porque os cirenaicos tinham umas contas de quatro décadas a ajustar com o líder Muammar Kadhafi. Em 1969, foi a partir dali que o Movimento dos Oficiais Livres marchou em direção a Trípoli, para a deposição do rei Idriss. Os periféricos cirenaicos foram os primeiros a apoiar esta ação, convencidos de que a mudança lhes seria favorável no dia seguinte ao reviralho, mas o "grande líder" manteve-os no seu lugar. Foi interessante, aliás, ver que à medida que as populações iam sendo libertadas de leste para oeste, as rádios locais passaram a emitir nos dialetos locais, bem como música folclórica e popular proibida há mais de 40 anos. A história da Líbia durante este período confundia-se com a história pessoal do seu líder, não havendo nada a aprender ou a ensinar antes de 1969. Prova desta tensão leste-oeste, foi a decisão da Cirenaica em declarar-se Estado semiautónomo logo em maio de 2012, aquando da realização das primeiras eleições municipais, organizando-as sem interferências de Trípoli..A ação militar ocidental que leva à queda de Kadhafi tratou-se de uma "floresta de enganos" nas Nações Unidas, através da aprovação da Resolução 1973, que autorizava uma no fly zone no território líbio, bem como a aplicação de todas as medidas necessárias para a proteção de civis, face à resposta do regime aos insurgentes. As abstenções da China e da Rússia foram vistas pelos próprios como um voto contra e pelos proponentes da votação como uma aprovação, uma "carta branca" para acabar com 42 anos de ditadura brutal..Uma guerra NATO, em que americanos, ingleses e franceses concorriam pela liderança da Aliança, apesar de a coligação ser composta por 27 Estados europeus e do Médio Oriente. De certa forma, a divisão atual na guerra líbia é reflexo das disputas onusianas que estiveram na origem da Resolução 1973, com a agravante de se ter tornado naquilo que os europeus ainda não tiveram coragem de admitir, já que se trata, de facto, da guerra proxy da Europa, onde a Turquia assume as despesas do confronto europeu com a Rússia, compensando na Líbia o que perde na Síria e vice-versa..Começando pelo fim, a questão houthi no Iémen materializa também a guerra proxy do Médio Oriente, entre sauditas e iranianos. O ambiente no golfo Pérsico é de guerra fria e, na impossibilidade de estes dois antagonistas se confrontarem diretamente, encontraram na monarquia xiita do norte do Iémen o pretexto perfeito para esta guerra, já apelidada de "esquecida"..A Revolução da Dignidade no Iémen acompanha os acontecimentos que vão sobressaltando a Tunísia, o Egito, a Líbia, o Bahrein e a Síria e o PR Ali Abdullah Saleh pode comparar-se a Kadhafi pela forma como chega ao poder, como o conserva e o potencia após o fim da Guerra Fria, ao unificar o Iémen do Norte com o Iémen do Sul. Também à imagem de Kadhafi e de Mubarak, tinha planos para uma "república dinástica", sendo público que pretendia plebiscitar o seu filho, para assim o suceder com ares democráticos. Ainda tentou acalmar a indignação popular ao dizer que não se candidataria nas eleições de 2013 nem que o seu filho o sucederia. Mas já nada havia a fazer, os pobres tinham perdido a vergonha e o medo e reivindicavam a dignidade negada desde sempre, a cada sexta-feira após as rezas, sendo que este vasto território da Península Arábica via reivindicações diferentes consoante a região onde decorriam, sendo importante perceber que cada tribo/região detém o seu próprio exército e armamento, um espólio que ficou da Guerra Fria. O sul reavivava as ambições separatistas baseada na realidade recente de já ter sido independente, no norte os houthis xiitas faziam o mesmo, reivindicando também parte do território sul saudita e a leste, a Al-Qaeda da Península Arábica dominava já parte considerável desse território, tendo constituído o seu califado, sem lhe mencionar o nome..Perante este cenário, para a grande política, Saleh seria sempre o mal menor e o Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) tenta a mediação junto do PR para este abdicar em prol da formação de uma federação de interesses, mas que no fundo mantinha Saleh como uma "cola oficiosa e de bastidores", já que era temido e respeitado por todos e, talvez também, o que melhor lia o país. À terceira tentativa de quase assinatura o CCG retira-se, ficando claro que Saleh, ancorado na guerra contra o terrorismo e no apoio que foi cimentando com os americanos, não cederia em nada. Perante isto, o líder da federação tribal Hashid declara o seu apoio à oposição e em maio inicia-se a guerra urbana pela tomada da capital Sana'a. Em junho, o vice-presidente (VP) Mansur Hadi assume o poder em virtude de ferimentos causados ao PR num ataque à mesquita do Palácio Presidencial onde este rezava. Saleh não morreu e continuou a condicionar o jogo a partir de Riade e só em novembro acedeu a nova proposta do CCG, porque transferia o poder diretamente para o VP Hadi, mas só deixaria de ser PR em fevereiro de 2012, aquando da realização de eleições, e com imunidade total a qualquer tipo de acusações..Estas eleições de 21 de fevereiro, marcam também o início de uma segunda fase de desentendimentos no seio de uma oposição que agrega interesses antagónicos e cuja face mais visível, porque também mais militarizada e respaldada a partir do exterior, é a questão independentista houthi e que degenerou nesta guerra proxy, com sauditas a apoiarem Sana'a e iranianos a apoiarem os separatistas houthis..Politólogo/arabista www.maghreb-machrek.pt