Ricardo Lemos já deu a volta ao mundo mas, na sua cabeça, volta muitas vezes às histórias escutadas em noites sem lua, nas aldeias de origem dos pais, no interior norte de Portugal. Tantos ecos de superstições, milagres, embustes, aparições de almas do outro mundo que tomam as mais desconcertantes formas (como as de bestas que, a horas mortas, viriam comer nas manjedouras dos porcos), enchem de mistério o seu primeiro livro, Desaparecida (edição Guerra e Paz), distinguido com o Prémio Nacional de Literatura Lions de Portugal. O que, aos 35 anos, 15 dos quais vividos em Londres, não deixa de o encantar, como mostra durante a nossa conversa, em plena Feira do Livro de Lisboa, ao ver o seu livro exposto no stand da editora. Ao alcance das mãos das muitas pessoas que ali passeiam em tarde de verão..Tudo começou há anos, diz, com "a ideia de uma coleção de contos" quando ainda estava a frequentar o mestrado de Escrita Criativa, na Universidade de Cambridge. "Queria brincar um pouco com as minhas memórias de infância, com histórias que ouvi em miúdo, não tanto no Porto onde nasci e cresci, mas sobretudo quando ia às aldeias dos meus pais." E que histórias eram essas? "Ficava muito encantado com as histórias das avós sobre certas luzes inexplicáveis que se veem à noite ou sobre todo o tipo de fantasmas, animais possuídos, coisas estranhas que se metem em garrafas. Eu ouvia essas histórias sem acreditar totalmente, mas também sem desacreditar, de tal maneira me sentia fascinado.".O que começou por ser um projeto de livro de contos foi crescendo até lhe surgir a aldeia de Desaparecida, nome por si já sugestivo de assombros vários. "Desaparecida", escreve Ricardo quase no final do livro, "é pouco mais do que o monte de pedras sem nome que lhe apontaram em criança. Mais viva, só algumas casas estão em ruínas. A igreja ainda badala as horas. No sopé do penhasco da igreja, diante do cemitério, o lar está aberto, pintado de fresco e com uma nova ala em construção. A casa grande dos Gonzaga foi remodelada para acolher casais e turistas estrangeiros" Por aqui passam Fatimah, com agá à mourisca, como frisa, que conta e repete, "como se a vida toda coubesse no contar", Bartolomeu Vagamundo, pássaro feito gente, que escapa da Inquisição e embarca numa odisseia, e sua descendente, Maria, entre outras personagens de épocas diversas, que vão dando corpo a uma narrativa que acabou por se transformar em romance..Por Desaparecida passa também o fascínio do autor pela história de Portugal, talvez maior, admite, desde que vive no estrangeiro. "Em pequeno gostava muito de ler a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, agora quis ler outros relatos de viagem da expansão marítima portuguesa, mas não da perspetiva dos Gamas e Albuquerques ou dos grandes feitos, mas dos portugueses anónimos que se viram envolvidos nesse processo, às vezes com consequências muito nefastas para as suas vidas." E é assim que da leitura de obras que são quase antiepopeias, como A História Trágico Marítima; as Décadas da Ásia, de Diogo do Couto, ou As Cartas do Tibete, do padre António de Andrade, lhe surgem personagens como Bartolomeu Vagamundo..Uma obra cheia de erudição? Para o jornalista João Céu e Silva, presidente do júri que atribuiu o prémio a Ricardo, esse conhecimento está lá, mas não pesa: "Ele consegue entrelaçar muito bem essa parte de história com as histórias que vai contando. As personagens são credíveis, não é comum na nossa literatura ver diálogos tão verosímeis. Lemos e parece que estamos a ouvir aquelas vozes a contar-nos a história. Não é artificial ou forçado." Dos 25 livros a concurso, Desaparecida impôs-se, segundo a declaração de voto do júri, pela apresentação de "uma narrativa que reflete uma estrutura tão ampla como elaborada, dotada de inúmeras referências históricas a várias épocas e acontecimentos que surpreendem o leitor, além de utilizar múltiplos cenários geográficos, temporais, espirituais e sociais, que demonstram ser resultado de uma investigação que a distingue". João Céu e Silva não tem dúvidas em afirmar-nos que este livro "é também um exemplo de como se constrói uma narrativa, sabendo manter o ritmo e criar personagens credíveis". E desabafa: "Quem acompanha a atividade editorial sabe que se escreve e publica de mais. Há uma obsessão de querer publicar um livro sem sequer se escrever bem e as editoras aproveitam-se dessa pulsão, num círculo que acaba por ser vicioso e autofágico.".Para Ricardo, o regresso às origens passou logo pela necessidade de voltar a escrever na língua materna: "Escrever em português já me exigiu algum esforço. Depois de 15 anos em Londres (embora venha a Portugal com frequência), começava a sentir-me mais à vontade em inglês, porque é a língua com que lido todos os dias, e senti necessidade de contrariar isso." Depois, foi "também a vontade de fixar um mundo cada vez mais em extinção, em que as noites muito escuras alimentam medos e superstições"..Grande viajante durante anos (chegou a escrever uma coluna de viagens no Jornal de Notícias), Ricardo andou por paragens tão díspares como os Estados Unidos ou o Tibete, onde, aos 20 anos, se viu a ensinar inglês a crianças. Com residência fixa em Londres, queixa-se de algumas das exigências burocráticas do Brexit para um cidadão comunitário, mas agrada-lhe o novo sedentarismo que a pandemia lhe impôs. "Posso dizer que parei de viajar fisicamente mas iniciei outro tipo de viagem, pelos textos e pelos livros. Voltei a coisas que já tinha escrito há muito e sobretudo retomei a leitura de outros autores." Lê agora com a atenção de quem escuta. "Está uma bela noite. Senta-te, senta-te. Como antigamente, uma noite sem lua.".dnot@dn.pt