A geração dos que foram adolescentes na década de 1980 recebeu uma pesada herança temporal. Em sentido literal. No ziguezague emocional da cultura popular, as medidas do tempo apresentavam-se viradas do avesso, de tal modo que um dos mais conhecidos atores da época, Michael J. Fox, ficou a dever a sua fama à personagem do jovem Marty McFly num filme de Robert Zemeckis com um título deliciosamente absurdo: Regresso ao Futuro (1985)..Durante uma das suas viagens no tempo, McFly é questionado pelo Dr. Emmett Brown (Christopher Lloyd), precisamente o cientista que criou as condições para a concretização dessas viagens. Brown está no passado, ignorando, naturalmente, as suas próprias invenções futuras... Duvidando de que McFly tenha chegado desse futuro para ele desconhecido, pergunta-lhe quem é o presidente dos EUA no ano de 1985. Ao que ele responde com a máxima objetividade: Ronald Reagan. O cientista não consegue conter o seu sarcasmo: "E o vice-presidente, quem é? Jerry Lewis?".Olhamos para o ano de 2020 que está aí a chegar e convenhamos que o cinema não nos dá pistas muito seguras para lidarmos com a angústia dos tempos. O poeta bem nos avisou: "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades/ Muda-se o ser, muda-se a confiança." Mas aquilo que o poeta não podia prever era a vertigem das nossas perversões tecnológicas: os nossos novos oráculos já não são pessoas, são "famosos"; na ficção científica, passámos a ignorar as máquinas do tempo porque estamos a brincar com os nossos telemóveis..No ano 2000, Brian De Palma deu-nos um mapa para lidarmos com este nosso futuro à beira de se tornar presente. O seu filme Missão a Marte encenava uma expedição recheada de boas intenções: tratava-se de chegar ao Planeta Vermelho, em pleno ano 2020, e criar condições para a instalação dos humanos. Evocando ou não fantasmas colonialistas, digamos para simplificar que a missão ficava longe de cumprir o seu programa redentor. Na verdade, a antecipação falhou e continuamos colados à gravidade terrestre. Agora que o futuro de Missão a Marte já é o nosso presente, resta-nos saudar a entrada do filme no museu dos sonhos para sempre adiados..No caso de No Limite do Amanhã (2014), de Doug Liman, as certezas baralham-se ainda mais. Tudo começa com Tom Cruise a enfrentar uma invasão de extraterrestres. Quando? No ano 2020. O certo é que tudo acontece numa vertigem temporal em que é preciso morrer para voltar a viver. Dito de outro modo: a sua missão só será cumprida se ele revisitar, repetidas vezes, o mesmo dia fatídico. O poster oficial do filme apresentava mesmo uma frase surreal, estranhamente sedutora: "Vive. Morre. Outra vez." E se a relação de Cruise com a personagem de Emily Blunt parecia nascer de um tradicional impulso romântico, as atribulações dos relógios não ajudavam muito. Ciosa da sua autoridade militar, ela perguntava-lhe mesmo quem lhe tinha dito que ele podia dirigir-lhe a palavra. Ao que ele respondia, indignado: "Foste tu própria que mo disseste. Quando? Na praia, amanhã.".Enfim, o pessimismo tornou-se o nosso principal desporto cultural. Com algumas obstinadas exceções, há que reconhecer. Invejamos mesmo o otimismo de Donald Trump, celebrando em gloriosos parágrafos de 280 caracteres a sua convicção de que o planeta não está a aquecer. Estará mesmo a arrefecer: "No belíssimo Midwest, os ventos gelados trazem-nos temperaturas de 50 graus negativos, as mais baixas alguma vez registadas", escrevia ele num tweet de 29 de janeiro de 2019. Eufórico, perguntava logo a seguir: "Que raio está a acontecer com o Aquecimento Global?".Pois bem, não sabemos. Aliás, sabemos que sobre nós paira uma ameaça radical, mas temos medo de lidar com a mensagem de irreversibilidade que nela se transporta. Talvez por isso os filmes (ditos) fantásticos vão tentando inventar novos dispositivos para lidarmos com esse medo, criando derivações mais ou menos insólitas. Recordemos o exemplo de Um Lugar Silencioso (2018), em que voltamos a encontrar Emily Blunt, agora a contracenar com o marido, John Krasinski, também realizador do filme. Estamos outra vez em... 2020. A Terra foi invadida por monstros alienígenas que compensam a sua cegueira com uma sofisticada capacidade de audição. Consequência prática: os humanos sobrevivem no mais angustiado silêncio, não falando e, mais do que isso, evitando provocar qualquer ruído com os objetos do dia-a-dia. Aqui para nós que ninguém nos ouve, o filme limita-se a aplicar uma ideia dramaticamente tosca que talvez pudesse sustentar uma curiosa curta-metragem de meia dúzia de minutos... O certo é que por ele perpassa um fantasma muito contemporâneo: dominados que estamos pelos múltiplos aparelhos que usamos, alimentando as ilusões pueris da célebre "aldeia global", deixámos de reconhecer e aplicar as virtudes da palavra e menosprezamos as subtilezas da fala. Por alguma razão, o poder de Trump continua a ser sustentado por frases burlescas de 280 caracteres..Decididamente, o futuro já não é o que era. As lições dos génios do passado são esclarecedoras. Lembremos a imagem criada por Georges Méliès, em 1902, em Viagem à Lua, encenando a chegada dos homens ao satélite: o foguetão a aterrar num dos olhos do rosto lunar era, afinal, não uma "antecipação", antes uma celebração risonha da própria ambivalência de qualquer racionalização do fluxo temporal. Por alguma razão, Blade Runner (1982) e a sua sequela, Blade Runner 2049 (2017), de Ridley Scott e de Dennis Villeneuve, respetivamente, triunfaram como mapa existencial da nossa relação com os futuros que insistimos em querer imaginar. No limite, por ambos os filmes circula uma lição difícil de aprender. A saber: há no ser humano uma dimensão de solidão que as máquinas não integram nem, muito menos, anulam..Os filmes bem nos têm avisado do misto de liberdade e sofrimento que tudo isso pode envolver. Em 1965, por exemplo, Jean-Luc Godard filmava a sua mulher, Anna Karina (que morreu neste mês), numa das mais belas aventuras futuristas que o cinema já gerou: chamava-se Alphaville e decorria num futuro em que os conceitos de "amor" e "emoção" tinham sido proibidos. O seu efeito é tanto mais subtil e perturbante quanto Godard encenava essa parábola nos cenários de Paris do seu próprio presente - raras vezes o futuro terá sido apresentado, assim, como o mais cristalino dos fantasmas do presente..E se a maior parte das "previsões" são pessimistas, isso diz muito pouco sobre o futuro (afinal, ainda não chegámos a Marte...), refletindo, no essencial, a nossa vulnerabilidade presente. Veja-se ou reveja-se Fahrenheit 451 (1966), a adaptação do romance de Ray Bradbury realizada por François Truffaut, retratando a crueldade de um mundo em que os livros foram proibidos - não será que, ainda hoje, sobretudo hoje, essa é uma história reveladora da fragilização tecnológica da nossa relação com o património literário da humanidade? E que dizer de Estranhos Prazeres (1995), de Kathryn Bigelow? Aí, tudo acontece na passagem de ano 1999-2000, um tempo assombrado por uma nova forma de contrabando: face à decomposição afetiva dos laços humanos, as emoções mais extremas, registadas diretamente a partir do córtex cerebral, são vendidas em mini-discs....Foi há mais de meio século, em 1968, que Stanley Kubrick lançou o seu 2001: Odisseia no Espaço, imaginando um futuro em que o mais sofisticado dos computadores, o lendário HAL 9000, se apropriava de uma missão espacial. Em nome de quê? Pois bem, da imperfeição dos humanos. Dizia ele ao astronauta Dave Bowman (Keir Dullea): "A missão é demasiado importante para eu deixar que você a possa comprometer." Peço desculpa se o leitor nunca viu o filme, mas tudo desemboca numa belíssima tragédia: Dave decide desligar o computador.